Já em sua 11ª edição, Festival Gaúcho de Pole Dance e Artes é palco de histórias de superação, que celebra empoderamento e diversidade dos praticantes
A ansiedade fervilhava entre os dançarinos nos camarins, fazendo o som dos preparativos serem ouvidos da plateia, onde familiares, amigos e curiosos – como esta repórter – ocupavam suas cadeiras. No centro do palco, três barras de pole dance eram sustentadas por uma estrutura de metal e um tablado de madeira. Foi nelas que o espetáculo aconteceu. Quando as luzes se acendiam e a música preenchia o auditório da Associação Médica do Rio Grande do Sul – AMRIGS, era impossível não se arrepiar. O olhar, vidrado na elasticidade de cada acrobacia de solo, giro e parada na barra, duvidava, por vezes, ser possível executar alguns daqueles movimentos. E bastava observar as expressões faciais – de muita força e concentração -, o desenho dos músculos abdominais e dos braços, para ter a dimensão do preparo físico utilizado para executar cada movimento.
“Apesar de parecerem coisas diferentes, arte e esporte estão muito conectados. Para ser um bom pole dancer artístico, você precisa ter passado pelo “pole sport”. Ele é essencial para a base e na construção corporal do dançarino”, afirmou Gigi Octave, idealizadora do evento.
Na edição de 2023, que aconteceu no dia 11 de novembro, o Festival Gaúcho de Pole Dance e Artes trouxe como tema “Pole in the jungle”, celebrando a potência e diversidade da selva, bem como a conexão humana com a natureza. Ao longo de seis horas de evento, dividido em duas sessões, foram 65 apresentações de convidados e inscritos. A proposta de um festival temático é, justamente, incentivar a criatividade dos dançarinos, fazendo-os terem uma visão mais abrangente, que inclui roupa, cabelo e maquiagem.
Para além de um espaço artístico e de superação individual, o Festival cumpre, também, a função de quebrar paradigmas e preconceitos, uma vez que é preciso ultrapassar o imaginário que reduz o pole dance às performances de strippers, e reconhecê-lo enquanto prática esportiva.
Acrobacias para expulsar a depressão
Amanda Mangeon sofre de depressão há quase trinta anos. Bióloga, mãe e atual servidora pública, ela enfrentou, em janeiro de 2020, a pior crise da doença. A crise foi o resultado de um somatório de acontecimentos que incluem a perda da avó, do pai, um relacionamento confuso e uma mudança de carreira. Ao encontrar certa estabilidade, a fluminense de Niterói-RJ, decidiu se presentear com uma aula experimental de pole dance, inspirada nas fotos de amigas do trabalho que já praticavam a modalidade. “Terminei a aula superfeliz e já me matriculei no estúdio de dança. Seis dias depois, comemorei o meu aniversário e foi quando recebi a notícia sobre o decreto da pandemia. Então, não consegui fazer minha primeira aula”, contou.
A partir dali, o estúdio passou a oferecer aulas virtuais, mas por falta da barra de pole dance, Amanda realizava somente atividades de flexibilidade e dança. As aulas foram sua companhia durante os dias de isolamento: “Esperava com ansiedade o horário da aula”, comentou. Em setembro daquele ano, ela pôde enfim fazer a primeira aula presencial, e desde então nunca mais parou. Aos 44 anos, Amanda considera estes como sendo seus dias de sorte, pois sua vida só melhorou depois das aulas. “Fico receosa em dizer que o pole ajudou a superar a minha depressão, porque quando você tem um problema psiquiátrico, você precisa buscar ajuda especializada. Mas, com certeza, ele foi uma ferramenta essencial no processo”.
Toda essa jornada de luta e superação foi interpretada pela Amanda no 11º Festival Gaúcho de Pole Dance e Artes. Essa foi a terceira participação dela no evento, que é o primeiro da modalidade criado no Brasil. “O pole dance foi significativo para eu estar no lugar que me encontro hoje: feliz e realizada. A execução não foi perfeita, mas teve algo de poético até nas falhas da apresentação”.
Reconexão com a arte
O pole também foi importante na vida da gaúcha Marina Cabral, outra participante do festival. Sua performance, colorida e vibrante, foi a oportunidade de colocar em prática o pole coreográfico que vem ensaiando nos últimos anos. “Nessa edição vim com um nível um pouco mais alto”, afirmou ela ao comparar com a primeira apresentação, em 2022.
Além de reconectar Marina com a arte, o pole se transformou em seu empreendimento: o Nébula Pole Fitness Studio, em Charqueadas. “Na pandemia, eu me vi num momento difícil, porque tudo que eu gostava parou e só tinha sobrado aquilo que não fazia meus olhos brilharem, que era o trabalho no comércio”. Assim como Amanda, Marina também fez aulas de pole virtualmente, emendando, ainda, uma graduação em Educação Física. “Comprei uma barra, parcelada em 12 vezes, para poder fazer as atividades. Hoje, faço aulas presenciais com a mesma professora e consegui abrir, em maio, meu estúdio. O primeiro de toda a região carbonífera”.
