Movimentações são potencializadas pela crescente demanda chinesa por recursos energéticos

Durante a 15ª Cúpula dos Chefes de Estado do BRICS, que ocorreu em Joanesburgo, capital da África do Sul, no final de agosto, foi anunciado que o bloco está se expandindo, com Arábia Saudita, Argentina, Etiópia, Egito, Emirados Árabes Unidos e Irã integrando-o, totalizando 11 países. A reunião, agendada para debater sobre a ascensão do bloco, com informações de que 22 países apresentaram interesse em incorporá-lo, evidencia uma nova etapa da política internacional sul-globalista no século XXI.

A expansão, impulsionada pela ascensão da economia chinesa, intensificou a atração de nações do Sul-Global para o bloco, dando maior projeção ao questionamento dos limites do desenvolvimento socioeconômico do atual sistema de comércio internacional, o petrodólar. O desenho de novas rotas comerciais entre as nações inferiores à Linha do Equador e a China ensejou acordos comerciais que são realizados através da moeda chinesa, o yuan.

De acordo com o jornalista, cientista político e professor de Relações Internacionais Bruno Lima Rocha, as atuais movimentações dos BRICS realizam um enfrentamento às regras do petrodólar, sistema monetário internacional inaugurado em 1971, que foi encabeçado pelo então então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. “Em primeiro lugar devemos entender que o BRICS, ao contrário do que ocorria no período da Guerra Fria, não é um bloco que tem um verniz ideológico, nem está oferecendo um modelo de organizar a vida em sociedade. O que está em jogo é uma disputa intracapitalista, entre desenvolvimento econômico a partir de países que estão no Sul-Global e o Ocidente consolidado, liderado pelos Estados Unidos, e, na sequência, pela União Europeia, que subordinam parte da humanidade no pós-Segunda Guerra e depois no pós-Guerra Fria. Ou seja, está sendo invertida em termos econômicos a ordem posterior a Bretton Woods, quando cai o padrão dólar-ouro e se avança o padrão petrodólar”, contextualiza Rocha.

Em 1944, durante a Conferência Monetária e Financeira Internacional das Nações Unidas e Associadas, também conhecida como Conferência de Bretton Woods, o padrão dólar-ouro foi estabelecido como sistema de comércio internacional. 27 anos depois, em 1971, iniciou a era padrão petrodólar, potencializado pela Arábia Saudita, que iniciou em grande ritmo a compra de armas e títulos da dívida dos EUA com os dólares adquiridos pela venda do petróleo aos estadunidenses.

Do dólar ao yuan

Bruno Lima Rocha ressalta o papel do dólar na manutenção geopolítica da hegemonia dos Estados Unidos e os impactos que a moeda estadunidense potencialmente sofrerá com a ascensão dos BRICS e o crescimento econômico exponencial da China, alimentado pela constante valorização do yuan e o seu uso em transações internacionais feitas pelos países sul-globalistas. “O dólar é o principal fator da hegemonia dos Estados Unidos hoje. Ele é a moeda corrente do mundo, é a moeda transacional mundial, e para adquiri-lo os países compram a dívida pública de resgate, ou seja, títulos dos Estados Unidos que vencem rapidamente. O que mudou é que a China resolveu decretar uma independência geoeconômica, ou seja, expandir a sua projeção de poder com o novo arranjo econômico. Isso vem dando certo e é possível que os países alinhados no BRICS já tenham relações econômicas fora do dólar, podendo, sim, atingir os Estados Unidos e sua hegemonia”, explica Rocha.

No processo de expansão dos BRICS, a Arábia Saudita, principal pilar geoeconômico do petrodólar, sinaliza uma nova rota comercial do petróleo com a China, ensaiando possibilidades de venda do recurso energético para o país asiático em yuan. Concomitante a esse processo, a sede nos Emirados Árabes Unidos da empresa francesa do setor petroquímico e energético TotalEnergies anunciou, em março deste ano, a venda de gás natural liquefeito para a China em yuan.

Nações do Sul-Global ensaiam trocas comerciais com a China fora do dólar, utilizando a moeda chinesa. Foto: Mussi Katz

Marco Fernandes, pesquisador do InstitutoTricontinental de Pesquisa Social, cofundador do Dongsheng, historiador, e doutor em Psicologia Social, nomeia esta nova etapa dos BRICS de “BRICS 11”, em alusão à expansão do bloco geoestratégico, e aponta para um possível surgimento de novas rotas comerciais internacionais que já é chamado por certos estudiosos da geopolítica como “petroyuan“. “O petrodólar pode vir a sofrer um duro golpe com a inclusão da Arábia Saudita ao BRICS 11, já que os sauditas são justamente o maior pilar histórico do esquema do petrodólar. Agora estamos vivendo uma transformação importante do mercado global de petróleo, com a China em processo de se tornar a maior compradora do recurso energético. Hoje, o primeiro e o terceiro maiores exportadores de petróleo para a China – Rússia e Iraque, respectivamente – já vendem em yuan para os chineses. Já o segundo maior exportador, a Arábia Saudita, vem sinalizando que pode fazer o mesmo”, elucida Fernandes.

