
Em um quarto abafado de madeira, no início do ano de 1871, o ar parecia pesar como um segredo. Jacobina Mentz Maurer acordou de seus sonhos com os olhos em brasa, não tanto por febre, mas por um fervor que vinha de dentro, de um lugar onde a dor e a fé eram uma só. Ao redor, a chácara tremia sob o sopro frio que descia do Morro Ferrabraz, a cerca de 75 km de Porto Alegre. Além da janela, o pinhal exalava um vapor úmido que era quase voz, na madrugada, e a mulher se levantou como se obedecesse a uma ordem recebida em outra língua, uma ordem que não vinha de homem algum
Jacobina nasceu em 11 de junho de 1841, no seio de uma colônia em que se falava pouco e se rezava muito. Era a comunidade alemã que se instalara nos arredores do que, a partir de 1954, seria a cidade de Sapiranga do Sul. Foi ensinada a curar, por receitas de ervas passadas de pai para filho, porém o que mais sabia era acreditar. O pastor luterano não tolerava desvios e ela acreditava muito em sua fé. Mas, aos poucos, Jacobina se afastava do tradicional.
A mulher franzina, loira, com olhos claros que pareciam perscrutar o além, se casou com João Jorge Maurer, o “homem das ervas”, figura respeitada na colônia como uma espécie de protomédico – termo utilizado para se referir a uma autoridade médica da época.
A casa dos Maurer, que antes abrigara apenas um curandeiro e sua esposa, transformou-se lentamente em um ponto de convergência: pessoas com febre, mães com bebês que não mamavam e camponeses com feridas que o tempo não fechava iam até o local em busca de cura. Onde João tocava a carne, Jacobina tocava a crença. Não era espetáculo no sentido ordinário: havia, durante as curas, uma mistura de rito improvisado e afeto que funcionava como uma simbiose de medicina e fé. Alguns dos visitantes voltavam para casa anunciando alívio.

Mas os vizinhos rapidamente começaram a temer aquela casa. Olhares esquivos começaram a ser direcionados ao casal, junto a sussurros que começaram a chamar esse grupo, até então pequeno, de “muckers”. O termo não tem origem ou significado definido – em alemão, “muckern” significa fingir santidade; outra origem remete à tradição oral, onde supostamente o grupo faria um murmúrio semelhante à palavra. De uma forma ou de outra, o rótulo colou como musgo.
O movimento era, nas suas origens, uma resposta a carências concretas: distância do Estado, médicos raros, religião oficial incapaz de abarcar todo o sofrimento. Num território de solos difíceis e esperanças remotas, a casa no Ferrabraz oferecia uma liturgia que nascia da necessidade: preces ao crepúsculo, mãos pousadas sobre o corpo, promessas de alívio que soavam, para muitos, como milagres. Fontes da época afirmam que as primeiras reuniões religiosas começaram no final de 1871, quando Jacobina, convalescente, proferia palavras tidas como revelações.
Para a vizinhança mais ortodoxa, porém, aquilo era erro, ameaça, um sopro que queria apagar as velas da ordem, um pecado e uma blasfêmia no sentido mais puro. Jacobina logo passou de curandeira a mensageira. Em noites que cheiravam à erva queimada e leite azedo, ela dizia ouvir mensagens que desciam do Alto. Não eram meras impressões: eram instruções para um tempo iminente de purificação.
“O céu já desceu à Terra”, proferia, e os que escutavam ajoelhavam-se como quem pede por algo que não encontrará nos livros. Suas palavras ganharam densidade. Onde havia doença, havia também um caminho: a explicação espiritual tornou palpável o sofrimento, e assim se formou um pequeno núcleo de pessoas que encontrou na convicção de Jacobina uma razão para viver.
A reação foi lenta e, ao mesmo tempo, implacável. A colônia dividiu-se em pequenas trincheiras de olhar e costume. No centro, a mulher que lia a Bíblia sem padre ou pastor – algo impensável para a época. A Bíblia, nas mãos dela, soava como um texto vivo, transformava a casa num santuário doméstico. Do outro lado, a igreja tradicional e seus representantes viam um risco existencial: se a autoridade religiosa se enfraquecesse, desmoronariam também os laços sociais que mantinham a ordem. Não se tratava apenas de fé ou de acreditar no místico; se tratava de poder.
