Eliene Amorim: a mulher que conecta espiritualidade, educação e projetos sociais

Eliene Amorim é mestre em educação, já foi freira, secretária municipal de Segurança Pública e de Política Para as Mulheres e atua em casas de acolhimento

Esta é a história de uma mulher nordestina que, nos anos 1970, não teve acesso à educação e tampouco teve os seus direitos como mulher respeitados. Porém, encontrou, na educação, no amor divino e na política, o poder para contribuir nas lutas pelos direitos que abrem portas e transformam vidas.

Eliene Amorim conectou o amor de Deus com as teorias acadêmicas sobre teologia e filosofia e usou estes elementos em políticas públicas e projetos sociais para crianças, jovens e mulheres nas comunidades da Região Metropolitana de Porto Alegre. “Não estou só na Santa Marta, estou nos becos e vielas do mundo. Também estou no coração do usuário de drogas, da mulher que exerce a profissão do sexo, na mulher transgênero que a sociedade repugna e ri. Eu estou no coração e vida da mulher negra que trouxe a sabedoria ancestral dos povos indígenas”, diz a ex-secretária municipal de Segurança Pública e de Política para as Mulheres de São Leopoldo, que hoje atua na casa de acolhimento Isaura Maia.

Área externa da Associação Isaura Maia conta com um jardim comunitário, visando à sustentabilidade, uma das bandeiras de Eliene Amorim (JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO)

Educação

A história de Eliene Amorim iniciou em 1967, em Bom Jardim, município localizado em uma região empobrecida do Maranhão. Quando ingressou nos estudos, com nove anos, Eliene ouvia as palavras da mãe, lavadeira – palavras que, inclusive, muitos de nós já ouvimos: “Se tu não estudar a tua vida vai ser igual a minha. Eu não tive esta oportunidade, então voa”.  Ela lembra da mãe como uma mulher politizada, muito dada à arte de comunicar e fazer o bem. Porém, em Bom Jardim o acesso ao estudo era difícil. “Lá a gente sentava na última cadeira e os filhos de comerciantes e donos de terra nas primeiras. Inclusive, tínhamos que trabalhar para as professoras antes de ir para a aula”.

Eliene mora no Rio Grande do Sul há 23 anos. Misturando o sotaque nordestino com algumas expressões gaúchas, ela sai mentalmente da sua sala na Associação Isaura Maia, em São Leopoldo, e retorna à sua rotina quando criança, no contraturno escolar, para compartilhar a sua história com a reportagem da Beta Redação. Ela lembra que estudava pela manhã e, à tarde, puxava água de um poço para a mãe lavar as roupas, pilava o arroz, e, antes de sair da escola, tinha que pegar água em outro poço e deixar na casa da professora. “Eu sempre pensei que isso não estava certo. Eu precisava ter direitos iguais a todo mundo, mas não podíamos nem falar disto na época”, recorda.

Talvez a vocação de levar conhecimento para lugares sem acesso venha da falta de oportunidades na infância ou da vontade de conquistar um assento melhor do que aquele no fundo da sala de aula, já pré-definido para quem nasce pobre. “Desde cedo percebi que eu precisava utilizar a arte de falar, que veio da minha mãe, e a arte matemática, do meu pai, carpinteiro. Eu precisava estudar de verdade. A escola que me deu a última cadeira seria a única capaz de me dar um assento diferente”, lembra.

A educadora de 57 anos conversa com voluntários da Associação Isaura Maia (JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO)

Em busca deste assento melhor, Eliene foi morar com a tia em Belém, no Pará, com 14 anos. Embora a escola fosse melhor, o trabalho dobrou para ter acesso à educação, roupa e calçado. Eliene voltou para Bom Jardim um ano depois, mas se deparou com as mesmas condições. Foi aí que pensou: “Eu vou para São Luís! Na metrópole sempre tem mais atividade e mais oportunidades”.

