Relatos de paciente e especialista alertam sobre as consequências do uso de zolpidem, segundo ansiolítico mais vendido no Brasil

Sedutor, atrativo e perigoso. Esses são só alguns dos adjetivos que podem classificar o hemitartarato de zolpidem, ou só zolpidem, como é popularmente conhecido.  Ele é uma droga da classe dos hipnóticos que age em um  neurotransmissor, o  ácido gama-aminobutírico, apelidado dentro da medicina de GABA. É um indutor de sono que possui efeito rápido. Tem meia vida, isso quer dizer que o efeito termina em algumas horas, não ocasionando nenhum mal-estar no dia seguinte. Por esses e outros motivos, o zolpidem  tornou-se uma das drogas preferidas para a insônia.  Segundo levantamento mais recente realizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), até a metade de 2023, 8,6 milhões de brasileiros fazem o  uso do remédio. Para se ter uma ideia, em 2018 o número era de 5,5 milhões de usuários. 

Para o psiquiatra do Hospital São Lucas (HSL) e professor do Núcleo de Formação Específica em Neurociências da Escola de Medicina da PUC-RS, Lucas Spanemberg, o medicamento veio para preencher uma lacuna importante na vida de muitas pessoas que sofrem com a insônia. “O zolpidem induz o sono de forma quase instantânea e a experiência como um todo acaba sendo bem satisfatória. Esse atalho para uma pessoa em sofrimento é muito bem-vindo na maioria das vezes”, detalha o especialista.

O medicamento pertence a uma classe de drogas classificadas como hipnóticos-Z, na qual estão incluídos, além do zolpidem, a zopiclona e a eszopiclona. Os três não pertencem aos benzodiazepínicos, que seriam os ansiolíticos e hipnóticos mais tradicionais.

Apesar de diferentes na classificação, os benzodiazepínicos têm efeitos colaterais  semelhantes ao do zolpidem, se utilizados de forma contínua. De acordo com Spanemberg, estes variam entre desenvolvimento de dependência e diminuição da tolerância; o paciente precisa aumentar a dose para sentir o mesmo efeito com o passar do tempo.

A diferença está no receituário necessário para cada um. Para qualquer benzodiazepínico a receita (azul) é a B1.  A partir de decreto publicado pela Anvisa em 2001, o zolpidem passou a integrar o receituário do grupo C1, que é mais fácil de se conseguir, já que qualquer médico o possui. “Para nós que trabalhamos com isso e vemos os problemas, não entendemos por que ele não recebe a mesma classificação que os benzodiazepínicos, já que apresenta os mesmos riscos. Isso facilita a proliferação. A Anvisa poderia ter um controle maior”, opina o psiquiatra.

A Anvisa foi contatada pela reportagem, mas não disponibilizou um funcionário para responder aos questionamentos. Entretanto, a entidade enviou os dados de consumo de zolpidem entre 2018 e o 1° semestre de 2023 no Brasil.   

Mercado clandestino

Outro fator determinante para a  proliferação massiva do medicamento é uma espécie de mercado paralelo, no qual o remédio é repassado sem prescrição e sem cuidado algum por farmacêuticos, e até mesmo por médicos. “Isso é muito comum. Existem diversos profissionais da área da saúde agindo como comerciantes de remédios, assumindo esse papel que causa um grande estrago na sociedade”, afirma Spanemberg.

Em sua experiência ligada à internação psiquiátrica, o especialista conta que chegou a internar pacientes que começaram com um comprimido por dia e chegaram a usar até 100 num período de 24 horas. “Esse mercado ilegal é responsável por grande parte dos casos em que há um uso desmedido de zolpidem”, afirma o médico. 

Ainda de acordo com o professor, também há pessoas que usam o remédio em menor quantidade, e acabam conseguindo-o de forma legal. “É bastante comum que o paciente consulte com mais de um médico apenas para pegar a receita. Vai no psiquiatra, no cardiologista, no ginecologista e assim por diante”, aponta.  

Depressão e Saúde Pública

Segundo o último mapeamento realizado pela OMS, 5,8% da população brasileira sofre de depressão, o equivalente a 11,7 milhões de pessoas.  Para Spanemberg, a depressão e o zolpidem tem uma relação mais próxima do que se imagina para motivar este quadro.

