A CPI do Desmonte do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto), instalada em 5 de junho de 2025 na Câmara Municipal de Porto Alegre, nasceu em meio a um cenário de crise: a enchente histórica de 2024, denúncias de corrupção dentro da autarquia e o desgaste visível do sistema de proteção contra cheias. O processo pautou discussões na Câmara e nas redes sociais, muitas vezes causando ruído sobre seu propósito e encaminhamentos.
O que é uma CPI?
As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) são instrumentos de investigação criados pelos Legislativos, no caso, a Câmara Municipal, para apurar fatos determinados de interesse público. Elas têm poder de:
- convocar autoridades e servidores para prestar depoimentos;
- requisitar documentos e informações;
- realizar diligências, vistorias e inspeções;
- encaminhar seu relatório final ao Ministério Público, Tribunal de Contas ou demais órgãos de controle.
Embora tenham poder investigativo semelhante ao das autoridades judiciais, CPIs não aplicam pena, elas produzem um relatório com conclusões e recomendações, que pode resultar em ações administrativas ou judiciais posteriores.
Por que a CPI do Desmonte do DMAE foi criada?
O pedido de abertura da CPI, protocolado pela vereadora Natasha Ferreira (PT), se baseou em três pontos centrais:
- Negligência frente a alertas técnicos para falhas no sistema antienchentes.
- Denúncias de corrupção, especialmente relativas a ex-diretores do DMAE.
- Baixo efetivo de servidores no DMAE: mais de 2.600 cargos estavam vagos segundo dados do Portal da Transparência.
Em entrevista à reportagem, a presidente da CPI, vereadora Natasha Ferreira, reforçou que o objetivo da comissão é esclarecer responsabilidades e entender o porquê da deterioração estrutural do sistema justamente antes da maior enchente da história recente da cidade. “A CPI foi criada porque havia sinais claros de que o DMAE vinha sendo desmontado. Alertas técnicos foram ignorados, casas de bombas estavam paradas e denúncias de corrupção se acumulavam. Depois da enchente, não dava mais para tratar isso como algo isolado, havia um padrão”, declarou a vereadora.

Além disso, o pedido da CPI relaciona diretamente essas questões à enchente histórica de maio de 2024, apontando que falhas nas estruturas de contenção agravaram o impacto do desastre.
Natasha destacou que as visitas realizadas às casas de bombas do Centro Histórico encontraram obras atrasadas que deveriam ter sido concluídas meses antes. Segundo ela, o próprio DMAE confirmou que várias unidades estavam previstas para desativação ou operavam com manutenção incompleta, um indicativo, segundo a vereadora, de que havia “um processo de abandono gradual” da infraestrutura antienchentes.
Um documento que reforça essa avaliação é o Relatório de Auditoria CGM nº 07/2024, da Controladoria-Geral do Município de Porto Alegre. A auditoria aponta falhas recorrentes de manutenção preventiva, atrasos significativos em obras e fragilidades operacionais em diversas casas de bombas.
Além das falhas estruturais e operacionais apontadas pelo relatório da CGM, documentos mais antigos já indicavam que o problema no DMAE era sistêmico e se agravava há anos, especialmente no que diz respeito ao quadro de funcionários. Uma Inspeção Especial do Tribunal de Contas do Estado (TCE), concluída em 2019, identificou uma situação de “precarização progressiva” dos serviços prestados pela autarquia.
Segundo dados analisados pelo TCE no Portal da Transparência da prefeitura, o DMAE possuía 3.634 cargos previstos, mas 2.056 estavam vagos, revelando um déficit de 56% do quadro funcional. A corte alertou que a falta de pessoal comprometia diretamente atividades essenciais como captação, tratamento e distribuição de água, além da manutenção do sistema de drenagem e das casas de bombas, estruturas centrais para o enfrentamento de enchentes.
Sobre isso, a vereadora Natasha Ferreira acrescenta: “A enchente expôs o que já estava acontecendo há anos. A crise só deixou visível um desmonte que vinha sendo alertado por auditorias e pelo próprio Tribunal de Contas. A CPI está mostrando que não foi um problema pontual, e sim um acúmulo de decisões que enfraqueceram o DMAE.”
Qual o status atual da CPI?
A CPI realizou sua sessão final na manhã de 16 de outubro, no Plenário Ana Terra. A reunião foi conduzida pela vice-presidente Cláudia Araújo (PSD), já que a presidente da CPI, Natasha Ferreira (PT), solicitou o cancelamento da votação devido aos episódios de violência no dia 15/10, que envolveram bombas, sprays químicos, balas de borracha e agressões.
A oposição (PT, PCdoB e PSOL) não participou da votação, alegando falta de segurança institucional e física. Mesmo assim, o relator Rafael Fleck (MDB) manteve a sessão e o relatório foi aprovado por 7 votos: Cláudia Araújo, Gilson Padeiro, Jessé Sangalli, Marcos Felipi, Rafael Fleck, Ramiro Rosário e Vera Armando.

O que diz o relatório final aprovado?
O documento indiciou o empresário Luiz Alberto França, delator de um suposto esquema de propina no DMAE, pelo crime de oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público. O relatório solicita investigação sobre o vereador Gilvani “O Gringo” (Republicanos), e apuração da Prefeitura sobre empresas ligadas ao vereador e familiares, com possibilidade de proibição de contratar com o poder público.
O relatório afirma que houve omissão da União no sistema de proteção contra cheias e encaminha o caso para os seguintes órgãos federais: Ministério Público Federal (MPF), Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria-Geral da União (CGU).