As sementes do conflito cresceram em silêncio, embaladas por cartas anônimas, por cochichos em um dialeto germânico entregues à polícia de São Leopoldo, cidade a qual o morro do Ferrabraz pertencia. Eram advertências que tinham a textura do medo. As primeiras cartas constam de 1872 da delegacia da cidade e foram transcritas por Adilson Schultz. Eram comuns relatos de “orgias religiosas”, “manipulação de crianças” e predições de “massacres”. Aos poucos, o vizinho se transformou em acusador.
Os pequenos episódios de hostilidade precederam as grandes rupturas. Portas foram fechadas à noite, amizades esfriaram, olhares se cruzavam com desconfiança. E, no limiar entre desconfiança e violência, a narrativa que justificaria a tragédia começou a se formar: de ambos os lados, havia certeza de razão. Do lado de Jacobina, a crença acreditada como mandato. Do lado dos opositores, a certeza de defesa da comunidade.
O fogo desce a colônia
Em 1873, o ar já era de pólvora antes que qualquer tiro fosse disparado. O rumor havia se tornado presença física, uma bruma que pairava sobre a colônia. Os encontros na casa dos Maurer se multiplicavam: as pregações se tornavam mais intensas. Jacobina já reunia centenas de pessoas, falava do fim dos tempos, da vinda de um novo reino e dos escolhidos que seriam poupados. “O fogo limpará o mundo”, dizia segundo relatos de jornais de Porto Alegre e São Leopoldo.

Os vizinhos, aterrorizados, viam os Muckers como uma seita que crescia à sombra do próprio morro em que moravam. O apelido, antes um insulto, tornara-se designação oficial. “Os Muckers estão se armando”, diziam as cartas que chegavam à polícia de São Leopoldo: “Pregam o fim do império, o reinado da mulher santa, e dizem que Deus fala através dela”. Para as autoridades, acostumadas a medir fé por registros paroquiais e condutas exemplares, o caso ultrapassava o campo religioso: era, agora, um problema de segurança pública.
No entanto, não havia oficiais dispostos a desbravar o morro, escalar a serra e enfrentar um grupo sobre o qual eles nem ao menos sabiam qual era o real poder. O primeiro ataque não veio da farda, mas dos próprios camponeses. Foram os colonos, antigos amigos e vizinhos de Jacobina, que decidiram “resolver o problema” por conta própria.
No da 24 de junho de 1874, na véspera de São João, a casa da família Kassel foi cercada. A família foi uma das primeiras a frequentar os cultos de Jacobina, mas, aos poucos, se afastou. Em cartas trocadas com a delegacia de São Leopoldo, era comum os Kassel chamarem os cultos de “blasfêmia”.
As lamparinas ainda acesas denunciaram o interior em silêncio quando um grupo encapuzado cercou a casa. Os invasores atiraram primeiro e, depois, atearam fogo. Uma ironia cruel na véspera São João.Quando o sol nasceu, só restavam cinzas e corpos mutilados. As manchetes dos jornais A Reforma, Diário do Rio Grande e Correio do Sul falavam em “banho de sangue em terras germânicas”. A imprensa, que até então observava o caso à distância, passou a retratar Jacobina como uma mistura de profetisa e assassina.
A tensão explodiu de vez. As forças imperiais, alertadas por políticos locais, decidiram intervir. O destacamento de militares se reuniu a voluntários com uma missão: prender Jacobina e restabelecer a ordem. Mas capturá-la não era simples. Quando as tropas se aproximavam, alguém avisava. A mulher desaparecia entre os pinheiros, e os Muckers se dissolviam no mato como se conhecessem cada pedra do Ferrabraz. Sua terra era não só seu lar, mas seu refúgio e sua fortaleza.
