Era um dia ensolarado e muito movimentado como costuma ser em tempos de Feira do Livro na Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Pai e filho sentaram-se lado a lado, atrás de uma mesa, onde cada um compartilhava a sua história, as suas memórias. Mas havia ali, naquele instante, algo maior do que dois lançamentos simultâneos de livros na 71ª edição do evento: havia um reencontro entre gerações unidas pela palavra.
Magistrado aposentado, Arno Werlang, dedicou quatro décadas aos autos, sentenças e diversos dilemas éticos do Direito. Naquela manhã, ele segurava pela primeira vez um livro só seu: Histórias da Vida de um Magistrado. Ao seu lado, estava o filho, Gérson Werlang. Músico, professor universitário e escritor com carreira consolidada, ele construiu um caminho híbrido entre criação artística e investigação acadêmica. Na Feira do Livro de Porto Alegre, ele lançava seu romance mais recente, Jazz em Palmeira.
Ambos me receberam com uma formalidade delicada: os dois estavam de camisa social, bem alinhados, mas não por vaidade, e sim por respeito ao encontro e ao ato de falar sobre as suas histórias. Dois livros distintos, dois pontos de vista, dois mundos. E, ainda assim, a sensação de que um fio invisível os atravessava.
“Isso é algo meio único”, Gérson me disse, enquanto lembrava do momento em que percebeu que o lançamento poderia ser conjunto. “Não é comum pai e filho lançarem livros diferentes no mesmo dia. Quando me dei conta, quis muito que assim fosse.”
A raiz da palavra
A história deles começa muito antes da literatura se tornar profissão. Começa dentro de casa, entre muitas estantes e o hábito de transformar leitura em rotina afetiva. Antes mesmo de pensar na literatura como ofício, Arno mantinha uma pequena livraria em Porto Alegre. Enquanto os filhos cresciam entre prateleiras, caixas de livros e o cheiro de páginas novas, a leitura se tornou parte orgânica na vida da família. A livraria não deu retorno financeiro, contava-me, mas deixou algo maior: a ideia de que o livro era lar. Era ali que Gérson, ainda menino, aprendia a manusear capas, sentir texturas, escolher histórias. Quase que em forma de ritual.
“Tanto o pai quanto a mãe sempre valorizaram o livro”, contou Gérson. “Eles talvez nem tivessem tempo, mas me oportunizavam: sempre ganhei muitos livros. Isso fez parte da nossa vida.”
Foi Arno quem comprou a biografia de Érico Veríssimo para si, mas quem leu primeiro, aos 11 anos, foi o filho. A partir dali, Gérson nunca mais voltou para a literatura infantojuvenil: mergulhou direto nos adultos, nos clássicos, nos mundos que se abriam muito antes da idade prevista.
A herança, no entanto, não veio somente da palavra. Veio também da música. Foi justamente aí que se revelou o ponto onde a arte ganhava mais força. Gérson conta que a escrita apareceu para ele antes como som do que como texto. Ele escrevia poesia para caber na melodia, moldava sentimentos na forma de letra musical. Escrever música foi sua primeira oficina literária.
“O pai que encontrou meu primeiro professor de violão aos 7 anos”, conta. Gérson reconhece que quase tudo que o formou como profissional – e indivíduo – veio de casa, “se ele não tivesse feito isso, eu não teria tido essa iniciação musical, que me permitiu ser o músico que sou hoje”. Arno ouviu a lembrança e sorriu. Depois, contou um pouco sobre a sua própria formação, marcada por internatos, rotinas rígidas, silêncio e leitura como refúgio. “Internato era quase um presídio”, ele disse. “Eu era ruim no futebol… então o que me restava era a leitura.”
Mais tarde, a literatura voltaria até ele, não como um hobby, mas como terapia. “Escrever, para mim, foi melhor que psiquiatria”, confessou, entre risos. “Uma oficina literária custa menos que um psiquiatra, e ainda te faz conviver com outras pessoas”. A frase – dita quase como brincadeira – traduz uma verdade profunda sobre o poder da arte, a mesma que Clarice Lispector descreveu quando disse que “a palavra é o meu domínio sobre o mundo”. Essa é uma forma de autoconhecimento. Para Arno e Gerson, a palavra também cria pontes: entre passado e presente, entre pai e filho, entre quem eles já foram e quem eles vêm sendo.
Caminhos que se cruzam, mas não se confundem
Apesar das conexões profundas, a escrita dos dois não é um espelho. Não partilham manuscritos na fase inicial, não interferem no processo criativo um do outro. “O autor tem que colocar no livro aquilo que ele pensa, não o que os outros pensam”, disse Arno. “Eu nunca mostrei um livro antes de terminar”.
Gerson concordou. “De sã consciência, nenhum escritor escreve uma página hoje e dá amanhã para alguém ler. Isso atrapalha o processo, tira a imaginação do seu lugar.” Mas isso não simboliza distância. Pelo contrário: Arno lê tudo que o filho publica. Não para criticar, mas sim para tentar identificar “alguma coisa da vida dos filhos” escondida em cada história. Esse gesto silencioso e amoroso faz da literatura uma ferramenta que atua verdadeiramente quando partilhada.
Por sua vez, Gerson admite que sempre encontra o pai por trás das próprias raízes criativas, mesmo quando não percebe logo e imediato.
A herança que continua
Quando perguntados sobre alguma memória específica que tivesse sido decisiva para que Gerson seguisse a vida entre livros e partituras, ele não hesitou: “Quase toda lembrança que envolve música e literatura, tem os meus pais na sua raiz.”
Arno completou com uma história que parecia manifesto de vida. Citou poeta cubano José Martí – “Um homem precisa ter filhos, plantar árvores e escrever um livro” – e disse que, com o lançamento, finalmente fechava o ciclo. “Filhos eu tive cedo. Árvores plantei a vida inteira – oliveiras, milhares delas. Faltava escrever o livro. Agora completei.”
A frase soou como um rito de passagem, ou como algo que se entrega ao mundo para continuar existindo depois que já não estivessem mais presentes em matéria física.
Ali, entre pai e filho, literatura, poesia e música, passado e futuro, é notório um gesto simples: o ato de transformar a própria vida em obra, e de oferecer essa obra ao outro, como continuidade. É a confirmação de que, às vezes, o que une gerações não é o sangue, nem hábito, nem coincidências – mas a arte. Aquilo que Gerson escreve nasce, em parte, do que Arno viveu. E aquilo que Arno escreve encontra eco no que Gerson se tornou.
História que não termina pós-lançamento, mas se estende, seguindo o mesmo caminho que o pai abriu e o filho continua a trilhar. Arno e Gerson assumem responsabilidade não apenas escrevendo, mas dividindo essa experiência juntos. Isso traduz aprendizado e permanência.
