Estreante olímpica em 2024, modalidade é utilizada como ferramenta sociocultural em comunidades periféricas do estado  

Nos fundos da casa onde reside, no bairro Restinga, zona sul de Porto Alegre, Julio Cesar Oliveira, 38 anos – mais conhecido como b-boy Julinho (o “b” vem de breaking e é como os atletas deste esporte são chamados) -, construiu seu estúdio de dança onde ensina breaking para cerca de 40 crianças da comunidade. Caracterizado por seus movimentos acrobáticos, a dança é um dos quatro elementos que constituem a cultura hip hop e a ferramenta escolhida pelo arte-educador para transformar a realidade de jovens da comunidade. Um trabalho social e artístico que talvez nem existisse, não fosse a insistência do breaking em entrar na vida do Julio.  

Em janeiro, dançarinos participaram de apresentação cultural no Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino (Casef) em Porto Alegre. (Foto: Arquivo Pessoal/Restinga Crew)

“Quando eu era garoto, só gostava de comer e jogar videogame. Meu irmão já dançava e ele falava para mim ‘bah guri, tu só quer ficar sentado comendo, cada vez mais gordo, isso vai te fazer mal’. Mas a dança não chamava atenção”, conta. Aos 15 anos, assistindo a uma fita no videocassete com passos de breaking, Julio percebeu que havia movimentos que usavam apenas os braços, detalhe importante para um garoto com problemas de sobrepeso e que não queria “rolar no chão” usando a cabeça e as costas. Na insistência do irmão, aceitou acompanhar a um ensaio de breaking, mas o alto nível técnico dos dançarinos e certas brincadeiras em relação ao seu tipo físico, criaram um bloqueio no garoto. 

Julio voltaria a ter contato com a dança em 2002, durante um passeio escolar na Expointer, quando o amigo começou a dançar ao lado do ônibus. “Fiquei impressionado. Contei da minha experiência negativa e ele disse ‘cola comigo’. A partir dali, começamos a fazer exercícios e treinar juntos. Meu irmão também deu suporte, explicando alguns passos”. Ele e o amigo participaram de oficinas de dança e integraram durante meses o grupo Realidade de Rua, na zona leste. Durante uma das apresentações, os dois foram ofendidos pelo fato de serem moradores da Restinga e decidiram, a partir daquele momento, criar um grupo que tivesse a identidade do bairro. Nascia ali o Restinga Crew, única equipe de breaking que não interrompeu suas atividades e permanece atuante na Capital. 

Dançarinos do Restinga Crew participaram da 10ª Batalha de Breaking da ONG Vida Breve. À direita Airton Schirmer, no centro b-boy Julinho e agachada, à direta, b-girl Céia. (Foto: Arquivo Pessoal/Restinga Crew)

“Foi a curiosidade e o desafio de superar os limites que me fizeram gostar do breaking. De repente me encontro andando com os braços, a cabeça no chão, transformando possível aquilo que nem parecia, ainda mais com o meu porte físico”. O hábito de treino e os cuidados com o corpo são alguns dos ensinamentos que o arte-educador busca transmitir, incentivando a autovalorização dos dançarinos. “Quando eu comecei a dançar e adquiri consciência sobre a importância da parte física, entendi que não podia usar drogas, beber ou me envolver com o crime. A gente não precisa disso para ser alguém, é o que tentamos passar à comunidade”.

Tem pessoas que olham nossa dança e dizem ‘vocês são loucos’, num sentido de estarmos drogados, mas quem está drogado não faz o que a gente faz, não consegue dançar breaking”, destaca Julio. 

Essa mesma ideologia de autovalorização é defendida a 87 quilômetros da Capital, na Escola de Artes Urbanas da ONG Vida Breve, em Taquara. A proposta é usar o breaking como ferramenta de prevenção ao uso de drogas e de formação cidadã de crianças e jovens. Conforme o idealizador e atual presidente da ONG, Airton Schirmer, 57 anos, foi necessário trabalhar quase às escondidas durante um período, pois havia resistência de escolas tradicionais e igrejas em relação ao hip hop. A aceitação aconteceu aos poucos e hoje mais de 570 pessoas são atendidas nas diferentes atividades da organização.  

Airton foi o primeiro professor de hip hop na ONG, ensinando posteriormente as filhas – sendo a mais nova especialista em Street Dance – e hoje promove uma metodologia em que todos são vistos como mestres, ou seja, devem ensinar uns aos outros a dançar. “No começo tivemos muita dificuldade em encontrar professores, pois queríamos um perfil específico. Alguém que não soubesse apenas dançar, mas que fosse um exemplo de pessoa”. A cidadania é um valor que perpassa todos os projetos da ONG. O objetivo é criar com a organização um foco de resistência de uma melhor sociedade que se multiplique, mostrando que o breaking e a cultura hip hop podem contribuir nesse processo.

