Agilidade no tratamento é fundamental para evitar repercussões graves da doença, afirma otorrinolaringologista

Quem sofre com problemas de audição, hoje, pode receber um aparelho auditivo ou fazer um procedimento cirúrgico pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A questão é que, desde setembro de 2023, Porto Alegre não consegue manter uma efetividade nas agendas desse serviço, isso é, a oferta não tem acompanhado o número de novas solicitações. Os dados, disponíveis no relatório mensal do Sistema de Gerenciamento de Consultas (Gercon), da Secretaria Municipal de Saúde, mostram que 2.856 adultos aguardavam, em março, pela reabilitação auditiva, um aumento de 5% em relação ao mesmo período do ano anterior.

Na Capital, são três os centros de referência nesse serviço: o Hospital de Clínicas, o Hospital Conceição e o Hospital Santa Ana. As instituições são responsáveis também por suprir toda a demanda da região metropolitana e de alguns municípios do interior.

O caminho até um centro de reabilitação auditiva começa pela unidade básica de saúde. Ao identificar algum incômodo ou problema de audição, o paciente deve buscar por uma consulta em seu posto de referência. O médico avaliará o caso, solicitando um exame audiométrico, e, com o laudo da perda auditiva, encaminhará o paciente para o serviço de reabilitação. A partir desse encaminhamento, o paciente passa a integrar o Gercon, e é inserido na fila de espera de acordo com a complexidade e prioridade de seu caso clínico (alta/baixa prioridade e alta/baixa complexidade). Casos que exigem atendimento cirúrgico ou pediátrico (menores de 13 anos) são direcionados para os hospitais Clínicas e Conceição, uma vez que o Hospital Santa Ana não possui contrato para esses atendimentos. Ao ingressar em um dos centros, o usuário inicia o tratamento.

A coordenadora do Centro Especializado de Reabilitação Auditiva e Intelectual (CER II) do Hospital Santa Ana, Otília Angst, explica que, devido a certa demora entre o encaminhamento da unidade básica de saúde e a vaga no serviço de reabilitação, o usuário refaz o exame audiométrico (a avaliação da capacidade de ouvir sons) ao chegar na instituição, a fim de obter um diagnóstico atualizado. “Com isso também mantemos um padrão com os nossos equipamentos”, ressalta. A partir do laudo, o médico otorrino indica o procedimento adequado para cada usuário. “Às vezes o caso pode ser tratado com medicamentos, em outros exige cirurgia ou aparelho auditivo.”

Ao chegar no CER II Santa Ana, usuário passa por avaliação otorrinolaringológica (à esquerda) e exame audiométrico (à direita, acima). A partir do laudo é indicado o procedimento adequado, a exemplo do uso de aparelho auditivo. (Fotos: Alana Schneider/Beta Redação)

Desde a abertura do serviço de reabilitação, em 2019, mais de 4 mil pessoas já foram atendidas pela instituição, que distribui, por mês, cerca de 260 aparelhos auditivos. “Não são raras as vezes que a gente se emociona com o usuário, pois não é só uma reabilitação auditiva, é a qualidade de vida dessas pessoas que estão se isolando dos familiares, por vergonha ou receio de ficar pedindo para repetirem’”, relata Otília.

Aos 57 anos, a servidora pública Rosani Zachow conhece bem a transformação que o ouvir gera na vida das pessoas. Desde criança, ela relata sofrer com a perda auditiva, mas o diagnóstico clínico veio somente aos 26 anos, durante um exame periódico de trabalho. Mais de uma década depois surgiu a necessidade de usar um aparelho auditivo, conquistado por meio do centro de reabilitação de Ijuí, local que é referência para várias pequenas cidades do entorno, como a cidade de Panambi, onde residia na época. “Foi a partir daquele momento que eu me encontrei, fez toda a diferença. Passei a compreender com mais qualidade os sons, entender letras de música, e tive coragem de fazer um curso de idioma”, conta. 

Com aparelho auditivo, Rosani (ao centro, à direita) iniciou um curso de idioma. Na foto, ela confraterniza com os colegas ao final de mais um semestre de curso, em 2023. (Foto: Alana Schneider/Beta Redação)

Morando hoje em Porto Alegre, Rosani precisa passar por uma reavaliação, com o objetivo de verificar se o aparelho auditivo ainda é adequado para seu caso clínico. A servidora não esconde o desânimo de ter de encarar, novamente, a fila de espera pelo atendimento no centro de reabilitação: “Se de um lado os altos custos inviabilizam o acesso pelo sistema privado, do outro existe a demora no sistema público, que faz com que a gente não saia do lugar”.