Enquanto isso, a fé ganhava contornos de messianismo. Jacobina, grávida do quinto filho, declarava-se a nova encarnação de Cristo: “Deus fala por mim, como falou pelo seu Filho”, dizia a seus seguidores. A afirmação escandalizou até parte dos que ainda a defendiam. O que começou como um movimento de cura e partilha havia se transformado em resistência espiritual e, naquele momento, se tornava uma religião. Logo, se tornaria um movimento militar. Os relatos colhidos anos depois por historiadores descrevem uma comunidade que vivia em expectativa permanente de milagres ou de tragédias. Havia vigílias que duravam noites inteiras; crianças eram preparadas para fugir se os soldados viessem. João Jorge, o marido, erguia barricadas improvisadas na encosta do morro com devotos fervorosos que se viam como eleitos. Eram “os justos que haveriam de sobreviver ao fogo”.
Nas cartas apreendidas pela polícia, há descrições que beiram o delírio: “Dizem que ela levita, que não sente dor, que o ferro não a fere”. O mito da mulher que desaparecia na névoa e que curava com o toque foi se misturando à imagem da mulher que passava a ser tratada como insurgente. A figura da santa passou a se confundir como uma inimiga pública das autoridades.

No inverno de 1874, os confrontos se tornaram inevitáveis. As tropas provinciais marcharam de São Leopoldo com ordens de capturar o grupo. Os Muckers se entrincheiraram e as primeiras escaramuças resultaram em mortes de ambos os lados. As tropas oficiais, sem conhecer bem o terreno, perderam-se na mata; os homens, cansados e desinformados, retornavam dizendo que Jacobina havia escapado “como vento entre as árvores”.
A perseguição, então, ganhou contornos de uma cruzada religiosa. Pastores locais começaram a convocar os “cavalheiros cruzados” a “defenderem a verdadeira fé”. Panfletos foram distribuídos nas vilas: “Deus não se mistura com o demônio do Ferrabraz”. O fanatismo da profetisa era, agora, combatido pelo fanatismo de seus inimigos, o fervor dos dois lados incendiava o ódio como lenha seca.
E, no meio de tudo, os colonos, aqueles que apenas queriam sobreviver, tornaram-se alvos de ambos os lados. Casas saqueadas, plantações queimadas, gado abatido por vingança. Era de fato uma guerra civil dentro da pequena colônia.Jacobina, reclusa no alto do morro, falava em revelações noturnas. Dizia que anjos lhe apareciam, instruindo-a sobre a batalha final. Suas pregações já não prometiam apenas cura, mas redenção pelo sangue. O apocalipse não viria do céu, mas das mãos dos homens. A pólvora seria o fogo que iria incendiar o mundo.
Na última semana de junho de 1874, a colônia dormia pouco. A cada noite, as tropas provinciais subiam um pouco mais a encosta do Ferrabraz e, a cada manhã, desciam de volta, exaustas, feridas e confusas, com a impressão de terem lutado contra algo que os olhos não viam. Os soldados diziam ouvir cânticos à distância, vozes femininas entre as árvores, entoando hinos em alemão antigo. Outros afirmavam ter visto luzes flutuando, como lamparinas que nunca se apagavam.
A pressão imperial aumentava. O comandante das forças locais, coronel Genuíno Sampaio, recebeu novas instruções: acabar com o movimento “a qualquer custo”. Os jornais de Porto Alegre clamavam por uma intervenção “decisiva”. O Império, preocupado com possíveis contágios de fanatismo em outras colônias, exigia resultados.
No alto do morro, Jacobina preparava-se para o fim. Na noite de 19 para 20 de julho, sentou-se à mesa com seus seguidores. A refeição era simples: pão, leite e carne salgada. Ela olhou para cada rosto, como se os reconhecesse pela última vez, e disse: “Hoje à noite, serei levada”. Era um presságio de seu próprio destino.