Gráfico mostra que em 1996 a China era a terceira nação que mais comprava petróleo, com números mais que cinco vezes menores que os dos Estados Unidos. Arte: Reprodução/CanalArco/YouTube
27 anos depois, a China, já sendo o segundo país que mais compra petróleo no mundo há 20 anos, se aproxima dos números anuais dos Estados Unidos. Arte: Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP)

O consultor de Comércio Internacional da BMJ Consultores Associados, Tito Sá, fala que o exclamado autoritarismo do governo chinês é uma pauta secundária para os países que estão contemplados nos BRICS 11. “Hoje os BRICS 11 são sinônimos de dor de cabeça para as potências ocidentais e é fato que a China aproveita a sua liderança nos BRICS 11 para aumentar o seu capital geopolítico. Através desse grupo, o país asiático busca avançar a sua influência política e econômica em todo o mundo. Então, por exemplo, a gente pega aí os novos membros, como a Argentina ou a Etiópia. O que esses países querem? Aderir aos BRICS e atrair mais investimento chinês. A grosso modo, neste cenário, pouco importa se trata-se de uma democracia liberal ou de um governo autoritário. O interesse aí é essencialmente econômico e comercial”, comenta Sá.

Sá reitera também que, em se tratando de comércio internacional e alianças geopolíticas estratégicas, o teor democrático ou autoritário do país é secundarizado, e que esta lógica pode ser observada na historiografia geoeconômica dos Estados Unidos. “É importante destacar que, quando se trata de comércio e alianças estratégicas, a natureza autoritária ou democrática de um país muitas vezes tem um papel secundário, e esta lógica vale para a maior economia do mundo também, que são os Estados Unidos, que mantêm uma relação longa e estratégica com a ditadura saudita, por exemplo”, complementa.

Presidente Lula, acompanhado do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, escuta atentamente o discurso de Xi Jinping, presidente da China, durante a 15ª Cúpula dos Chefes de Estado do BRICS. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A origem e o futuro dos BRICS 11

O BRICS, que agora começa a ser chamado de BRICS 11, surgiu em 2009 com o nome BRIC, então incorporado somente por Brasil, Rússia, Índia e China. Dois anos depois, a África do Sul se integrou ao bloco, renomeando-o para BRICS. A ideia para a criação do bloco geoestratégico surgiu a partir de demandas político-econômicas de países do Sul Global que alegavam desfavorecimento por parte dos organismos multilaterais, como a ONU, o G20, o FMI e o Banco Mundial.

Como esclarece Marco Fernandes, a década de 2010 foi marcada por elevadas expectativas com uma possível maior influência das nações do Sul Global na geopolítica, sobretudo com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, presidido pela ex-presidenta Dilma Rousseff, e com o Acordo de Reserva Contingente, fundo monetário do bloco. “A partir de meados de 2010 criou-se expectativas de que os países que incorporaram o bloco fossem mais escutados pelos organismos multilaterais. Entretanto, com a crise política que acometeu países pertencentes aos BRICS 11 na última década, como o Brasil, com o golpe de 2016 e o posterior governo de extrema-direita eleito em 2018, e como a Índia, com a eleição de Narendra Modi em 2014, o grupo se enfraqueceu”, explica.

Fernandes contextualiza o processo que culminou na crescente importância geopolítica do BRICS após o período de esfriamento nos avanços do grupo na década passada. “Sequencialmente a aquele período, o que vimos nos últimos anos foi um esvaziamento do G20 e uma concentração de poder de novo no G7, principalmente nos EUA. Logo depois, Lula volta à presidência do Brasil e Modi não está mais tão próximo da OTAN. Some isso ao aumento da agressividade das potências ocidentais em relação ao Sul Global desde o início do conflito militar na Ucrânia. Tudo isso junto criou uma espécie de tempestade perfeita que fez com que os BRICS obtivessem o interesse e a importância geopolítica que estamos vendo hoje”, reflete Fernandes.

Chefes de Estado dos países participantes do G7 se reúnem na prefeitura de Hiroshima às vésperas da mais recente reunião do grupo, ocorrida em 21 de maio de 2023 no Japão. Foto: Government of Japan/Wikimedia Commons

Marco Fernandes conclui apontando para as ofensivas do G7 contra o crescimento dos BRICS 11, ressaltando a liderança dos Estados Unidos nesse processo. “Eu diria que, até agora, a única coisa que os EUA conseguiram fazer contra a expansão dos BRICS 11 foi mobilizar a grande mídia corporativa ocidental e seus reprodutores nos meios de comunicação hegemônicos de inúmeros países, inclusive o Brasil, contra a expansão do bloco. Falo isso porque há veículos de mídia que dizem que os recentes desdobramentos foram uma derrota para o Brasil, o que é um absurdo. O Brasil sai fortalecido dessa cúpula ocorrida em agosto. No mais, precisamos esperar os próximos meses para ver que medidas serão tomadas por Washington daqui para frente. Quatro países do grupo já sofrem sanções dos EUA: Rússia, China, Etiópia e Irã. Ressalto que a incorporação da Etiópia e, sobretudo, do Irã é um recado claro para o governo estadunidense daquilo que o Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República para relações internacionais do Brasil, declarou em Joanesburgo: ‘O mundo não pode mais ser ditado pelo G7’”, conclui Fernandes.