Relato de Sérgio Bittencourt, presidente da Associação de ex-presos e perseguidos políticos do RS, comprova a importância da preservação da memória e da busca por reparação

“A maior vítima foi o povo brasileiro”. Esta é a análise do ex-preso político Sérgio Bittencourt, torturado entre abril e junho de 1972, na sede do Departamento de Ordem Político Social (DOPS) em Porto Alegre, em função do regime ditatorial que assolou o Brasil de 1964 a 1985. Hoje, aos 71 anos, Sérgio relata tudo o que passou na juventude e como seguiu sendo engajado politicamente após viver essa experiência.

Ao relembrar momentos de sua trajetória desde a adolescência, passando pelo movimento estudantil, a prisão, as torturas e todo o cenário político da época, o atual presidente e cofundador da Associação de ex-presos e perseguidos políticos (AEPPP/RS), contou também a Beta Redação como foi a criação da iniciativa e suas atuais frentes de trabalho.

A AEPPP/RS, criada em 1999 para viabilizar reparações políticas, hoje atua também na preservação da memória dos acontecimentos ocorridos no período da Ditadura Militar, que em 2024 fecha um ciclo de 60 anos desde o golpe. Por isso, Sérgio critica duramente os governos que vieram após a Ditadura, por não falarem sobre o assunto. “Há uma política de apagamento de toda essa informação, e não culpo a geração atual por saber pouco sobre o que aconteceu”, lamenta. Confira o relato completo a seguir.

Sérgio Bittencourt na sede do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em Porto Alegre. Foto: Arquivo pessoal.

A prisão, a tortura e o medo do sequestro

Fui preso no dia 12/04/1972 e solto no dia 7/06/1972. Eu era estudante de Direito, mas interrompi minha faculdade. Não em função da perseguição, o ambiente da faculdade é que me fazia muito mal. Fui apaixonando pelo curso de Direito a vida inteira, mas nunca consegui concluir.

Eu estava em frente ao meu trabalho quando me colocaram dentro de um fusca e me levaram para o DOPS. Com capuz na cabeça e totalmente nu, fui levado para a fossa (sala de torturas). A primeira sessão durou 12 horas. Fui submetido ao pau-de-arara, a maricota (choques elétricos) nas orelhas, lábios e órgão genital, a cadeira do dragão, a estopa molhada no órgão genital para potencializar o choque, aos afogamentos, a pirelli (tortura com tiras de borracha), aos telefones (tapas nos ouvidos), espancamentos, tapas, socos, chutes e queimaduras com cigarro.

Geralmente, as torturas eram conduzidas por Pedro Seelig e Nilo Hervelha, com a participação de outros militares do III Exército. Também passei por tortura psicológica. Ameaçavam prender minha irmã e me matar. Passei também por muitos interrogatórios.

Quando fui solto, num primeiro momento não me envolvi mais com a militância, porque sabia que estava sendo monitorado e que se eu me aproximasse de qualquer pessoa, eu poderia comprometê-la. Levei cerca de seis meses, depois da soltura, para começar a voltar ao trabalho. O que me salvou nesse período foram os namoros, que ajudaram a superar tudo.

Registro presente no arquivo de soltura de Sérgio, ao qual ele teve acesso somente após 20 anos. O retrato era feito visando comprovar que não havia ocorrido tortura com o prisioneiro. Foto: Arquivo pessoal.

Analisando hoje, eu percebo que a maior vítima da Ditadura foi o povo brasileiro, porque o cidadão vivia abaixo de opressão e medo. Se houvesse uma discussão qualquer entre vizinhos, um deles podia telefonar para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] e denunciar como comunista. A pessoa era presa, não sabia o porquê, era obrigada a confessar algo que não sabia, abaixo de tortura.

Eu senti isso quando fui solto. Meia hora depois de chegar em casa, os muitos vizinhos que me viram crescer, trocavam de calçada com medo de me cumprimentar. Então, quando eu digo que a vítima foi o povo brasileiro, é porque o clima que se respirava naquele momento era de medo e muito terror.

Consegui um emprego na IBM, a empresa multinacional de computadores e processamento de dados, no turno das 23h às 8h, em janeiro de 1973. Em julho, eu estava dormindo na minha casa quando minha mãe bateu a porta do quarto, assustada, por volta do meio-dia, dizendo que havia dois policiais atrás de mim. ‘Diz para eles entrarem, que eu vou falar com eles’, pedi. O interrogatório foi curto e tenso.