Ninguém respondeu. As crianças dormiam nos cantos. Os homens e mulheres, muitos já sem armas, rezavam em silêncio. Na madrugada seguinte, o cerco se fechou. Espiões infiltrados haviam revelado o esconderijo dos Muckers. As tropas incendiaram a cabana principal, o fogo devorou a mata e os tiros ecoaram pela serra. Entre gritos, correria e o cheiro doce da madeira queimada, Jacobina enfrentou seu martírio. Um disparo certeiro, à queima-roupa, e a profetisa, grávida, morreu com o ventre aberto – imagem que os jornais, dias depois, transformariam em uma metáfora moral sobre o “útero do mal” destruído pelo braço do Império.
Os corpos foram amontoados e registrados, num gesto não só burocrático, mas também de aviso. O de Jacobina, reconhecido pelo marido, foi levado a São Leopoldo e exposto em praça pública. As autoridades sorriram, os pastores entoaram hinos de vitória. O massacre foi retratado pelos jornais que entoavam: “Extirpado o fanatismo do Ferrabraz”. Jacobina Mentz Maurer foi morta pelas tropas do tenente-coronel Genuíno Olympio de Sampaio em 3 de agosto de 1874. Segundo os números oficiais, foram 150 mortos entre os Muckers e 40 nas tropas imperiais. Muitas pessoas foram presas.
Mas a paz não veio com a morte da líder do grupo. Durante meses, colonos ainda encontravam corpos nas clareiras. Soldados errantes juravam ver, nas madrugadas frias, uma mulher de vestido branco caminhando entre as ruínas das cabanas. Alguns acreditavam que era o espírito de Jacobina, outros, talvez mais assombrados por culpa do que por fé, não ousavam pronunciar o nome da profetisa. Poucos remanescentes do grupo ainda atacavam os soldados naquelas florestas, mas, aos poucos, também foram massacrados. O que se seguiu foi silêncio e esquecimento. O Império abafou o episódio; não havia sido o primeiro massacre contra revoltas internas e a Guerra do Paraguai havia sido encerrada apenas quatro anos antes. A Igreja também preferiu não tocar mais no assunto. Por décadas, o nome dos Muckers ficou restrito às margens da memória.
O mito e o medo
Cem anos depois, o eco ainda ressoa. O Morro Ferrabraz, hoje ponto turístico de Sapiranga, guarda pouco da antiga paisagem, mas muito do fantasma que ainda vive na cidade. Há quem suba o morro levando flores, há quem vá por curiosidade, há quem simplesmente evite. Existe ainda quem jura ouvir cânticos em alemão, como de uma mulher que clama por seus fiéis. Nos relatos orais recolhidos na região, Jacobina aparece como santa, mártir, profetisa, bruxa, demônio e até mesmo alguém já esquecida – ou tudo isso ao mesmo tempo. Cada geração reconta a história à sua maneira: nas escolas, como tragédia; nas igrejas, como advertência; entre místicos e curiosos, como promessa de retorno.
Mais de um século e meio depois, o que permanece não é o fato, mas o feitiço da dúvida. Talvez Jacobina tenha sido uma mulher doente, talvez uma visionária. Talvez tenha apenas feito o que tantas outras mulheres fizeram e pagaram caro por isso: falar alto demais num mundo que preferia o silêncio. O sol ainda se põe sobre o Morro Ferrabraz. As casas de madeira sobrevivem ao tempo, e as janelas das casas próximas continuam a se fechar cedo, como se o passado ainda rondasse o lugar.

Jacobina Mentz Maurer foi morta em 1874, junto de seus seguidores, acusada de heresia, fanatismo e envolvida em uma complexa teia de crimes. Para seus fiéis, era a enviada de Deus; para seus inimigos, uma ameaça à ordem e à fé. Para uns, é apenas (mais) uma figura excêntrica da história do Brasil; para outros, uma criminosa. Mas, para quem ousa crer no místico, Jacobina foi uma mulher que realizou milagres, se rebelou contra as normas sociais, foi divisiva entre os religiosos, encontrou muitos discípulos e foi morta por sua pregação. Para essas pessoas, Jacobina foi a Santa de Ferrabraz.