ONG Vida Breve realiza flash mobs e intervenções artísticas pela cidade aproximando a comunidade da cultura hip hop. (Foto: Arquivo Pessoal/ONG Vida Breve)

Por mais mulheres no Breaking

Claudisséia Santos, 42 anos, é mãe de três filhos e a pioneira no estado com mais tempo de treino no breaking. Em 2012, foi a primeira gaúcha a representar o Brasil numa competição internacional. “Minha pretensão nunca foi somente o título, mas especialmente colocar o Rio Grande do Sul na rota de visibilidade do esporte”. 

Quando a b-girl Céia começou a dançar, em 2006, os homens predominavam na cena gaúcha de breaking. O cenário pouco se alterou em dezessete anos, já que eles ainda representam cerca de 80% dos praticantes, conforme levantamento realizado pela Federação Gaúcha de Breaking (FGBRS). “Em muitos eventos eu era a única mulher competindo contra 16 b-boys. Tomei para mim essa causa, e isso me fez continuar”, afirma. 

B-girl Céia foi a primeira gaúcha a representar o Brasil numa competição internacional: o Top B-boy, realizado no Chile em 2012 (Foto: Arquivo Pessoal/Claudisséia Santos)

B-Girl Céia começou tarde na dança, aos 26 anos. Após uma relação violenta e no recomeço de uma vida de mãe solo, levou os filhos para uma aula de breaking, e começou ela mesma a praticar. Quatro meses depois, entrou para o Restinga Crew, tendo b-boy Julinho como professor. Um ano e meio depois, iniciou um curso de arte-educadora, tornando a prática profissão. “Tranquei minha graduação de Filosofia e levei toda a minha vida para o lado social”. O que ela não imaginava era liderar a construção de uma federação, e tampouco se tornar a primeira presidente: “Eu quis fazer isso. Chamei a cena do breaking e falei ‘quero criar uma federação, eu vou me dedicar, é um trabalho árduo, não é remunerado, mas vou fazer isso’. Foi de certa forma uma retribuição pelo que o esporte fez para mim”, explica.  

A criação da federação surgiu, na verdade, por uma questão de necessidade: em 2020, o breaking foi confirmado no programa Olímpico, tendo sua estreia marcada para os Jogos de Paris, em 2024. Após o anúncio, houve uma mobilização mundial para formalizar o esporte e estruturar as seleções. Até agosto deste ano, 18 estados brasileiros estavam federados, além da criação da confederação, representada pelo Conselho Nacional de Dança Desportiva (CNDD). 

Investir na base e fomentar a participação das mulheres no breaking estão entre as principais metas da FGBRS, que já teve importantes vitórias. Segundo Céia, as duas primeiras conquistas foram a inclusão do fomento ao esporte no plano diretor de Porto Alegre, que está em processo de revisão, e a autorização de uso, pelo município, de um terreno no bairro Restinga, que será sede do projeto Pavilhão Eco Sustentável da Cultura Hip Hop e dos Esportes Radicais.  

O ciclo pós-olímpico

Para os entusiastas Julio, Airton e Céia, consolidar o breaking e ser reconhecido pela sociedade é a principal medalha a ser conquistada nas Olimpíadas, seja ele enquanto dança, cultura, esporte ou arte. O breaking sobreviveu por anos no submundo da cultura hip hop, sem investimentos e oportunidades. Em 2024 temos a chance de mostrar nosso produto, chamando atenção para os projetos sociais e mostrando a importância de investirmos na base para lançarmos mais atletas a partir de 2028”, afirma a presidente da FGBRS.  

Inclusive, alguns desses atletas poderão ser gaúchos. Isso porque a ONG Vida Breve, de Taquara, se destaca na formação de possíveis atletas olímpicos, estando estes bem colocados no ranking estadual e que já contam com o apoio de patrocinadores. “O breaking caiu de paraquedas, mas já temos praticantes prontos, que treinam conosco desde os 4 anos de idade”, explica Airton.  

Por meio das oficinas de hip hop e street dance, organização busca formar dançarinos desde a base. (Foto: Arquivo Pessoal/ONG Vida Breve)

Entretanto, para a grande maioria dos atletas, viver do esporte não é uma opção. Garantir maior apoio financeiro à cena do breaking, seja por meio das federações ou na criação de programas de incentivo, é viabilizar a preparação de quem deseja viver da dança e ainda fortalecer o trabalho daqueles que buscam ser referência dentro das comunidades.  

“Quero que surjam mais b-boys e b-girls, que o pessoal não desista, pois eu sei que é difícil. Mesmo com um tendão do ombro rompido, virilha ‘zuada’, continuo praticando, treinando. Gosto muito mesmo do que faço”, conta b-boy Julinho. Um desejo compartilhado pela FGBRS e pela própria b-girl Céia: “Espero para os próximos anos uma cena com mais mulheres, um breaking consolidado, pois hoje ainda é fragmentado e individualista. Que a gente possa estar colhendo frutos do que estamos plantando hoje. E acima de tudo, que sejamos vistos e ouvidos, pois não é porque dançamos que não temos fala”. 

Aula de breaking ministrada pelo b-boy Julinho no estúdio de dança na Restinga. (Foto: Arquivo Pessoal/Restinga Crew)