Movimentos propõem a ampliação e melhorias no acesso a recursos naturais básicos

Garantir o fornecimento de água, saneamento básico e energia elétrica pelo Estado tem sido uma das principais bandeiras de entidades e organizações brasileiras, que buscam seguir a política de países desenvolvidos para esse setor. Dentre as ações estão a atuação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do Comitesinos. Os órgãos trabalham em diferentes níveis junto aos governos para promover o debate sobre a garantia da água como bem público fundamental à vida, além de outras questões. Também entram em contestação os impactos da geração de energia através de hidrelétricas e a privatização de estatais, como a Eletrobrás e a Corsan.

De acordo com o membro da coordenação do MAB Leonardo Maggi, é necessário que se crie um ambiente adequado para o fornecimento e socialização dos recursos naturais, o que só pode ser alcançado por meio do serviço público. Portanto, o movimento defende a manutenção de empresas públicas de água e saneamento. “A defesa da água como um bem público e universal passa por manter essas empresas sob o comando do Estado. Essa é uma luta que realizamos junto com um grande conjunto de outras organizações”, reitera Maggi.

Ele afirma que, da maneira como os recursos são apropriados por empresas privadas atualmente, pagamos pelo serviço de captação, tratamento e distribuição. “Este é o passo fundamental para tornar a água uma mercadoria em si, ou seja, para a água ser objeto de valor, o que seria uma mudança radical do caráter universal de acesso a esse bem”, pontua.

Maggi reforça que a privatização da Corsan é um enorme retrocesso na política de universalização de acesso à água e saneamento no RS. Ele lembra que isso já acontece em outros países e regiões, e com a privatização dessas empresas, a tarifa ficou mais cara e a qualidade do serviço piorou.

Privatização da Corsan ainda é questionada na Assembleia Legislativa do RS. (Foto: Corsan/Divulgação)

Maggi explica que há no Brasil uma relação muito próxima entre a produção de eletricidade e acesso à água. A maior parte da eletricidade produzida no país se utiliza dos rios, ao transformar sua força em energia elétrica por meio de geradores. 

Ele ressalta ainda que essa qualidade da matriz elétrica brasileira, além de ser considerada alternativa ao modelo convencional de produção de eletricidade fóssil, possui um custo de produção extremamente baixo. Vantagem que é apropriada pelas empresas privadas de eletricidade, que a comercializam como se fosse produzida com o custo de energia convencional, térmica.

Sobre a construção de hidrelétricas, o membro do MAB explica que uma das principais contradições é o fato de elas serem construídas apropriando-se privadamente e de forma violenta de bens e meios de produção necessários para a vida, visando à elevação dos lucros dessas empresas, sem nenhuma reparação. “O MAB defende que seja constituída uma política de promoção e proteção dos direitos das populações atingidas, antes, durante a construção e durante a operação das usinas”, reforça.

De acordo com Maggi, outra contradição que prejudica as pessoas é o fato dessas hidrelétricas produzirem energia a baixo custo e venderem ela por preços muito altos. O que é resultado dessa apropriação privada da indústria de energia, que atinge os brasileiros.


Valores aproximados trazidos por Maggi indicam uma grande diferença entre a produção e a venda da energia gerada. (Gráfico: Lucas Kominkiewicz/Beta Redação)

O MAB entende que o primeiro passo para a gestão eficiente dos recursos hídricos é a retomada da propriedade estatal das concessões de produção e distribuição de eletricidade, ao mesmo tempo que a política de preços do produto final tenha como base os custos reais de produção. “Para a região sul do Brasil é necessária uma política sólida de integração elétrica com os países próximos, em especial, os do Mercosul, o que aumentaria muito a eficiência dessa indústria na região e no país”, acrescenta Maggi. 

Além disso, ele aponta que é fundamental a restauração do Decreto nº 51.595/2014, que institui a Política de Desenvolvimento de Regiões Afetadas por Empreendimentos Hidrelétricos (PDRAEH) e a Política Estadual dos Atingidos por Empreendimentos Hidrelétricos no Estado do Rio Grande do Sul (PEAEH), duas iniciativas que colocavam o Rio Grande do Sul como estado pioneiro na garantia de direitos para os atingidos por barragens, e que foram revogadas em novembro de 2019 pelo governador Eduardo Leite (PSDB).

O integrante da coordenação estadual do MAB e advogado Rodrigo Seferin ressalta que essa gestão pública dos recursos hídricos tem forte impacto na composição dos índices sociais e econômicos de países e regiões. Segundo ele, a privatização de estatais tem sido uma tática de controle social sobre os mananciais, aquíferos e grandes fontes de água em geral. 