Na determinação de buscar mais conhecimento e estudos, foi falar com a esposa do prefeito de Bom Jardim na época, Miguel Alves Meireles. “Dona Mírian, quero ir para a sua casa trabalhar para poder estudar”, disse Eliene. Ao fim da pequena negociação conseguiu moradia e trabalho na casa do prefeito em troca de roupas, calçados, alimentação, mas, principalmente, a bolsa de estudo.

O trabalho, porém, não diminuía. Junto a outras quatro mulheres, Eliane acordava às seis da manhã para cozinhar, lavar roupas e, ao meio-dia e meio, estar pronta para ir à escola. “Trabalhava pra caramba! Era uma casa grande que acolhia as pessoas que vinham do interior para fazer consultas, aposentadoria, entre outras coisas na capital, então todos os dias havia muita gente”, relembra da época em que tinha 16 anos. Mesmo assim, Eliene se sente grata, pois foi no colégio particular Henrique de La Rocque, em São Luís, no Maranhão, que conseguiu concluir o Ensino Fundamental.

Na época uma criança com vida de adulto, mas sem acesso a direitos, ela mal sabia que anos depois teria múltiplas formações: graduação em Educação Social, Teologia e Filosofia; mestrado em Educação pela Unisinos e doutorado em Educação, que está cursando, aos 58 anos, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com uma bolsa de estudos.

Religião

Eliene até então era evangélica, por influência dos pais que frequentavam a Igreja Assembleia de Deus, onde, para ela, a linha de pensamento era muito individual, ainda mais para alguém que já havia sentido desde cedo que o mundo era a sua família. “A luz não pode caminhar com as trevas? Eu tenho que ser luz, mas eu não posso estar no meio das trevas? Então como a minha luz vai alcançar aqueles que estão no escuro?”, questionava Eliene.

Então, ela começou a frequentar missas com a mãe da dona da casa, dona Lurdes, e foi aí que os dois primeiros pilares da vida de Eliane se encontram: educação e religião que, posteriormente, irão se conectar com as políticas públicas. Na casa grande do prefeito, ela se identificou com a religião católica. “O caminho de Jesus era conviver com prostitutas, cegos e leprosos, ele era a luz para estas pessoas”. Eliene havia se apaixonado pela história de Jesus e se encontrou nele. “Nos movimentos estudantis religiosos da comunidade do Parque Timbira, em São Luís, eu fui descobrindo que a ideologia cristã tinha um outro lado filosófico e ideológico”, afirma.

Eliene Amorim relembra seu período como freira (JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO)

Na igreja, a jovem de 16 anos começou a participar das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), comunidades inclusivas formadas por pessoas que se reúnem para praticar a fé, estudar a Bíblia e promover a justiça social. Eliene também entrou no Movimento Nacional em Defesa dos Favelados (MDF). “Na época, os movimentos por moradias no Brasil estavam fervilhando”, lembra do período que antecedia o fim da ditadura militar. Eliene queria ser freira pois era a única forma de ajudar a família e ter envolvimento com as lutas sociais no final dos anos 1970. Isto, para Mírian, esposa do prefeito Miguel, não fazia nenhum sentido, já que Eliene era uma moça bonita e poderia se casar com políticos ou continuar estudando para ajudar a sua família. Hoje, essa lembrança é motivo de riso.

Um dia, Eliene saiu com dona Raimunda, que também trabalhava na casa grande e, conforme as palavras de Eliene, era uma mulher negra daquelas “mães grandes do coração enorme”. O destino era a periferia do Coroadinho, em São Luís, uma daquelas favelas construídas ao lado de bairros nobres que gritam ao mundo a desigualdade social, deixando explícito o contraste do morro e do asfalto na capital do Maranhão. Na comunidade havia ocupações e casas construídas sobre palafitas para não entrar água em dias de chuva.

