O relógio marcava 12h52 quando o carro parou em frente a um prédio modesto, sob o calor de uma tarde no Centro Histórico de Porto Alegre. Fundado em 1965, o edifício de tons terrosos abriga uma sala onde repousam livros quatro séculos mais antigos que suas próprias paredes. No oitavo andar, uma porta amadeirada guarda um espaço onde o passado resiste, trabalha, respira e aguarda para ser tocado outra vez. Ao adentrá-la, a luz que entra pelas longas janelas mistura-se ao amarelo suave das paredes e reflete sobre estantes abarrotadas de ferramentas de um ofício quase cirúrgico. Instrumentos que testemunham a delicadeza e a responsabilidade de devolver vida a obras que um dia foram novas.
É nesse ambiente que Sílvia Breitsameter se move com a familiaridade de quem o habita há quase 15 anos. Diretora e coordenadora da Oficina de Restauro Livro e Arte, Sílvia traz, nos gestos e na voz, a leveza, o entusiasmo e a segurança de quem aprendeu a ouvir o silêncio dos papéis. Aos 65 anos, soma quase meio século dedicado à restauração de livros, documentos e obras de arte. Trabalho que exige técnica, atenção, paciência e sensibilidade. Entre tantos livros que já passaram por suas mãos, há um que também ocupa espaço nas estantes, mas não requer restauro:um exemplar de O Mundo da Criança, presente de sua falecida mãe quando era menina. De capa vermelha, o livro é guardado até hoje com o mesmo zelo que dedica às obras centenárias. Talvez ali, nas páginas da infância, que tenha nascido o vínculo que mais tarde a conduziria à arte de resgatar vidas de papel.
Paixão descoberta por um “tropeço feliz”
A história de Sílvia com a restauração se deu por acaso — ou, como ela gosta de dizer, por um tropeço feliz. Era 23 de abril de 1977, Dia Internacional do Livro, quando o destino a levou ao encontro do ofício que marcaria seu futuro. Aos 17 anos, era aprendiz no Instituto Estadual do Livro e foi escalada para acompanhar uma visita de imprensa. Entre prateleiras, frascos e folhas frágeis, observou uma funcionária demonstrar o processo de restauração. Bastou aquele instante para que descobrisse o que faria pelo resto da vida. “Foi íntimo, como se eu já estivesse ali desde sempre”, recorda.

A descoberta se transformou em caminho. Nos anos seguintes, Sílvia mergulhou numa busca contínua por conhecimento. Entre cursos, formações e práticas em diferentes técnicas, aprendeu a lidar com livros, documentos, gravuras, pinturas e fotografias, pergaminhos, têxteis, objetos de museu, madeiras e metais voltados para encadernação. Essa trajetória de aprendizagem reflete-se nas prateleiras, repletas de livros teóricos que sustentam a profissão. O amor pelo estudo a levou também por outros caminhos: aos 40 anos, formou-se em Direito, em 2000. Por nove anos, exerceu a advocacia, enquanto a restauração seguia ao seu lado como um trabalho paralelo. No entanto, as palavras dos códigos nunca lhe pareceram tão vivas quanto as que resgatava das páginas antigas. Deixou o direito para retornar de vez à área que diz ser seu chão.
Em 2008, Sílvia fundou a Oficina de Restauro Livro e Arte que, desde 2011, mantém sua sede em Porto Alegre. Hoje, ela lidera e ensina em um dos mais reconhecidos locais de conservação e restauração da capital gaúcha, para onde convergem obras de diferentes estados do país. Além disso, a professora integra a Associação Brasileira de Encadernação e Restauro (ABER) e a Associação Brasileira de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais (ABRACOR), associações nacionais que reúnem restauradores profissionais do país.
A rotina no laboratório
Natural de Porto Alegre, Sílvia trocou a agitação da capital pela tranquilidade de uma chácara em Rolante, onde vive há 10 anos. Entre o campo e a cidade, desenha uma rotina de idas e vindas: são 116 quilômetros que a conduzem, três vezes por semana, até o laboratório. O espaço é dividido entre a área de restauração e a sala de cursos. No primeiro ambiente, duas funcionárias costumam ocupar boa parte do dia, cercadas por ferramentas, uma mesa retangular e um armário de aço onde repousam os livros à espera de toques. No outro, cerca de dez cadeiras contornam uma longa mesa onde cerca de 700 alunos de diversas idades já aprenderam a arte de restaurar.
Os cursos que ministra refletem a mesma paciência exigida pela restauração. Ao longo de dez semestres, os alunos percorrem um caminho que vai da conservação básica às técnicas de encadernação clássica, couro e pergaminho. Cada fase amplia o repertório: higienização, costuras de época, douração, marmorização, tratamentos químicos e recuperação de capas. Alguns alunos a acompanham há anos, como o biólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Artur Chies, que frequenta a oficina desde 2018.
O aroma de café recém-passado anuncia a pausa das tardes no laboratório. Por volta das 14h30, é hora de interromper o trabalho. As cadeiras se aproximam, ao que se forma uma roda de conversa que já virou ritual. Um docinho circula entre as mãos, enquanto as vozes se cruzam em histórias sobre arte, livros, restauração e as pequenas sutilezas do dia a dia. Por alguns minutos, o ambiente é carregado pelo ar de pertencimento.

