Muitas vezes invisibilizadas na história e na arte, elas são protagonistas em exposição no Museu Júlio de Castilhos 

A magia dos museus em teletransportar os visitantes que por lá passam para outros tempos da história é incontestável. É o que acontece com quem desejar experimentar o contato com objetos de uma família importante para a história do Rio Grande do Sul percorrendo o Museu de História Julio de Castilhos

Além das várias exposições e mais de dez mil itens em seu acervo, uma mostra de longa duração do MJC se chama Narrativas do Feminino. O conjunto de obras se deu a partir do desejo de mulheres que trabalhavam no museu no ano de 2020. A proposta é mostrar a singularidade da figura feminina e trazer ao público a representação e o papel importante que as mulheres tiveram na história.  

Quarto Estilo Império – exposição de longa duração que retrata o período em que Julio de Castilhos vivia no local. | Foto: Ana Paula de Oliveira 

Desta vez, o foco se dá a partir de um olhar positivo e não a partir do preconceito que a figura feminina recebe ao longo do tempo. Afinal, não é incomum a situação de invisibilidade em que a figura feminina era colocada, em outras épocas, principalmente quando era parte de famílias em que os homens ocupavam cargos públicos e faziam parte da elite. 

Cinta-liga e espartilho, itens da exposição Quarto Estilo Império, símbolos femininos que hoje são vistos como parte da repressão sofrida pelas mulheres. | Foto: Ana Paula de Oliveira 

 A ideia da exposição é propor uma vista mais refinada das histórias de vida de cada uma delas, dando destaque às ações e feitos admiráveis dessas mulheres. Há quatro anos em exibição, esse é o fio condutor que permanece intacto na exposição exibida pelo Júlio de Castilhos. 

O que muda na exposição a cada ano são temas, objetos e ângulos para falar das mulheres gaúchas. O objetivo é promover reflexões e trazer visibilidade para a trajetória de luta das mulheres, com foco que se desenvolve a partir do século XX.

Camisetas doadas pela professora e ativista dos direitos das mulheres negras Giane Vargas. | Foto: Ana Paula de Oliveira

A fase atual da mostra teve início em fevereiro de 2024, assinada pela curadora Monica Wiggers. De acordo com ela, o processo criativo de novas exposições depende muito dos objetos do acervo do museu. A partir daí, os envolvidos na exibição pensam na melhor maneira de contar as histórias. A curadora propõe uma visão otimista dos itens expostos, como os leques que eram utilizados pelas mulheres que viviam na casa onde hoje é o museu. Eles foram colocados em evidência ao público no primeiro ciclo e serviram de gancho para outras pautas femininas. 

Monica enfatiza que, através das buscas atentas a documentos e fotos, é possível observar um apagamento das mulheres e a inviabilização destas nos espaços culturais e que era preciso mudar esse cenário. “Diante da presença predominantemente masculina, a ideia é trazer a mulher como destaque no museu, a presença dela na cultura e na história”, afirma. 

REPRESENTATIVIDADE FEMININA 

Ao longo dos anos, a exposição já apresentou temáticas como As Lavadeiras, que no século XX, após a abolição, exerciam praticamente as mesmas funções. Agora livres, buscavam as roupas nas casas da elite e as lavavam nas águas do Guaíba ou no Arroio Dilúvio em Porto Alegre. 

As Mulheres da Elite e Mulheres Intelectuais também já foram parte da exibição e seguem disponíveis na versão online. Ensinadas a serem boas esposas, o que incluía serem boas anfitriãs e conhecedoras da cultura, as mulheres de elite tinham influência nas escolhas políticas de seus maridos. 

Já as Mulheres Intelectuais, tiveram um papel muito importante para a autonomia feminina. A partir de publicações escritas e estudos acadêmicos, muitas se graduaram em cursos como odontologia, direito e medicina, sempre conciliando com o trabalho que exerciam durante o dia. 

Objetos da cultura afro, doados por mulheres negras ao MJC. | Foto: Ana Paula de Oliveira

REPRESENTATIVIDADE DA MULHER NEGRA NO RS 

A intervenção atual, apresenta o protagonismo das mulheres negras, as primeiras a criarem ateliês de costura nas suas próprias casas e a comercializarem alimentos para os banquetes da elite no século XX. Trazendo a exposição para a atualidade, a curadoria apresenta objetos importantes de mulheres que fazem a diferença na cultura gaúcha. 

