Por Bárbara Cezimbra de Andrade, Dener Pedro e Juliano Lannes de Oliveira
A aparição de animais silvestres nas ruas do bairro Jardim Itu Sabará, em Porto Alegre, se tornou mais frequente na vida da comunidade local. Após o início das obras do residencial Jardim Itália, do Grupo Zaffari, câmeras de moradores flagraram a movimentação de graxains e até mesmo a morte de um bugio ameaçado de extinção. Os eventos foram apenas o primeiro sintoma de problemas que motivaram a abertura de um inquérito por parte do Ministério Públido do Rio Grande do Sul (MP-RS), em dezembro de 2024.
Em 1º de maio de 2025, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) protocolou, uma denúncia formal no MP-RS que revela possíveis irregularidades no licenciamento ambiental do empreendimento. Segundo o documento, o projeto prevê a supressão de até 70% da vegetação da Floresta do Sabará, onde há um fragmento de Mata Atlântica, localizado na Zona Leste de Porto Alegre. A denúncia contesta laudos apresentados pelo empreendedor, que classificavam as áreas como estando em estágio inicial ou médio de regeneração.
O projeto, que inclui a construção de condomínios e obras complementares na área conhecida como Floresta do Sabará, abrange cerca de 50 hectares de área verde, logo atrás do recém-inaugurado Cestto Atacadista, também do Grupo Zaffari.
Biodiversidade à beira do colapso
Na denúncia, o InGá reforça que, além de subestimar o estágio de conservação da vegetação, o processo de licenciamento ignorou a presença de espécies ameaçadas – como bugio-ruivo, graxains e mão-pelada. Segundo o instituto, o empreendimento deveria obrigatoriamente ter passado por um Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), uma vez que a área possui 50,4 hectares, tamanho que, pela legislação, exige esse tipo de avaliação quando há risco de dano ambiental significativo.
Atendendo a exigências da prefeitura, o Grupo Zaffari contratou um estudo da Biota Geom, empresa especializada em Licenciamento Ambiental, para a realização de uma análise sobre fauna e flora local. O InGá alega que espécies foram ignoradas pela pesquisa e contesta os dados apresentados, argumentando que são “omissos quanto às espécies não arbóreas (estratos herbáceo, arbustivo, trepadeiras e epífitas), sendo que 85% das espécies ameaçadas de extinção em Porto Alegre são componentes não arbóreos, segundo o Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam)”, aponta o ofício.
Entre as diversas espécies ameaçadas de extinção encontradas e relatadas pelo ofício do InGá, chama atenção o trecho que destaca a informação de que mais da metade das espécies em estágio avançado de regeneração da Mata Atlântica correntes em Porto Alegre foram encontradas pela observação (quatro, de um total de sete) – Schinus terebinthifolius (aroeira vermelha); Cupania vernalis (camboatá-vermelho); Ocotea puberula (canela-guaicá); Enterolobium contortisiliquum (timbaúva). “Uma observação mais aprofundada pode identificar ainda mais espécies”, reflete o documento de denúncia, que acusa o estudo da Biota Geom de não utilizar uma metodologia de observação confiável.
O instituto também questiona a falta de transparência da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre (Smamus) e a paralisação do Comam, que não teve seus membros reunidos nenhuma vez em 2025 – até o momento da publicação desta reportagem.
Críticas técnicas indicam omissões nos estudos ambientais
As denúncias reacendem o debate sobre o rigor – ou a falta dele – nos processos de licenciamento ambiental em áreas urbanas. Para o biólogo e professor da UFRGS Paulo Brack, o licenciamento desconsiderou a real situação da floresta. “Não houve cuidado nenhum. A empresa que fez o laudo ignorou o estágio avançado da Mata Atlântica. Isso muda tudo, porque, em estágio avançado, a legislação só permite retirada em casos de utilidade pública – o que não se aplica aqui”, afirma.
A legislação reforça o entendimento de Brack. A Lei da Mata Atlântica (Lei Federal 11.428/2006) é clara ao proibir o corte ou a supressão de vegetação em estágio médio ou avançado quando ela abriga espécies ameaçadas – exatamente o caso de graxains, mão-pelada e bugio-ruivo. Já o Código Florestal do Rio Grande do Sul (Lei 9.519/1992) determina que florestas nativas e vegetações naturais são bens de interesse comum, sendo vedada sua destruição parcial ou total sem autorização prévia, e ainda condicionada à justificativa de utilidade pública ou interesse social.

