Governo estadual criou núcleo especializado para reforçar investigações e atuar na prevenção
Em setembro deste ano, foi finalizada no Rio Grande do Sul a Operação Darktrace, que tinha como objetivo identificar usuários com armazenamento e compartilhamento de pornografia infantil na internet. A ação foi comandada pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) e o Núcleo de Combate à Pedofilia e ao Abuso Infantojuvenil (Nucope). A investigação já durava meses e conseguiu apreender materiais eletrônicos, como celulares e computadores, além de desmascarar os predadores sexuais que habitavam em Santo Antônio da Patrulha, Capão da Canoa, Caxias do Sul, Gravataí e Porto Alegre.
A notícia da operação vem em um cenário de crescimento em casos de abuso infantojuvenil no Estado: dados recentes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) mostram aumento de 70% nos casos de violência sexual infantil no Rio Grande do Sul em 2024 comparado a 2018. A vulnerabilidade infantil nos meios digitais é um dos fatores para esse crescimento. Conforme dados coletados pela SaferNet no período de 1º de janeiro até 31 de julho de 2025, o Canal Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos registrou 50 mil denúncias anônimas somente de abuso e exploração sexual infantil, correspondendo a mais da metade das notificações no período, que foi de 80 mil denúncias.
Para o ex-perito criminal da Polícia Federal e atual coordenador do Núcleo de Cooperação Internacional da Interpol, Luiz Walmocyr, no entanto, ainda há uma lacuna quando o assunto é enfrentamento especializado a essa situação. Ele mesmo decidiu escrever um livro de fácil acesso e linguagem simples, intitulado “Protegendo Anjos”, no qual conta as experiências que viveu em 14 anos dentro da área de combate ao abuso infantojuvenil. “Quando comecei a trabalhar na área, queria falar sobre isso, é uma coisa que as pessoas botam para baixo do tapete, e é muito mais comum do que se pensa”, compartilha. Um dos principais motivos para o medo em comunicar esse crime é que ele ocorre, em mais da metade dos casos, em relações intrafamiliares. “Isso é como ter uma cascavel na sala. Se não tem noção que ela está ali, você está muito mais suscetível ao risco. Então a sociedade tem que entender que isso está lá para pelo menos minimizar os danos, já que o risco sempre vai existir”, analisa Walmocyr.
Outro fator que se deve considerar é o da vulnerabilidade social. O abuso infantojuvenil em si não é restrito a uma classe econômica ou a algum grupo cultural, mas é um fenômeno que permeia todos os grupos humanos. Isso é intensificado em camadas sociais que não possuem rede de suporte e em que há privação econômica e cultural, pois essas comunidades têm maior exposição à violência física e falta de cuidado.
Núcleo especializado
O governo estadual criou o Nucope para realizar novas investigações e resolver pendências do passado. O núcleo é pioneiro no Brasil contra esse tipo de crime. O coordenador do setor, Marcelo Nadler, explica que o núcleo surgiu com a meta de dar respostas mais rápidas e trabalhar com prevenção e conscientização. “O Nucope é a junção de informática forense, genética forense e perícias psíquicas. Juntamos mais vestígios, integramos dados e os processamos de forma mais eficiente”, descreve. Contando com uma equipe com sete peritos criminais, as investigações ocorrem tanto em crimes virtuais quanto em crimes físicos.
Também para prestar serviço à população que necessita de apoio, o governo investe em órgãos públicos, como o Centro de Referência em Atendimento Infanto-juvenil (CRAI), que busca dar assistência em casos de suspeita ou confirmação de abuso sexual até os 18 anos de idade. Eles possuem uma equipe com pediatras, psicólogos, ginecologistas, entre outros profissionais que fazem uma avaliação geral de casos, além de uma equipe de perícia. As unidades se encontram nas cidades de Porto Alegre, Caxias do Sul, Pelotas, Rio Grande e Santa Cruz do Sul. Apesar disso, a médica-legista e psiquiatra Andréa Tocchetto atenta que o Estado peca em alguns quesitos: “Nós precisamos de mais locais para atendimento e equipes de profissionais que possam dar conta da demanda. O trabalho no Estado possui menos profissionais na rede do que se necessita”.
Consequências
Sofrer algum tipo de abuso com uma idade precoce pode gerar diversos problemas tanto na vida pessoal quanto profissional. Segundo a psicóloga e conselheira presidenta do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS), Jeniffer de Mello, as consequências de sofrer esse tipo de violência na juventude pode variar conforme a gravidade, frequência e contexto, mas quase sempre incluem sentimentos de culpa, medo, vergonha e causam o isolamento, gerando em muitos casos depressão, ansiedade e dificuldades na escola. “O trauma impacta a formação da identidade e a capacidade de estabelecer vínculos seguros. Tudo o que se vive na infância habita a pessoa por toda a vida: é a base sobre a qual construímos nossas percepções, afetos e formas de estar no mundo. Por isso, cuidar da infância é cuidar do futuro coletivo”, diz. Isso tudo pode reverberar em uma vida adulta gerada por desconfiança e frequente presença em relacionamentos abusivos, gerando uma baixa autoestima e ciclos de sofrimento sem fim. O cuidado adequado nesse tipo de caso parte do apoio familiar e principalmente da busca por profissionais especializados que ajudem a tratar o sofrimento gerado tão cedo na vida.
A sociedade, de forma geral, deve ter papel influente na prevenção e identificação de abusos. Primeiro, deve-se quebrar o estigma ao falar do corpo e tempo da criança. A exposição midiática precoce restringe o desenvolvimento cognitivo, emocional e cultural, e por isso se precisa incentivar a infância através de brincadeiras e construção de mundo com vigilância ética e presença afetiva de adultos responsáveis. Segundo, a escuta ativa sem julgamento e observar sinais como mudança de comportamento e retraimento pode ajudar a identificar casos de abuso, que devem ser levados imediatamente às autoridades. “Há um provérbio africano que diz que é preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança. Isso enfatiza a importância da participação da comunidade na criação das crianças, promovendo ambientes seguros por meio da participação de todas as pessoas e instituições”, diz Jeniffer de Mello. Somente assim pode se permitir que crianças habitem seu mundo, desenvolvam sua identidade e saibam identificar os possíveis perigos da sociedade.