Após atravessar pontilhões no percurso, dona Raimunda e a menina de 17 anos chegaram a uma casa de tijolos, mal rebocada, sem janelas e com uma porta de madeira feita à mão. Quando entraram na casa, outra mulher negra se aproximou e disse: “O que esta moça branca do olho verde quer aqui, dona Raimunda? Aqui não é o lugar dela. Tem muita violência. Nós não temos janelas, nem água potável e as luzes são de rabicho”. Vendo aquele cenário de desigualdade, luta por moradia e com o pensamento decidido em ser freira, Eliene respondeu: “É aqui que eu quero morar. Irmã, meu coração tocou e quero vir morar aqui”.

Foi neste momento que Eliene conheceu a irmã franciscana-laica Nazaré, com quem foi morar na comunidade de Coroadinho, em São Luís, contra a vontade e lógica de qualquer um, inclusive dos seus pais, que tinham parentes na localidade e sabiam que era um lugar perigoso. Entretanto, com 17 anos, Eliene estava disposta a ser freira, pois seria a única forma de continuar estudando, trabalhando, mas além disto, lutar por causas sociais. “Quando eu entrei na casa, uma senhora negra se aproximou, me acolheu com todo afeto e disse: seja bem-vinda!”, relembra Eliene.

Políticas públicas

 A irmã franciscana-laica tinha dois filhos e trabalhava com freis franciscanos da Alemanha, que possuíam cabeças revolucionárias para Eliene. Eles implementaram escolinhas em toda comunidade e faziam o processo de formação para homens e mulheres que tinham o Ensino Médio. “A igreja não é um equipamento social, é um equipamento salvífico. As práticas são semelhantes, mas o objetivo final é o seguimento de Jesus. Os movimentos sociais acabam entrando pelas janelas”, entende Eliene.

Atualmente, a ex-secretária de Políticas Públicas para as mulheres tem como foco o trabalho de conscientização da Violência Sexual contra Crianças (JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO)

Ela seguiu sua jornada vocacional fazendo pastorais e concluindo as etapas para se tornar freira e atender o seu chamado. Foram idas e vindas no início da vida adulta em Brasília, no Maranhão e em Minas Gerais que fizeram uma imersão da jovem em relação às políticas públicas e à religiosidade. “As missões eram passar pelas igrejas das cidades e deixar as pessoas com o coração ardente de amor, conhecimento e força para buscar os direitos e implementar as políticas públicas necessárias, pois só vamos experimentar o céu quando passarmos por ele aqui na terra”.

Eliene conta que fazia missões, andava as regiões a cavalo, visitava famílias o dia inteiro, mas ficava incomodada no final de semana que vinha o padre e as freiras não eram sequer citadas. O ministério era preparar para o homem vir e triunfalmente celebrar. “Eu entendi que a nossa vocação como religiosa não era ser só a flor do altar e nem servir nas grandes instituições particulares, para poder manter nossa vida confortável, mas pobre. Isso me inquietava muito”, afirma Eliene.

Educação, religião e política

Todo este conhecimento educacional, religioso e lutas vividas em diferentes estados do Brasil foram utilizados e transformados em políticas públicas para São Leopoldo. Uma amiga de Eliene, a Irmã Romana, havia estado no município gaúcho e encontrado com Padre Orestes, no bairro Scharlau. Quando voltou, contou para a irmã e a convidou para ir pastorar no Sul. “Lá tu vais aprender a ler a Bíblia como os pobres e com o olhar de Jesus”, disse a irmã Romana.

Entretanto, quando Eliene foi falar com a irmã-superior, Irmã Cecília, ouviu a reprovação: “Não, Eliene. Nós estamos preparando uma transferência para você, abrimos uma casa na Filipinas e queremos te ensinar inglês para você congregar fora do país”. Porém, aos 25 anos, Eliene estava decidida a ir para a Paróquia Santo Inácio, em São Leopoldo. Sendo assim, não renovou os votos com a igreja e pediu um ano de licença das atividades. O próprio Padre Orestes pagou a passagem do ônibus de Brasília para Porto Alegre e se assustou com a aparência jovem da freira: “Você tem certeza de que quer vir trabalhar nas periferias de São Leopoldo? Aqui também não é fácil”. Prontamente, Eliene respondeu: “Sim! Eu vim para isso”.