Para a idealizadora do Festival, que também é multiartista e educadora física, Gigi Octave, o evento tem justamente o propósito de empoderamento. “Se trata de encontrar o amor-próprio e crescer artisticamente. É um olhar para dentro. Você não fica mais sensual e atrativa por estar fazendo pole dance, mas porque você começa a se amar mais”.
O Festival nasceu em 2013 com o intuito de possibilitar aos dançarinos mostrarem sua arte sem as avaliações criteriosas dos concursos, criando um espaço de total liberdade artística. “Via as pessoas sofrendo e se sentindo mal nos campeonatos, então arregacei as mangas e criei meu próprio festival, para que os dançarinos pudessem se divertir enquanto se apresentavam”, explicou Gigi.
As vertentes do pole
Várias são as vertentes que constituem o pole dance. O Sensual, o Fitness (ou Sport) e o Artístico/Coreográfico são os mais conhecidos. O primeiro se aproxima do strip-tease, trabalhando muito com o contato visual, movimentos no chão e se utilizando de saltos, enquanto o Fitness e o Artístico se diferenciam na exigência dos movimentos de força. “O pole Fitness é basicamente uma ginástica olímpica na barra vertical, onde aprendemos acrobacias desde o básico ao avançado. É a base do pole, porque é onde tu adquires força e a consciência dos movimentos. O Coreográfico é mais simples, trabalhando com a parte de baixo da barra e bastante coreografias de chão”, explicou Marina.
Porto Alegre tem hoje um bom número de estúdios de pole dance que oferecem as diferentes vertentes da modalidade. Alguns dos mais populares, que inclusive participaram como convidados do Festival, são: Susi Alves Gasômetro, High Heels Pole Studio, My Pole Space, Velvet Pole, Secret Pole Studio, Lusty Pole Dance e Pole Fitness Studio Monique Medeiros. Comparando os valores disponibilizados pelos estúdios nas redes sociais, as aulas experimentais variam de R$ 30,00 a R$ 50,00. Já os pacotes mensais variam de R$ 180,00 a R$ 560,00, conforme o número semanal de aulas.
A questão financeira, atrelada ao preconceito, ainda são os principais obstáculos para o desenvolvimento e popularização do pole. Apesar de as entrevistadas enxergarem um crescimento no número de estúdios e praticantes, elas entendem ser necessário levar os festivais para outras regiões do país. “O pole dance ainda é marginalizado e glamourizado, requerendo muito recurso, pois é caro participar dos concursos”, explicou Gigi, que lançou nos últimos anos os festivais Oxente, na Bahia, e Elemental Pole, em Brasília.
Um espaço de sororidade
O pole dance é uma modalidade majoritariamente feminina, muito em função da erotização e dos estigmas que envolvem a prática. Essa característica, contudo, contribui para a criação de espaços de autovalorização, que permitem à mulher viver a sua sensualidade, independentemente da idade ou biotipo corporal. É o caso da Nina Clos, 35 anos, de Viamão. Integrante da organização do Festival, ela diz ter demorado, por vergonha, a fazer uma aula experimental: “Eu me achava meio ogra”. Porém, com muito incentivo da amiga, professora de pole, aceitou participar das aulas. Em 2022, ela se apresentou pela primeira vez em público, num evento em São Leopoldo. “Tudo é uma questão de amar o corpo e se dar conta do que ele é capaz de fazer. O pole te ajuda a ver isso”.
Para Amanda, uma irmandade entre as dançarinas é criada, permitindo a elas serem livres em um ambiente protegido de julgamentos. “Isso me deu mais segurança, me ajudou a tomar as rédeas da minha sensualidade. Me ensinou muito sobre sororidade e me trouxe pessoas especiais, que considero quase irmãs”, destacou. Segundo Marina, também é uma oportunidade de encontro – primeiro consigo mesmo, e depois com outras mulheres. “Parece que tudo que eu fiz na minha vida eu consigo unir com o pole, consigo trazer o teatro, a dança e a educação física. Me sinto livre”, afirmou ela.
Para as quatro entrevistadas, o pole dance representa uma jornada de autoconhecimento e de olhar para dentro. De formas distintas, cada uma teve a vida transformada pela prática e se sentem, hoje mais do nunca, bonitas e confiantes. “O mais gratificante é você se sentir linda, se sentir gostosa, sedutora, se olhando ali no espelho enquanto dança. Não é o que outro vê de você, mas o que você vê de si mesma”, relatou Amanda.