De acordo com ele, nos últimos anos, o perfil dos pacientes que têm se internado varia, principalmente, entre idosos e adultos de meia-idade sem uma rede de apoio e com problemas de solidão. “Eles começam a fazer uso dessa medicação para se desligarem completamente e não só para dormirem à noite. Fazem esse uso exagerado simplesmente para não verem o dia passar”, aponta o médico, que acredita que a mistura dessas duas condições, sem um acompanhamento  próximo, pode ser fatal para a vida do ser humano.

O psiquiatra ainda diz que raramente faz a prescrição do remédio para pessoas que sofrem com a doença.  “Ao tratar da depressão, deve-se ter muito cuidado para não indicar medicamentos que possam causar dependência. Uma vez que há uma experiência interna de evitação da realidade, estes medicamentos acabam servindo como anestésicos da alma”, reitera.

Questionado se acredita que existe falta de conhecimento sobre os efeitos da droga por parte dos médicos no Brasil, Spanemberg é bastante enfático: “Há um desconhecimento imenso por parte de profissionais sobre a saúde mental e o zolpidem. Por ser uma receita não tão restrita, eles têm uma perspectiva de pouco dano e muitas vezes não compreendem o verdadeiro risco do medicamento. Houve momentos da história em que se reduziu a saúde mental. Existiu, também, uma pretensão da indústria farmacêutica de que todos os problemas fossem resolvidos com algum remédio. A experiência humana é muito mais complexa do que qualquer neurotransmissor”, avalia o psiquiatra.

Ainda segundo Spanemberg, o ideal é que o zolpidem seja usado por algumas semanas, no máximo um mês, numa circunstância em que já haja um plano para diminuir o uso – pois o medicamento não tem indicação para ser usado de maneira contínua. 

Efeitos na pele

Dentre os milhões de usuários no Brasil, está a estudante universitária Giovana Corim. A jovem começou a fazer uso do medicamento após passar por um evento traumático em 2020. Semanas depois do ocorrido, começou a sofrer com a insônia.  “Não conseguia ficar sozinha. Tinha muito medo, principalmente de dormir. Achava que se eu dormisse algo ruim iria acontecer comigo”, conta..

Já em 2021, fez questão de procurar um psiquiatra para que recebesse algum tipo de orientação quanto ao problema. Segundo ela, o médico afirmou que faria o tratamento com o zolpidem e, se ela sentisse muito medo ainda, ele iria prescrever um remédio para ansiedade também.

Desde aquela época, a jovem  passou por algumas etapas de uso do zolpidem. Já tomou o sublingual, o comprimido, aumentou a dosagem e já parou e voltou a tomar, após um ano sem fazer uso do medicamento. “Eu ficava até às 5h da manhã zanzando pela casa. Na época em que eu parei, foi por conta própria.  Não via mais a necessidade de fazer a ingestão. Porém, não sei o que aconteceu, e eu voltei a sentir esse medo”, desabafa.

Apesar de compreender os riscos, a estudante universitária afirma que o medo de não dormir é maior do que o de desenvolver um vício. “O psiquiatra me disse que se precisasse era possível aumentar a quantidade. Eu tenho a preocupação de criar um vício.  Eu vejo que o meu corpo está se acostumando com isso, mas essa insônia é  muito forte”, explica. 

Giovana conta que passou por momentos de muita tensão. “Eu chegava a ponto de chorar para conseguir dormir, então eu gosto de ter a possibilidade de simplesmente apagar. É isso que eu preciso, eu preciso que me apague na hora”, declara.

É comum que os usuários do medicamento apresentem alguns comportamentos parecidos. Como falar coisas sem sentido, comprar coisas na internet, mandar mensagens no celular, e só descobrir no dia seguinte. Em casos mais extremos, é possível que apresentem sonambulismo em diferentes graus. 

“As coisas começam a girar e se mexer. Parece que eu olho para minha parede e ela está vibrando. Tudo acontece de um jeito muito bizarro. Meu namorado já me disse que eu costumo falar diversas coisas sem sentido antes de apagar completamente”, conta Giovana, sobre as sensações que tem ao tomar os comprimidos.  

Para a estudante o uso do hemitartarato de zolpidem é necessário para que possa ter uma boa noite de sono.  “Eu tenho tanto medo de não apagar que se me receitassem outro remédio eu ia passar mal, porque a dúvida ia me consumir. Não quero outro de jeito nenhum”, reforça  a jovem, que há quatro anos, a partir de uma prescrição médica, diz ter sua vida controlada pelo zolpidem.