Camiseta pintada pelas crianças da Associação Isaura Maia com o Girassol, símbolo da luta contra a Violência Sexual
(JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇAO)

Em um dia nublado, em maio de 1991, a mulher que mudaria a vida de milhares de jovens e mulheres leopoldenses pisava em solo gaúcho. Em três meses, já estava totalmente apegada à vila Santa Marta, na época com cerca de 18 famílias atendidas pela Paróquia Santo Inácio. O trabalho social de Eliene junto ao Padre Orestes e outros representantes políticos e religiosos contava com projetos, banheiros comunitários, tanques para lavar roupas, galpão para fazer acolchoados e alfabetização em escolinhas para a comunidade, realizadas pelo hoje vereador Fábio Bernardo (PT).

Para além dos trabalhos locais da comunidade, Eliene lutava por mulheres, crianças e adolescentes. “Quando eu cheguei em São Leopoldo, participei das grandes lutas do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua que ajudou a efetivar a concretude do ECA (Estatuto da Crianças e do Adolescentes)”, conta.

Assim, se criavam elos entre os três pontos cruciais da vida de Eliene: educação, religião e políticas.

Em 2019, a já então mestre em educação pela Unisinos, formada em educação-social, teologia e filosofia, recebeu o título de Cidadã Leopoldense da Câmara dos Vereadores pelos seus feitos sociais na cidade.

Natural do Maranhão, Eliene posa ao lado do quadro de Padre Orestes, quem a trouxe para o Rio Grande do Sul (JOÃO PEDRO CHAGAS/BETA REDAÇÃO)

Com diferentes formações, Eliene é um dos nomes mais fortes se tratando de políticas públicas do estado do Rio Grande do Sul. Já foi diretora da Secretaria Estadual de Direitos Humanos durante o Governo Tarso Genro (2011 a 2015) e trabalhou no Ministério da Educação como consultora da UNICEF na construção do Bolsa Família e na implementação do Programa Universidade Para Todos (Prouni). “A gente ia no Brasil inteiro e ninguém acreditava nesta política de universidade para todos. Vendo, hoje, o meu coração se enche de alegria”, confessa, após receber o agradecimento deste repórter e do fotógrafo desta matéria, estudantes de jornalismo pelo Prouni. Eliene também já esteve à frente de pastas municipais em São Leopoldo como a Secretaria de Segurança Pública (Semusp) e a Secretaria de Política Para as Mulheres (Sepom).

Hoje, Eliene Amorim atua como coordenadora Institucional da Associação Arte e Cultura para Paz Isaura Maia (AAPPIM) que, com diferentes projetos, atende mulheres, jovens e adolescentes. Dentre eles, estão a Casa Caminho Clara-Francisco, Casa da Jéssica e outros locais de acolhimento, integração e educação. Em seu tempo livre, nos finais de semana, Eliene vai até a comunidade Divina Ruah Casa de Magdala, trabalho voluntário com mulheres, com cozinha comunitária e empoderamento feminino, levando saúde mental, artesanato, letramento poético, educador físico e embelezamento.

Mesmo com tanto conhecimento e vivência, Eliene tenta resumir parte dos seus aprendizados. “A filosofia me ajudou a pensar o mundo de uma forma muito mais próxima da gente e muito mais histórica também. A teologia me ajudou a pensar toda a parte histórica da Bíblia e me apaixonar por Jesus de Nazaré, que na verdade, foi um mártir político. Ele não morreu por obedecer, morreu por desobedecer às ordens do Império romano”, sintetiza.

Além de seguir e falar de Jesus, a mestre em educação diz que precisamos traduzir a prática dele para aquilo que a sociedade vive hoje. “Desejamos alcançar no coração das pessoas a prática do bem e da justiça, o bem partilhado, a mesa farta, terra para plantar, comida na mesa das pessoas, alcançando famílias com mais harmonia e mulheres e jovens com mais direitos humanos e políticas públicas”.  

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