Há um ano, a água chegou sem bater na porta. Invadiu tudo. Levou móveis, memórias e até o cheiro de casa. Em maio de 2024, São Leopoldo foi tomada pela maior enchente da sua história – e, com ela, a vida de Paulete Souto virou outra. Naquele momento, ela não era a ex-vice-prefeita da cidade, nem a professora aposentada, nem a presidenta municipal do PCdoB, nem a atual secretária de Direitos Humanos. Era filha. Mãe. Avó. Era alguém tentando proteger os seus e salvar o que ainda dava para carregar nos braços.
“A gente perdeu tudo. Mas a gente tava junto.” A frase sai simples, quase leve, com uma serenidade que não nega a dor, mas que já aprendeu a transformá-la em vínculo. E talvez seja essa a chave para entender quem é Paulete: uma mulher que, mesmo no meio do caos, ainda encontra espaço para o cuidado.

É impossível falar de Paulete sem falar de coletivo. Cresceu em uma casa com seis irmãos e muitos “filhos de coração”, como ela mesma diz. Viveu parte da infância dentro do zoológico de São Leopoldo – hoje Parque Zoológico de Sapucaia do Sul –, onde o pai trabalhava. Enquanto lá fora a ditadura se espalhava pelo país, lá dentro ela corria entre os bichos, o mato e o medo de ser vigiada. Mas se lembra desse tempo com brilho nos olhos. “Tive uma infância maravilhosa”, repete, como quem nunca deixou morrer aquela menina livre correndo pelo parque.
Mas, mesmo menina, já entendeu que liberdade e justiça andam juntas – e que o silêncio, às vezes, também é político. O pai escrevia críticas no jornal local. A mãe cuidava da casa e das causas. Paulete observava. E aprendia. Com o tempo, percebeu que o senso de justiça não viria dos livros, mas da vivência. Por isso, muito antes de ocupar cargos públicos, ela já militava. E, quando se tornou professora, carregava mais que cadernos: levava um compromisso com a transformação.
No Instituto Estadual de Educação Pedro Schneider – carinhosamente conhecido como Pedrinho – enfrentou o tráfico, ameaças, desestrutura familiar e a violência que cruzava o portão da escola como se fosse normal. Mas nunca naturalizou. Chamou a polícia quando foi preciso, chamou a comunidade sempre. Criou gincanas, rituais, viagens, pertencimento. “Eu sabia o nome de cada aluno. E eles sabiam que podiam confiar”, conta. E talvez aí esteja o centro de sua força: não pelo cargo, mas pelo vínculo.
Foi com essa mesma firmeza – e afeto – que Paulete entrou na política. A primeira mulher eleita vice-prefeita de São Leopoldo. Mas não é isso que ela faz questão de dizer. Prefere falar que ajudou a construir um projeto de cidade. Que ajudou a construir uma política de educação infantil onde antes havia improviso. Que usou o salário para alimentar famílias durante a pandemia. Que ouviu a comunidade cigana quando ninguém mais escutava. Que ocupou, sem pedir desculpas. Que entendeu o poder como ferramenta e não como fim.

É aí que o perfil de Paulete começa a se desenhar. Uma mulher que age com firmeza, mas fala com doçura. Ocupa o espaço público com naturalidade, sem precisar endurecer o tom para ser ouvida. Não separa o pessoal do político. Fala da escola como fala da vida. Fala da política como extensão do afeto.
E que também se posiciona com o corpo. Assume suas raízes religiosas como parte da identidade. “Filha de Iemanjá”, diz, com a mesma força e orgulho com que defende a escola pública. E isso também é política. É posicionamento em um país que ainda demoniza e tenta apagar as religiões de matriz africana. Paulete não pede desculpas por ser quem é. E talvez por isso inspire. Como quem entende que política também é identidade.
Durante a enchente, resgatou vizinhos de barco. Protegeu os filhos, os netos, os parentes. Montou refúgio na casa da irmã, com quase vinte pessoas dividindo o mesmo teto. “Foi dolorido, mas também foi bonito”. Porque a dor, em Paulete, nunca vem sozinha, sempre traz uma chance de reencontro.

Hoje, à frente da Secretaria de Direitos Humanos de São Leopoldo, segue fazendo o que sempre fez: ouvindo, acolhendo, conectando. Seu cargo é um detalhe. Seu lugar vai além da cadeira pública. Sua presença está nas escutas pelas ruas, nas palavras ditas com calma, nos gestos firmes, no abraço que chega antes da burocracia. Paulete não precisa se impor para ter presença.
Ela é movida por laços – e talvez seja isso que a torne tão potente. Constrói pontes mesmo em meio aos escombros. Transforma perdas em afeto. E afeto, em ação. Mostrando que política se faz com gente — e não apesar delas.