Seferin explica que o fato de o Brasil abrigar boa parte da água doce do mundo faz com que o país seja alvo desses interesses econômicos de grandes empresas multinacionais que precisam monopolizar a água para garantir o desenvolvimento da sua produção nas áreas de celulose, mineração, agronegócio e afins.

De acordo com o advogado, o papel do MAB é conscientizar as pessoas sobre a necessidade de tratar a água como um bem da humanidade que deve estar a serviço dos interesses do povo. Ele traz ainda os lemas históricos do MAB, “Águas para vida e não para morte”, “Água e energia não são mercadorias” e “Água e energia com soberania, distribuição da riqueza e controle popular”, que sintetizam a luta do movimento em torno do tema.

Seferin explica que, sendo uma entidade da sociedade civil, o MAB faz uma articulação com outros movimentos sociais, sindicais, ONGs, partidos e outras frentes que lutam pelo controle popular da água. Em 2018 o MAB organizou o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), em Brasília, reunindo mais de 350 organizações sociais dos cinco continentes, em contraposição ao Fórum Mundial da Água (FMA), organizado pelo Conselho Mundial da Água e patrocinado por empresas como Ambev, Nestlé, Suez e Coca-Cola. Ele pontua que a proposta do FMA era intensificar o controle das corporações sobre as fontes de água.

Seferin salienta a relação da produção de energia elétrica com os recursos hídricos e que 73% da energia produzida no Brasil em 2022 foi através de hidrelétricas. “Por isso o MAB denuncia que a privatização da Eletrobrás, que controlava 39 grandes usinas hidrelétricas no país, foi, também, um ato de entrega da soberania nacional, que doou a gestão dos reservatórios para empresas privadas”, diz.

O movimento busca mudar a realidade da produção de eletricidade para que as pessoas não sejam prejudicadas pelas hidrelétricas. De acordo com Seferin, a ideia é destinar a riqueza produzida através da geração de energia para a população. 

“Se o objetivo da geração de energia elétrica não for o lucro das empresas, não será necessário construir tantas barragens”, conclui. O MAB entende que a gestão eficiente dos recursos hídricos deve passar pela participação social, sobretudo das populações que vivem próximo aos rios, lagos e mananciais.

A presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos), Viviane Feijó, que é bióloga e engenheira de Bioprocessos e Biotecnologia, explica que o comitê impacta as políticas públicas de gestão da água, pois faz parte do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos, como fórum de participação popular, através dos representantes das diversas categorias que o compõem, entre usuários, representantes da sociedade civil e órgãos públicos. “É neste parlamento que os representantes discutem sobre os problemas e definem as regras para que a disponibilidade hídrica seja justa”, afirma. 

A bacia abrange 30 municípios e é responsável pela conciliação dos diversos interesses e a construção coletiva das soluções para os conflitos relacionados ao uso dos recursos hídricos, além de garantir água  com qualidade e em quantidade, através do Plano de Bacia, elaborado em 2014. “As discussões realizadas no comitê estão todas relacionadas com as políticas públicas, e promover as ações do Plano de Bacia é uma das principais reivindicações necessárias para que tenhamos saúde e uma qualidade de vida melhor no futuro”, reforça Viviane. 

Lançamento do 1º Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. (Vídeo: Unisinos/Divulgação)

As reivindicações na bacia são, por exemplo, o estudo para definir as alternativas para regularização de vazão e balanço do equilíbrio hídrico, o aumento do tratamento do esgotamento sanitário, as diretrizes para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, entre outras ações.

De acordo com a presidente, em 35 anos, o Comitesinos avançou em diversos debates, e contribuiu, por exemplo, no estudo da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan) sobre a mancha de inundação. Ela explica que atualmente esse estudo é uma ferramenta para definir as áreas que o leito do rio deve ocupar em períodos de cheia, ou seja, áreas onde o Plano Diretor dos Municípios não deve permitir loteamentos.

Viviane afirma que a entidade considera fundamental a implementação de instrumentos da Lei Gaúcha das Águas, a Lei 10.350/94, pois nela está prevista a cobrança pelo uso dos recursos hídricos para quem retirar água diretamente do rio. O valor arrecadado deve ser aplicado para a recuperação da própria bacia, o que, segundo ela, vai melhorar a qualidade da água.

O comitê defende que é necessário um serviço eficiente, transparente, que garanta qualidade e continuidade de abastecimento e preço justo. “Quando se defende o serviço público, é pela certeza de que ele garante o acesso com justiça social”, ressalta a presidente. 

Ela afirma que as políticas defendidas pelo Comitesinos têm ampla aplicação em São Leopoldo, onde está sediada a entidade, no campus da Unisinos, pois o município tem todo o seu território dentro da Bacia do Sinos. “O município cresceu junto com o comitê na gestão das águas, é muito participativo nas plenárias e sempre deu grande contribuição nos debates”, conclui.