Maria Ignácia da Conceição, importante quitandeira porto-alegrense e Amancia Coringa, africana, de 112 anos, que viveu em Porto Alegre entre o século XIX e início do XX | Foto: Ana Paula de Oliveira 

A Beta Redação entrevistou Jaqueline Trindade, a rapper Negra Jaque, a primeira mulher a vencer a Batalha do Mercado e também a mestra de samba Alexsandra Amaral. Duas artistas que revelam as dificuldades de se destacar em meios artísticos de maioria masculina. 

Convivendo com o samba desde a infância, Mestra Alê era proibida pelo pai de tocar instrumentos. Ela recorda as frases que ouvia: “ele dizia que era um ambiente só de homens e que eu, por ser menina, tinha que ficar com a minha mãe”. A única a acreditar que a jovem um dia tocaria em escola de samba, era a avó. Com o tempo e muita dedicação, Alexsandra foi se destacando e sendo vista pelas escolas de samba do Rio Grande do Sul, se tornando a primeira mestra de samba do Brasil. “Ano passado fui homenageada pela Unimúsica – Projeto de música criado pela UFRGS”, relata orgulhosa. 

Mestra Alexsandra Amaral possui projetos para pessoas com deficiência intelectual e autismo. | Foto: arquivo pessoal/Alexsandra Amaral

Ela ainda conta do sentimento de ser exemplo para quem sonha em ser percussionista, “recebo mensagens de mulheres que se inspiram em mim e no meu trabalho” conta a mestra, que ficou emocionada em fazer parte da exposição sobre as mulheres negras do Rio Grande do Sul, “me senti honrada em receber uma homenagem como essa em vida”. 

Xequerê e baqueta doados por Mestra Alê ao MJC. | Foto: Ana Paula de Oliveira

Negra Jaque, assim como a Mestra Alê, cita o apagamento das mulheres negras ao longo da história, e comemora a exposição: “eu vejo como um processo fundamental, para contarmos a história gaúcha de outro prisma e trazer referências para a comunidade negra do estado”, afirma a rapper, que também é mediadora no Museu da Cultura Hip Hop em Porto Alegre. 

Negra Jaque em apresentação no Sarau do Solar, realizado no centro cultural Solar dos Câmara, em Porto Alegre. | Foto: Celso Bender

No mundo da música há 17 anos, Negra Jaque se orgulha de fazer parte da exposição Narrativas do Feminino: “é muito importante a gente se enxergar e ser reconhecida pelo nosso trabalho”. Ela revela ainda, que não tem apego aos itens cedidos ao MJC: “somos efêmeros e transitórios. É para o mundo, não é meu”, esclarece a artista. 

Troféu conquistado em 2016/2017 e CDs doados por Negra Jaque. | Foto: Ana Paula de Oliveira

A experiência da visitação presencial é ainda mais rica do que a virtual, mas para quem não pode comparecer, explorar os objetos remotamente também traz muitas descobertas interessantes, principalmente para apreciar os ciclos anteriores que não estão mais expostos. A cada dispositivo que se encontra, um novo conhecimento e curiosidade sobre as mulheres negras, suas histórias e respectivas contribuições para a cultura gaúcha. 

Imagem do acervo MJC retratando as mães pretas, mulheres negras que eram amas de leite da elite no período escravista. | Foto: Ana Paula de Oliveira

O Museu Júlio de Castilhos, “vira uma chave”, como citou Negra Jaque, para que, segundo ela: “outros museus, a partir de seus próprios recortes, se inspirem nessa iniciativa e contem a história das mulheres negras, que foi apagada”, conclui. Portanto, é de extrema importância que a exposição Narrativas do Feminino seja mais conhecida pelo povo gaúcho, para redescobrir a verdadeira história do Rio Grande do Sul. 

Informações: 

Visitação gratuita de terça à sábado. Das 10 h às 17h, sem agendamento prévio. 

Rua Duque de Caxias, 1205 – Centro Histórico, Porto Alegre.

Para mais informações, entrar em contato pelo telefone: (51) 3221-3959.