-Tudo bom, Sérgio? E daí? O que tu andas fazendo?

-Eu estou trabalhando de noite e durmo durante o dia, procurando voltar à faculdade de noite.

-Ah, sim. Onde é que tu estás trabalhando?

-Eu estou trabalhando na IBM. Rua José Bonifácio, esquina com a Santana.

-Está tudo bem contigo?

-Está tudo bem comigo.

Eles foram embora e, durante um mês, meu pai, que era policial aposentado, passou a me levar e buscar no trabalho. Ele seguiu fazendo isso até sentir que não havia mais perigo de eu ser sequestrado.

A organização Ação Popular, a qual eu fazia parte em 1970, estava sendo dizimada no resto do país pela repressão. Foi então que um amigo me ajudou a compreender o episódio do interrogatório no meu quarto: ‘O que está acontecendo é que eles não estão te vendo. Como tu trabalhas de madrugada, eles não te viram mais na rua e estão tentando te monitorar. Devem ter pensado que tu caiu na clandestinidade de novo. Por isso foram atrás de ti. Se tu voltares pra boemia, isso aí vai acabar. Eles vão começar a te ver em bares e vão te deixar em paz.

Então, nas horas de folga eu passei a ir para algum bar, a circular mais, embora não me envolvesse com atividades políticas. Eu só voltei a militar a partir de 1974, dentro do MDB, porque era legalizado.

Associação de ex-presos conquista reparações

Criamos a AEPPP-RS em 1999 a partir de um processo de luta por anistia e reparação, iniciado um ano antes, por iniciativa do movimento dos perseguidos políticos do exército, marinha e aeronáutica.

Lutávamos por uma anistia ampla, geral e irrestrita, para que todos os que pegaram em armas ou foram oposição ao regime militar fossem anistiados. Para que os criminosos, por terem atentado contra a humanidade com o uso de tortura, assassinatos e sequestros, fossem levados a julgamento. Mas não foi possível. Diferente do que aconteceu na Argentina e no Uruguai, aqui tivemos uma anistia muito tímida. Mas ela proporcionou a volta dos exilados políticos. Isso foi uma vitória. E embora com todas as suas limitações, a anistia proporcionou um avanço muito grande na sociedade brasileira.

Sérgio faz pronunciamento na Câmara de Vereadores de Porto Alegre ainda como presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em 8 de maio de 2005. Foto: Arquivo pessoal.

O artigo oitavo dos Atos de disposições constitucionais transitórias (ADCT), o conjunto de medidas de transição para o regime democrático, dizia que a União teria que fazer reparações aos perseguidos políticos. Então, nós começamos a trabalhar para criar uma lei de anistia e de reparação. Organizamos o então Movimento de ex-presos e perseguidos políticos.

Na esfera estadual, em 1997, no governo de Antônio Britto, também foi feita uma lei para a reparação dos perseguidos políticos (Lei 11.042) que foi negociada com o nosso movimento. Em 2001, o presidente Fernando Henrique Cardoso tratou das reparações. Nós começamos a organizar as indenizações, não só estaduais, mas também federais. E praticamente o eixo de trabalho da AEPPP-RS foi a busca das reparações.

Sergio encontra o então Ministro da Justiça Tarso Genro, na Assembleia Legislativa do RS em 2008, para tratar de reparação para ex-presos políticos. Foto: Arquivo pessoal.

Em 2015, resolvemos uma questão legal e nos transformamos em associação. Nós criamos um estatuto, uma forma legal registrada em cartório. Nesse período, começou a ser muito difícil o contato com o governo federal. Houve a crise dos governos Dilma e Temer e logo em seguida veio o governo Bolsonaro e a paralisação da sociedade por causa da pandemia de COVID-19. Entramos num período de inatividade até o segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Mas tínhamos que retomar a associação, fazer uma nova assembleia, eleger uma nova direção. E dessa vez, sem deixar de lado a questão das reparações políticas, o eixo principal seria a busca da memória para que não se repita mais o que aconteceu há pouco, com Bolsonaro no poder. A AEPPP-RS, que hoje possui mais de 100 associados, passou a ser um instrumento de busca de memória para a consolidação do estado democrático de direito. Nosso maior parceiro é o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, além de outras entidades.

Seguimos todos na luta.