Segundo o médico otorrino e vice-presidente da Associação Gaúcha de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial (Assogot CCF), Joel Lavinsky, repercussões graves de doenças auditivas estão fortemente associadas a esse atraso e são um dos principais fatores de risco para demências. “A surdez, quando instalada, traz supressões muito graves para as pessoas. Quando a gente fala de uma criança, a demora na reabilitação atrapalha todo o desenvolvimento da linguagem. Em adultos e idosos, afeta toda a parte cognitiva e intelectual”, explica.

Isso porque, para além da audição, os ouvidos desempenham papel fundamental na comunicação, no equilíbrio e nos reflexos do corpo. “[Com a perda auditiva] a gente perde a serenidade da vida em função da não interação social, pois você ouve um monte de barulho, de poluição sonora, mas não compreende o essencial”, observa Rosani.

Apesar do desafio de dar maior vazão aos atendimentos de reabilitação auditiva, Lavinsky e Otília enaltecem a abrangência e a qualidade dos tratamentos oferecidos pelo SUS. “É difícil, hoje, ter um caso de perda auditiva em que não há o que fazer. O SUS disponibiliza grande parte dos tratamentos”, afirma o médico.

Diariamente, o CER II Santa Ana distribui uma média de oito aparelhos auditivos. (Foto: Alana Schneider/Beta Redação)

Em nota à Beta Redação, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre diz que a demora nos atendimentos via SUS ainda é um efeito da pandemia e que trabalha para ampliar a cobertura da atenção básica à saúde na Capital. Segundo o órgão, especialidades como a reabilitação auditiva registram uma demanda maior do que a procura e “o aumento da oferta sempre vai acarretar aumento da demanda, sendo, assim, um sistema de equilíbrio desafiador e com recursos limitados”. Atualmente, a procura mensal é de 140 pacientes para 75 vagas disponíveis nos centros de referência.

A Secretaria esclarece ainda que “em determinadas especialidades, a Capital é referência para mais de 250 municípios e não há serviços suficientes no Estado para atender a essa demanda, pressionando que Porto Alegre passe a suprir grande parte das solicitações atuais, o que não é possível”. O órgão informa que está em tratativas para contar com mais um Centro Especializado em Reabilitação Auditiva neste ano, bem como “busca otimizar recursos, focando nos gargalos e nas especialidades em que há mais tempo de espera, sem deixar de atender outras procuras, como a negociação com prestadores para aumentar a oferta e diminuir as filas”.

Mudança cultural para reduzir a fila de espera

Um relatório da Organização Mundial da Saúde apontou que 1 em cada 4 pessoas sofrerá de perda auditiva até 2050, um “exército de surdos” que pressionará ainda mais o sistema público de saúde. “Existe hoje uma evidência clara da literatura de que as pessoas estão mais expostas ao ruído, ao mesmo tempo que temos uma longevidade maior, ou seja, vamos ter mais surdos e isso vai estourar lá na frente. A dúvida é como esse problema será financiado, uma vez que há limitação de recursos”, aponta Lavinsky. Para o otorrino e vice-presidente da Assogot CCF, é preciso definir formas de alertar a população e sensibilizar a classe política sobre a importância da saúde auditiva.

A coordenadora do CER II Santa Ana, Otília Angst, defende o fortalecimento do trabalho preventivo na atenção básica. “Precisamos realizar ações de prevenção, promoção e proteção da saúde auditiva. Às vezes é uma questão de orientar a população, além de efetivar ações de prevenção às perdas auditivas induzidas por ruído nas indústrias”, afirma.

Coordenadora do CER II Santa Ana, Otília Angst acredita que atitudes preventivas ajudariam a reduzir alto número de casos de problemas auditivos. (Foto: Alana Schneider/Beta Redação)

Para os entrevistados, desinchar a fila de espera da reabilitação auditiva não passa somente pelo aumento da oferta, mas por evitar que a pessoa precise entrar na fila. Trata-se de um trabalho ativo de criar uma cultura de prevenção voltada à saúde auditiva, incentivando as pessoas a realizarem exames periódicos de audição – a exemplo de check-ups odontológicos -, especialmente em se tratando da terceira idade. “Essa responsabilidade não é só do poder público, mas de toda a sociedade civil. De como a gente se protege e protege aos outros”, ressalta Lavinsky.