A popularização de plataformas digitais como YouTube, TikTok e Instagram fez com que histórias “moldadas” ultrapassassem as barreiras do digital, tornando-se parte da vida dos usuários. A variedade de temas publicados a cada minuto alcança diferentes nichos, faixas etárias e públicos — incluindo crianças e adolescentes — ainda que, no Brasil, exista uma faixa etária mínima para acesso a redes sociais.
A falta de supervisão sobre o conteúdo que as crianças estão consumindo — e criando —, tornou-se pauta de discussão entre profissionais da saúde, educação e até mesmo influenciadores mais velhos. A exposição precoce e demasiada de crianças e adolescentes às redes sociais está alterando a forma como jovens interagem, pensam e se comportam. Em 2024, foi noticiado, no Brasil, o caso da influenciadora Antonella Braga, de 15 anos, que colocou próteses de silicone. A normalização de comportamentos como esse, expõe outras crianças a buscarem padrões e estilos de vida irreais e prejudiciais.
A pauta da “adultização infantil” ganhou maior visibilidade após o youtuber conhecido como Felca produzir um vídeo denunciando a sexualização de crianças em plataformas digitais. Os vídeos do youtuber ganharam tanta repercussão que deram origem à “Lei Felca”, que gerou como norma o “ECA Digital”, visando não apenas combater a sexualização de crianças na internet, mas protegê-las de outros riscos do ambiente digital.
Para além daquilo que podemos observar, conteúdo, surge um debate sobre o “invisível”, que é a proteção da mente das crianças que produzem e consomem conteúdos digitais.
Autoestima infantil
“Quando se fala em autoestima infantil, estamos falando sobre como a criança enxerga a si mesma”, explica a psicopedagoga e psicóloga infantil Bruna Cardoso Gonçalves. “Se ela está imersa num mundo tecnológico, ela é apenas um espectador. Se a interação dela é com uma tela, ela se torna um coadjuvante dentro do próprio desenvolvimento”.
A edição de 2025 da pesquisa do Panorama Mobile Time/Opinion Box sobre uso de appsnoBrasil, mostra que o TikTok está em grande ascensão, sendo o aplicativo que mais cresceu nos últimos 12 meses. Dados da pesquisa mostram que sua predominância está em celulares de jovens de 16 a 29 anos, contudo, pesquisas do IBGE mostram que em 2024, 88,9% da população de 10 anos já tinha celular próprio.
O aumento de crianças nas redes sociais também popularizou o nicho de influenciadores mirins, resultando em mais crianças e adolescentes interessados em consumir e produzir conteúdo para as redes. Vídeos mostrando rotinas, testes de maquiagens, acessórios e roupas são populares entre o público infanto-juvenil, e embora pareçam conteúdos inofensivos à primeira vista, acendem um alerta para um mundo de comparações.
“Aí vem uma comparação com algo que não existe. Ninguém é feliz o tempo todo”, diz Bruna Gonçalves. A psicóloga ainda ressalta sobre a necessidade do consumo que é despertada nas crianças: “Eles também querem usar um produto que uma blogueirinha utiliza. Eu tive casos de meninas que tinham que passar na farmácia e comprar Carmeds (batom) porque queriam ter todos!”.
Manuella, de 11 anos, conta que ganhou recentemente seu primeiro celular: “Todas as crianças da escola já tinham um celular, só eu que não, então pedi um para minha mãe de aniversário”. Mas a menina também relata buscar um celular novo, e o motivo são as influenciadoras digitais: “Se eu me comportar no resto deste ano, vou pedir para minha mãe um iPhone 11. As meninas da internet já têm o iPhone 17, mas é muito caro, então eu pensei em pegar um mais baratinho”.
Explicando como os jovens almejam adquirir ou se igualar ao que consomem na internet, Bruna Gonçalves cita que o ídolo de uma criança é com quem ela quer se parecer. Manuella diz gostar muito das famosas Olivia Rodrigo e Ana Castela, para ela, são cantoras muito “simpáticas”. Coincidentemente, quando questionada sobre o que ela mais gostava em si mesma, Manuela respondeu:“minha simpatia”. Embora o caso de Manuella não se trate de uma influência considerada tóxica, prova o quanto uma criança busca aquilo que assiste, acendendo novamente um alerta para os conteúdos que são popularizados entre o grupo infantil.
Impacto na educação
Nas escolas, professores percebem a mudança no comportamento dos alunos cada vez mais novos. Dentre as dificuldades relatadas está a concentração. Para os professores é cada vez mais desafiador conquistar a atenção dos alunos, este fenômeno pode ser explicado pelos estímulos rápidos que as crianças recebem através de vídeos curtos que assistem na internet, fazendo com que não treinem a capacidade de se concentrar por muito tempo na mesma coisa.
“Eu noto isso neles, a falta de foco, de concentração, porque eu deixo de ser interessante”, relata a professora de séries iniciais Ana Cláudia Siebra. A professora ainda menciona a perda de capacidade social: “As crianças estão confinadas ou na televisão ou no celular dos pais, e quando estão ali, frente a frente com outras crianças, não sabem lidar. Não têm habilidade social”.
A perda dessas habilidades assusta a professora. As dificuldades que surgem pela falta de atenção contribuem para a baixa autoestima infantil, pois as crianças deixam de acreditar na sua própria capacidade de aprendizagem. Ana relata que, durante a execução de atividades em sala de aula, já ouviu crianças se chamarem de burras por não conseguirem cumprir algum exercício.
Vício dos pais
Segundo a psicóloga Bruna Gonçalves, crianças de até 11 ano, idade em que inicia a transição para a adolescência, são impactadas por não possuírem a mesma habilidade que outras crianças vistas na internet, sobretudo, quando os pais assistem e exaltam outras crianças. Segundo Bruna, com a influência das redes sociais, as crianças estão apresentando maiores sinais de ansiedade e depressão. Segundo o Ministério de Saúde, crianças e adolescentes já sofrem mais com transtornos de ansiedade do que adultos atualmente. Atendimentos envolvendo transtornos de ansiedade no SUS aumentaram 1.575% entre as crianças de 10 a 14 anos. Entre 2015 e 2024 foram feitos 65.789 procedimentos clínicos ambulatoriais relacionados à ansiedade em menores de 17 anos
O confinamento dos pais pelas redes sociais também é responsável pela perda do mundo da criança, pois os responsáveis passam a não monitorar seus filhos, deixando-os vulneráveis a conteúdos prejudiciais. “Se a mãe está ali no celular em busca de uma perfeição que não existe, ela esquece o filho, e a criança sente isso”, diz a professora Ana.
As profissionais frisam que a tecnologia pode ser benéfica para o desenvolvimento infantil, no entanto, se usada com moderação. Aquilo que as crianças veem nas redes ou observam os adultos assistindo, reflete em suas percepções de mundo e pode impactar diretamente no presente e no futuro. “Esse é um assunto da rotina de um consultório de psicologia infantil, no momento que a gente vive, tudo é muito novo. Estamos nos adaptando a este boom tecnológico e não temos ainda uma dimensão real do problema que vai vir”, conclui.