Brack explica que a fragilidade dos dados encontrados nos relatórios podem causar um impacto importante, indo além de um mero erro de avaliação. “Essas plantas menores são o componente mais rico da biodiversidade. Sem elas, perde-se a base de todo o ecossistema. A gente está falando de espécies ameaçadas, de plantas raras, únicas em Porto Alegre. Não dá pra repor isso com qualquer muda, em qualquer lugar”, alerta.
Em relação ao parcelamento da obra em etapas, Brack contesta a legitimidade da ação e compreende que prejudica a avaliação do impacto ambiental causado pelo projeto por inteiro. “É como olhar só um pedaço do quebra-cabeça e fingir que entendeu a imagem completa”, analisa.
Órgãos afirmam conformidade com normativas, apesar de questionamentos
Para o promotor do Ministério Público do RS responsável pelo inquérito, Felipe Teixeira Neto, não há exigência legal de EIA-RIMA para o empreendimento. “Esse empreendimento não exige esse estudo. Exige uma licença ambiental que avalia vários critérios, como fauna e flora. Não se enquadra nos requisitos legais para ter EIA-RIMA”, afirma. Segundo ele, a área é considerada um fragmento de mata dentro de zona urbana. “Tem mapas antigos que mostram que essa mata não existia há uns anos atrás. Ela se formou desta maneira mais densa porque ficou sem uso pelo proprietário”, justifica.
O promotor esclarece ainda que o licenciamento está sendo feito em etapas por parte do empreendedor. “O licenciamento hoje é só da abertura do parcelamento do solo, do desmembramento daquela área em outros lotes. Quando eles forem construir dentro das quadras, um prédio residencial, um condomínio, enfim, aí vai ter que ser feito um novo licenciamento daquele pedaço”, declara.

Diante das denúncias, a Smamus também se manifestou para esclarecer as decisões tomadas até o momento.
Em relação à ausência do EIA-RIMA, apesar da área ser superior a 50 hectares, a Secretaria afirma que todos os trâmites seguem rigorosamente a legislação vigente. Segundo a pasta, as licenças ambientais no município são emitidas com base na Lei nº 8.267/1998 e sua alteração, a Lei nº 10.360/2008, além de estarem amparadas no convênio firmado com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). A Secretaria reforça ainda que a obrigatoriedade do EIA-RIMA depende da tipologia da atividade, conforme critérios estabelecidos pela Resolução Consema nº 372/2018, que define quais empreendimentos exigem esse tipo de estudo.
Quanto às críticas relacionadas à possível subestimação da vegetação nativa e à presença de espécies ameaçadas na área, a secretaria afirma que os laudos ambientais foram elaborados por profissionais com qualificação técnica, devidamente registrados em seus respectivos conselhos de classe. A pasta ainda alega que todos os documentos contam com Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), que assegura a responsabilidade legal dos especialistas pelos estudos apresentados.
A Smamus também respondeu sobre a decisão de realizar o licenciamento em etapas. Segundo o órgão, a licença ambiental concedida é específica para o loteamento da área, e não para os empreendimentos que venham a ser instalados posteriormente. Ainda de acordo com a secretaria, até o momento, apenas a quadra destinada ao atacado possui definição de ocupação, e por isso, considera tecnicamente adequada a modalidade de licenciamento adotada.
A Smamus ainda se posicionou sobre a paralisação das atividades do Comam, que está há mais de cinco meses sem se reunir. De acordo com a pasta, as sessões estão suspensas por falta de segurança jurídica, em razão de ações judiciais que questionam a atual composição do conselho. Enquanto não houver julgamento definitivo sobre os recursos relacionados às eleições do colegiado, a realização de reuniões deliberativas segue juridicamente comprometida, sob risco de nulidade dos atos e responsabilização administrativa ou judicial.
Sobre o plano de manejo dos graxains — espécie nativa da fauna local — apresentado pela empresa responsável, a secretaria afirma que o documento foi elaborado por profissionais qualificados, também inscritos em seus conselhos de classe, e está sendo monitorado tecnicamente pela própria Smamus.
“Área urbana é para o homem”, afirma diretor do Grupo Zaffari
O Grupo Zaffari se posicionou sobre o caso reforçando seu compromisso ambiental e o seguimento das normas estabelecidas pelas instituições. “Quem manda é a Smamus, a Fepam e o Ibama. O que eles determinam, a gente faz”, afirma o diretor da empresa, Cláudio Luiz Zaffari.
O Zaffari se defende das denúncias afirmando que seguiu todas as etapas necessárias, desde a compra do terreno, passando pela construção do Cestto Atacadista, até o início das obras das ruas do loteamento. “Todo este processo ocorreu entre 2004 e 2018, quando tivemos a aprovação final, com o registro de imóveis e abertura das matrículas”, explica.
Um dos focos das denúncias apresentadas é a falta de participação popular durante o processo. No entanto, em 2006, ainda no início da tramitação, foi realizada uma audiência pública com moradores do bairro. “Isso está nos registros da prefeitura. Quem não sabe disso é porque é relaxado, porque é só pesquisar”, confronta Cláudio Zaffari, argumentando que, durante a década de 1990, moradores da região chegaram a solicitar, por meio de um abaixo assinado, que a companhia criasse um supermercado no local. A justificativa era o crescimento populacional na Zona Leste de Porto Alegre, de onde os habitantes tinham que se deslocar ao Centro para fazer compras.
De acordo com o diretor, a cidade passa por mudanças e deve atender às necessidades do aumento da população. “Área urbana é área urbana. A cidade é para o homem”, exclama, afirmando que toda ampliação implica na ocupação de espaços ainda não habitados. “Se não fizerem [moradias] aqui, vão fazer nos morros, onde o serviço público não chega”, conclui.

