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Máquina do tempo em Camaquã

Um sorvete com gosto de lembrança

Tarde de sexta-feira, 16h22min, 25°C, Camaquã, a 125 km da capital gaúcha, Porto Alegre. O barulho dos carros demonstra a proximidade com o asfalto movimentado do centro cidade. Entre as palavras “cascão ou casquinha” surgem mais do que entregas e vendas de sorvete. Surge um sabor que há 70 anos é digerido em formato de lembrança.  

As plaquinhas com letras coloridas mostram os sabores disponíveis. Mas nem precisaria, porque os clientes da sorveteria Dröse geralmente já têm o seu sabor escolhido e, muitas vezes, conhecido, já que lá eles são chamados pelo próprio nome. Afinal, são frequentadores assíduos do local. Há quatro décadas à frente dos atendimentos na filial de Camaquã está Helen Dröse, uma pessoa simpática e gentil. Ela é casada com Rogério Dröse, filho de Felipe Leopoldo Dröse, neto de Felipe Dröse, que criou a receita artesanal transmitida de geração para geração. Na filial de Arambaré, a 35 km de Camaquã, está Geny Dröse, viúva de Felipe Leopoldo.  

Minha primeira visita foi numa tarde de sexta-feira. Cheguei à sorveteria e pedi o mesmo de sempre: uma casquinha de flocos. Sentei próxima ao balcão, onde há vários bancos giratórios presos a uma base de ferro que possibilitam observar o movimento de quem trabalha ali. Helen se deslocava com rapidez: lavava a louça, passava cartões na maquininha e entregava os sorvetes. “Aqui, amado”, dizia ela, entregando um sorvete de sonho de valsa a um cliente e o chamando por uma das variações que ela costuma usar – amado, amada, meu amor, querida. 

Além de Helen, havia mais três funcionárias no balcão e em torno de cinco clientes na loja. Logo, com o passar do tempo, começou a se formar uma pequena fila. Todos queriam se refrescar naquele dia quente de outubro. Faltavam dois dias para o Dia das Crianças. Por isso, a chegada de uma senhora vestida de bruxa não chamou muito a atenção: era de se esperar pela proximidade da data e pelas atividades comemorativas que costumam ser realizadas nas escolas. Ela estava acompanhada de duas crianças, seus netos, que também estavam fantasiadas.  

Há décadas, a decoração da Dröse é a mesma. É como se ela estivesse parada no tempo. Passam-se dias, meses, anos e persiste o mesmo balcão, os mesmos letreiros e a mesma estética. Isso faz com os clientes se teletransportem para as suas lembranças mais doces, já que a sorveteria é um daqueles lugares de infância que ficam eternizados na memória. 

Antiga fachada da sorveteria na década de 90

Na Dröse, você pode sentar no mesmo lugar e comer o mesmo sorvete saboreado há 15 anos, por exemplo, quando você ia na sorveteria com sua vó que já faleceu. Essa é a minha lembrança de infância: quando criança, meus avós costumavam me levar na Dröse enquanto a minha mãe fazia compras no mercado. Meu avô nos buscava na rodoviária com seu Gol bolinha branco, ano 1995 (que, décadas depois, seria meu), deixava minha mãe no mercado e me levava para brincar na praça. Depois, me convidava para irmos tomar um sorvete. A gente sentava sempre no mesmo lugar e eu pedia sempre o mesmo sorvete que peço até hoje. Flocos. E ali ficávamos conversando e vendo o tempo passar. 

Cada vez que volto lá, revivo essa lembrança como em uma máquina do tempo. E eu não sou a única. Quando adolescente, Ana Karina Kofler, agora com 53 anos, já frequentava a sorveteria Dröse com seu falecido marido e então namorado, Luciano. Ela mudou de cidade, mas, sempre quando voltava para Camaquã, levava seus filhos para comer sorvete lá. “A Helen me viu em todas as fases: adolescente, casada, mãe, viúva e, agora, avó”, conta.  Ana, agora está morando em Camaquã novamente. Para ela, a Dröse é “um abraço”. “Me sinto acolhida como se estivesse na casa de alguém muito querido, onde eu uno passado e presente”, diz. 

