O calor de 30ºC torna o ar pesado na tarde em que chego à pequena loja 12, na rua Doutor Mário Totta, na Zona Sul de Porto Alegre, onde funciona a Geleias da Bisa. Mas a sombra generosa de uma enorme árvore que cerca o pequeno café cria um alívio imediato. Antes mesmo de tocar a campainha, um moço que acabara de sair da loja anuncia sorrindo: “Aqui só tem coisa boa”.
O lugar é aconchegante, decorado com delicadeza: prateleiras de potes coloridos e mesas simples de madeira. Aline Lucas, a proprietária, está ocupada atendendo um casal. À porta, algumas abelhas sem ferrão circulam tranquilas perto de uma pequena colmeia instalada. “Elas não incomodam, não”, me explicaria Aline depois. Na prática, parecem até funcionárias informais do lugar.
Quando Aline finaliza o atendimento, se aproxima para iniciar nossa conversa. Professora universitária de Engenharia Química, ela dá aulas à noite. Durante o dia, toca o café e a produção de geleias que iniciou durante a pandemia com a sua avó, Rosalina, personagem central desta história. Aos 95 anos, hoje a Bisa fica mais no backstage da produção. “Ela tinha 90 anos quando começamos, bem no meio da pandemia. Eu sabia que ela não ia aguentar ficar parada”, conta.
Para manter a rotina e distrair a avó, Aline propôs que elas fizessem geleias. Rosalina produzia na própria cozinha e Aline entregava os potes. “Eu dava aulas online, estava tudo muito difícil. Saía para fazer entrega e era como respirar um pouco”, afirmou. Assim, entre necessidade e afeto, surgiu a primeira semente do empreendimento.

Quando a marca nasceu
A primeira geleia foi a de figo. “Eu tinha um pé de figo em casa. Levei para ela, fizemos, e ficou muito boa”, lembra. A aprovação veio primeiro de família e de amigos, que ganharam pequenos potes acompanhados de cartões feitos à mão. Depois vieram outras receitas tradicionais, entre elas a geleia de abóbora, que até hoje permanece exatamente como a Bisa fazia. “As receitas tradicionais eu não mexo. A de figo e a de abóbora são dela. Mas em outras receitas acabamos mexendo mais”, diz Aline.
O que começou com pequenos potes distribuídos evoluiu rapidamente. “Ali percebemos que precisávamos profissionalizar”, explica. A primeira mudança foi montar uma cozinha apenas para a produção. Aos poucos, novos equipamentos e rotinas mais técnicas foram incorporados e, em 2021, a marca se transformou em negócio formal.
Em 2023, Aline passou a participar de feiras artesanais para promover a marca. “Era sábado e domingo e carregava muito peso. Cheguei a estragar a coluna e fazer fisioterapia”, lembra. Esse foi o marco para começar a busca por uma loja física, onde, em março de 2024, elas se estabeleceram. Em setembro, veio o café. Aline considera esse momento o início da nova fase.
Pequeno refúgio
Sentada em uma das mesas, observo o entorno: o silêncio é perceptível. Só se ouvem passarinhos. O isolamento do local tem seu lado difícil, já que há muitas lojas fechadas no condomínio e baixa circulação nos finais de semana. Mas Aline vê bastante beleza no lugar: “Eu não sei se escolheria um ponto na rua. Aqui tem uma paz que combina com a essência da marca”.
Aline trabalha com duas funcionárias na produção. No café e na loja, apenas ela atende. “Não é fácil. Às vezes acho que não vou dar conta, mas o empreendedorismo é um bichinho que te pica. Mesmo cansada, escolheria tudo de novo”. Ela explica que o trabalho é todo manual, exceto dois passos automatizados para otimização de tempo e evitação de sujeira.
Nesse ritmo, a Geleias da Bisa cresceu. Em 2025, chegou ao quarto lugar no Prêmio CNA Brasil Artesanal de Geleia com o sabor de pêssego. Aline diz que não pensava muito sobre uma vitória quando se inscreveu ao prêmio, já que havia mais de 200 concorrentes espalhados pelo Brasil. Hoje, essa conquista é motivo de orgulho para a loja, especialmente para a Bisa.

Vida de Bisa
Rosalina, hoje com energia reduzida, não encara mais longas horas na frente do fogão. Mas continua acompanhando tudo, provando receitas, sugerindo ajustes e observando texturas. “Ela tem uma sabedoria absurda e todas as receitas dela estão na cabeça”.
Com a idade, Rosalina migrou de função. Hoje, ela se dedica a produzir panos de prato que ficam expostos na loja, dobrados ao lado das geleias no balcão de atendimento. É uma atividade simples, mas essencial para ela. “Para ela, trabalho é vida. Ela precisa se sentir útil, e é assim que ela se mantém viva”. Pergunto se existe uma frase, um ensinamento que a acompanha diariamente. “Tem que ter calma. A Bisa sempre diz isso. Quando dá problema, ela fala que um dia ruim não quer dizer nada, já que amanhã é outro dia”.
A presença da avó no negócio, mesmo em outra função, mantém viva a origem da marca. A sabedoria de Rosalina segue moldando cada lote produzido, mesmo quando não é ela quem mexe a panela.
Sabores e parcerias
As geleias seguem a mesma filosofia desde o início: sem conservantes químicos, com 60% menos açúcar e foco no sabor da fruta. A proposta é simples e perceptível já no primeiro olhar, com cores vivas e textura que mantém pedaços naturais. “Nós trabalhamos com o que consumimos em casa. A maioria dos sabores nasceu dessa memória”. O cardápio, que começou com receitas tradicionais, hoje equilibra com o experimental. Há sabores clássicos, como o figo e a goiaba, mas também há variações como abacaxi com pimenta e laranja com gengibre.
Nos últimos anos, a marca passou a firmar parcerias com produtores locais e pequenos empreendedores, “As frutas vermelhas vêm de produtores orgânicos da serra. A bergamota, buscamos produtores perto do Lami. Nosso café vem de Minas por um rapaz que mora na serra”. Para Aline, apoiar pequenos comércios é parte da identidade do negócio. “Se os pequenos se ajudarem, um dia todos ficamos grandes”.

Movimento na loja
Durante a semana, o movimento é maior por causa de uma escola próxima. Aos finais de semana, o fluxo diminui, e Aline encontrou uma solução criativa: eventos de manualidades. “Tem crochê, bordado, pintura em caneca, e funciona muito. As pessoas querem esse retorno ao artesanal”, afirma.
A clientela é majoritariamente feminina, entre 40 e 60 anos, e pessoas mais idosas que se identificam com a história da avó. Porém, Aline busca alcançar outros públicos: mães que desejam fazer introdução alimentar aos seus filhos ou reduzir seus consumos de açúcar, pessoas interessadas em produtos menos industrializados e um público fit que procura opções mais naturais. As geleias zero açúcar da marca são feitas só com fruta, servindo bem quem quer diminuir a ingestão de açúcar.
Futuro da marca
O plano para os próximos anos é crescer, mas com limites claros. Ao contrário do que costuma ocorrer com marcas que recebem prêmios, a prioridade dela é a expansão, mas sem diluir a essência artesanal que tornou o produto reconhecível. “Não me imagino virando uma super fábrica de geleia”, afirma Aline. “Nosso processo é artesanal. Quero entrar em algumas redes, alcançar mais pessoas, mas sem perder a essência. O que nos diferencia é essa mão artesanal”.
Ao sair, o moço da entrada já não está mais lá. Mas, depois da visita, sua frase faz ainda mais sentido. De fato, ali só tem coisa boa.