Com base no estudo da Biota Geom, o Grupo Zaffari manterá a preservação de 30% da área verde, distribuindo diversas ações dentro do espaço adquirido, e compensará os 70% restantes através da compra de outro terreno de características parecidas na cidade, na Ilha das Flores. Vale lembrar que uma das contestações do ofício apresentado pelo InGá diz respeito justamente ao percentual de preservação no local, que é definido pelo estágio sucessional de Mata Atlântica da região. O estudo da empresa contratada pelo Grupo Zaffari determinou que o nível do estágio dos remanescentes de Mata Atlântica é médio, enquanto o InGá defende ser avançado, o que implicaria na preservação de 50% no local.
Exibindo fotografias das décadas de 1950 e 1980, Cláudio Zaffari mostra que a região era, em grande parte, descampada, inclusive servindo a uma pista de Motocross. Em meio ao terreno, há algumas manchas de mata densa, com árvores altas e de copa fechada. “Estas regiões serão preservadas”, garante o diretor.
Além disso, outras iniciativas serão adotadas pelo Grupo Zaffari, como a ampliação da Praça Irmã Dulce, com a doação de mais de 11 mil metros quadrados; a renovação da Praça Otto Blumenau, já em andamento; e a ampliação de quase 10 mil metros quadrados da Escola Estadual Japão. Já em relação ao parcelamento do terreno em várias quadras e o licenciamento fracionado para cada uma delas, Cláudio Zaffari explica que as principais medidas ambientais foram tomadas levando em conta o terreno todo. Ainda assim, o loteamento será negociado com diversas empresas, que poderão construir diferentes projetos. Desta forma, caberá a elas a formulação das licenças para cada caso.

O que dizem os moradores
Desde março de 2024, moradores do bairro Jardim Itú Sabará passaram a denunciar irregularidades no local, motivados principalmente pelo aumento no avistamento de animais silvestres circulando nas ruas e nas residências. “Vários moradores têm câmeras em casa, e elas flagraram graxains revirando o lixo. A gente foi atrás para entender que bicho era aquele, e aí descobrimos. Foi justamente quando começou o desmatamento”, relata Morgana Marcon, integrante do conselho de moradores do bairro.
O episódio mais simbólico ocorreu quando Morgana encontrou o corpo de um bugio-ruivo, espécie ameaçada de extinção. “Ele saiu da floresta em busca de alimento, temos isso registrado em vídeo. Quando tentou voltar para a mata, morreu eletrocutado. Eu recolhi o animal, inclusive as patinhas, que ele perdeu no choque elétrico”, lamenta.




A mobilização da comunidade levou à criação do coletivo SOS Floresta do Sabará, que organizou protestos e pressionou as autoridades. Após o início das manifestações dos moradores, o Grupo Zaffari elaborou, em julho de 2024, um plano de manejo para captura de graxains na Zona Leste de Porto Alegre. A proposta previa a transferência dos animais para o Centro de Pesquisa e Conservação Pró-Mata, localizado entre São Francisco de Paula, Maquiné e Itati.