A família Dröse, em uma tenda, vende sorvete em evento

Nas paredes, há um quadro que chama a atenção: uma foto da fachada da sorveteria com a frase “70 anos de tradição”. Também estão expostos alguns prêmios. A decoração se completa com uma fileira de borboletas rosas e azuis, confeccionadas por Helen, assim como o restante da decoração, e pelo tradicional letreiro com os sabores dos sorvetes. 

No caixa, ficam as máquinas de cartões, um computador, um quadro da família e uma miniatura da “sinaleira” histórica do centro da cidade. A CPU do computador estava coberta de papéis colados, todos com frases escritas a mão por Helen com caneta preta. Alguns continham números de telefone e outros algumas frases como: “Desculpe o exagero, mas não sei ser pouco”.  

No “marco” do teto, a frase, com letras feitas de Etileno-Vinil-Acetato, ou simplesmente Eva: “Que os bons momentos sejam eternos”. Essa frase faz jus ao seu significado, porque afinal, quando se entra na Dröse, você não esquece. Não esquece o sabor do sorvete, o ambiente, o cuidado e o carinho. Mas, se você quiser relembrar, é só voltar – o sabor e os momentos vividos ali se tornarão eternos na sua memória e no seu coração. 

Nas datas comemorativas, Helen faz questão de utilizar uma decoração temática. No Dia das Crianças foram usados muitos balões, já no Halloween havia aranhas de plásticos descendo pelas janelas, TNT verde e preto e morceguinhos pendurados. “Eu gosto muito de decorar, de sempre fazer alguma coisa. Eu tenho um grupo de funcionárias que também são ótimas nesse sentido, elas abraçam a ideia e fazem a coisa acontecer”, comenta Helen. 

A sorveteria está sempre de portas abertas para quem busca viver e criar boas lembranças

Na última vez que fui a sorveteria, antes de finalizar o texto, numa tarde de sexta-feira chuvosa de novembro, poucas pessoas ousavam sair de casa. Foi uma tarde em que a sorveteria passou a maior do tempo vazia. Enilda entrou por volta de 15h40min. Ela saiu para uma consulta médica e aproveitou para comer um sorvete. Sentou próximo à janela e contou que é cliente assídua. “Já fui em várias sorveterias, mas nenhuma se equipara ao sabor da Dröse”, disse. Ela não lembra ao certo há quanto tempo frequenta o local, mas diz ser desde a época em que se mudou de Porto Alegre para Camaquã, há 40 anos. Ela também escolhe a Dröse para comer sorvete quando vai a Arambaré.  

Nessa tarde chuvosa de poucos clientes, Helen aproveitou para me mostrar algumas fotos antigas: a fachada da sorveteria, ela mais jovem, o esposo e os dois filhos, as premiações recebidas e os eventos em que eles colocavam uma tenda para vender sorvete. Todas as fotos estavam muito bem preservadas. Atrás, em caneta, estavam escritos o local, o evento e o ano da foto. As funcionárias também ficaram curiosas com as histórias daquelas imagens. Me senti em um ambiente de família, onde ouvimos histórias, rimos e falamos sobre sorvete – falamos, principalmente, sobre o ponto de partida de tudo: a memória.  

Trabalhando no local há mais de 40 anos, Helen mostra a placa com os sabores confeccionada por Felipe Leopoldo Dröse.

A sorveteria Dröse é muito mais do que um lugar para comer sorvete. É sabor, mas é lembrança. É relembrar e criar novas memórias ao mesmo tempo. É tradição transmitida de pais para filhos, de geração para geração.  É a materialização da música In My Life, dos Beatles, cantada em português por Rita Lee, que versa sobre os lugares que lembram as nossas vidas e por onde andamos. Mesmo que digam que máquinas do tempo não existem, a Dröse está aí, há 70 anos, para provar que Camaquã tem uma delas – e ela vende sorvete com gosto de lembrança. 

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