Relatório Paralelo
O relatório paralelo da CPI do DMAE, apresentado pela presidente da comissão, vereadora Natasha Ferreira (PT), apresenta uma interpretação distinta da adotada no parecer oficial aprovado pela base governista. O documento sustenta que houve desmonte administrativo, omissão e práticas irregulares dentro do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), apontando essas falhas como fatores que contribuíram diretamente para o colapso do sistema de proteção contra cheias e para os impactos das enchentes de 2024.
Enquanto o relatório oficial, produzido pelo relator Rafael Fleck (MDB) e aprovado atribui a tragédia de 2024 a fatores estruturais históricos, limita a responsabilização e transfere parte da culpa para a União, o relatório paralelo reúne documentos, depoimentos técnicos e dados administrativos que sugerem responsabilidades diretas da gestão municipal.
O parecer alternativo apresenta elementos que, segundo a vereadora, não foram considerados ou foram minimizados no relatório final aprovado. Entre eles:
1. Redução drástica no quadro de servidores – O DMAE teria acumulado mais de 2.600 cargos vagos, equivalendo a cerca de 72% do quadro total, o que teria comprometido atividades essenciais como manutenção, fiscalização e operação do sistema de drenagem.
2. Retenção de recursos – O relatório aponta que aproximadamente R$ 400 milhões do caixa do DMAE não foram reinvestidos em obras e serviços vinculados ao saneamento e proteção contra cheias. A alegação é de que tais valores ficaram retidos pela Prefeitura.
3. Denúncias de propina – O documento apresenta registros de denúncias encaminhadas à CPI e ao Ministério Público envolvendo o empresário Luiz Augusto França Pinto, que relatou pagamento de propina em contratos de manutenção. Segundo o relatório, áudios e comprovantes foram anexados como evidências.
4. Alertas técnicos ignorados – Engenheiros do próprio DMAE teriam emitido alertas, desde 2018, sobre riscos de falhas em estruturas críticas, especialmente nas estações de bombeamento (EBAPs) 17 e 18, no Centro Histórico — justamente as unidades que apresentaram falhas durante as cheias de maio de 2024. O texto paralelo afirma que tais sinais não resultaram em ações estruturais suficientes para evitar os problemas posteriormente registrados.
Ou seja, a divergência entre os dois relatórios é profunda e evidencia a disputa política sobre a narrativa das enchentes de 2024, contribuindo para ruídos de informação sobre a CPI. O documento aprovado pela base governista na CPI segue em direção oposta ao parecer alternativo apresentado pela vereadora Natasha Ferreira (PT).
Apesar de não ter sido votado pela CPI, o relatório alternativo foi protocolado no Ministério Público Estadual (MPE-RS). Ele pede:
- investigação por supostos atos de improbidade administrativa;
- recomposição do quadro técnico do DMAE;
- revisão da política de gestão e de investimentos no sistema de drenagem;
- suspensão de iniciativas consideradas pela autora como parte de um processo de “sucateamento”.
Para a vereadora Natasha Ferreira (PT), as divergências entre os relatórios refletem não apenas diferenças de interpretação, mas um esforço deliberado da base governista para limitar o alcance da investigação. Segundo ela, embora a abertura da CPI não tenha enfrentado resistência, já que a oposição possui as 12 assinaturas necessárias, o andamento dos trabalhos foi marcado por constantes manobras da base aliada ao prefeito Sebastião Melo. “Tentaram desviar o foco discutindo até o nome da CPI, tentaram barrar votações, deixaram de enviar convocações, como aconteceu com o despacho do Darcy Nunes, que simplesmente não foi encaminhado pela presidência da Câmara”, afirma.
Natasha relata que depoentes alinhados ao governo se ausentaram repetidamente, entre eles Darcy Nunes, Valnei Tavares e Fabrício Tavares. “A base tratou isso com naturalidade, como se desrespeitar o processo fosse parte da rotina. Isso mostra que havia interesse claro em impedir que a verdade viesse à tona”, declara. Para ela, a consequência foi uma CPI que terminou sem ouvir figuras-chave para o esclarecimento das falhas no sistema de proteção contra cheias e na gestão do DMAE.
Os próximos passos
Com o encerramento dos trabalhos da CPI e a votação favorável ao relatório do vereador Rafael Fleck (MDB), o documento oficial segue agora para os órgãos recomendados: Ministério Público Federal (MPF), Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria-Geral da União (CGU), que avaliarão se há indícios suficientes para abrir procedimentos administrativos, cíveis ou criminais. Paralelamente, o relatório paralelo apresentado pela vereadora Natasha Ferreira (PT) já foi entregue ao Ministério Público Estadual (MPE), que decidirá se abre investigações por improbidade administrativa, omissão e possíveis crimes ligados à gestão do DMAE e ao sistema de proteção contra cheias.
No âmbito municipal, a tendência é que o governo avance no projeto de concessão parcial do DMAE à iniciativa privada, aprovado logo após o fim da CPI, o que deve abrir uma nova frente de debate jurídico e político, sobretudo pela ausência de estudos técnicos completos e pelas críticas de que o modelo pode colocar o sistema de drenagem e abastecimento em risco.
Para a oposição, os próximos passos envolvem pressionar por medidas estruturais: recomposição do quadro técnico do DMAE, retomada dos investimentos em manutenção das casas de bomba, auditorias independentes e maior transparência nos contratos. Movimentos sociais e sindicatos também devem seguir acompanhando o tema, com possibilidade de judicializar decisões consideradas lesivas ao patrimônio público.
Assim, embora a CPI tenha terminado, seus efeitos ainda estão em curso e o desfecho dependerá tanto da atuação dos órgãos de controle quanto da disputa política que continua a moldar o futuro do saneamento em Porto Alegre.
*Esta reportagem explicativa faz parte de uma série para o projeto VerificaRS, iniciativa de divulgação de conteúdo verificado contra a desinformação climática