O ato de restaurar
A prática de restaurar é quase tão antiga quanto o próprio ato de escrever. Desde a Idade Média, monges copistas se dedicavam-se a copiar, traduzir e reparar manuscritos para preservar o conhecimento de seu tempo. Naquele contexto, restaurar era conservar o verbo e a fé. Séculos depois, o ofício ganhou novos contornos. Os livros do Renascimento, feitos de papel de trapo – uma mistura resistente de algodão, linho e cânhamo – atravessaram o tempo com uma melhor durabilidade. Porém, com o advento do papel de celulose, no século XIX, essa resistência começou a se perder. A fragilidade da nova matéria-prima impôs o surgimento de técnicas de restauro mais sofisticadas. A partir dos anos 1960, a restauração se consolidou como campo profissional, amparado por normas internacionais, como as da Carta de Veneza e do Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauração dos Bens Culturais (ICCROM), que estabeleceram princípios de mínima intervenção e respeito à autenticidade da obra.
É esse princípio que guia o trabalho de Sílvia. “Eu, como restauradora, não me acho no direito de alterar uma obra original”, afirma, com a firmeza de quem entende que restaurar não é criar algo novo, mas devolver o sentido ao que o tempo tentou apagar. Na oficina, o processo começa com a observação. Identificar e fichar o material, compreender o dano e decidir o melhor procedimento. Em seguida, vem o planejamento: cada costura, mancha ou rasgo dita o ritmo do trabalho. “O restaurador precisa entender até onde pode ir”, diz referindo-se à fronteira delicada entre o reparo e a interferência.
Em seus cursos, Sílvia costuma mostrar aos alunos um exemplar que repousa sob a uma grande estante. Trata-se de Le Antichità della Città di Roma (As Antiguidades da Cidade de Roma), publicado em Veneza, em 1562. A obra, escrita por Lucio Mauro com contribuições do naturalista Ulisse Aldrovandi, é um guia arqueológico da Roma antiga. Em suas páginas amareladas, desfilam descrições de templos, ruínas e monumentos, acompanhadas de gravuras em preto e branco que, mesmo desbotadas, preservam a elegância das linhas originais.
O livro, que atravessou quase cinco séculos, foi submetido a um delicado processo de restauração. Sua capa revestida em pergaminho de tom creme foi reconstituída para proteger o miolo fragilizado. As páginas de papel de trapo, uma a uma, foram higienizadas com álcool para conter a proliferação de fungos, e as costuras, rompidas pelo tempo, refeitas manualmente. Hoje, o volume carrega marcas visíveis de sua longevidade. Bordas irregulares, manchas sutis e o odor característico do papel antigo. Mas também carrega o testemunho da dedicação de quem o preservou. Folheá-lo é como tocar a história: sentir o peso dos séculos e o cuidado humano que o manteve vivo.

No laboratório, o ofício se apoia em equipamentos que revelam o rigor do trabalho, entre eles a secadora de papéis, o exaustor de gases para o manuseio de produtos químicos, as prensas horizontais e verticais, as gôndolas para perfuração de folhas e as estruturas de costura. As cicatrizes dos livros, diz Sílvia, não se apagam, “a idade do livro, assim como a nossa, vai aparecer”.
Entre as obras que já passaram por suas mãos estão exemplares do acervo permanente do Centro Cultural Érico Verissimo, em Porto Alegre. Coube a Sílvia limpar a sujidade, recuperar fragmentos rasgados, neutralizar a acidez do papel e reforçar as costuras das brochuras dos livros do autor, um trabalho de minúcia e reverência. O mesmo cuidado se estende agora a uma antiga edição de Os Lusíadas, datada de 1880, que pertenceu a dois grandes nomes da política brasileira.
A afetividade
Para Sílvia, restaurar não é apenas reconstruir um objeto, mas reatar vínculos invisíveis entre o tempo e a memória. “Quando pego um livro, sei que ele já passou por muitas mãos, que já foi parte de outras vidas”, afirma. “Quantas alegrias, ilusões, tristezas cabem num livro de 1550?”, questiona. Cada volume é, para ela, um vestígio da humanidade que o produziu e cuidar dele é, de algum modo, cuidar do próprio humano que por ali passou e passará.
A restauração segue com o princípio de conservar o que tem valor para as pessoas. “Um livro pode ser muito mais que um objeto para uma pessoa, pode ser uma ligação viva com a memória de uma mãe, um pai, ou alguém querido, e se tornam uma das coisas mais preciosas que guardam na vida”, diz. Em cada obra que passa por suas mãos, Sílvia reconhece o mesmo impulso que a fez guardar o seu exemplar de O Mundo da Criança: manter viva as histórias e as lembranças, mesmo quando o papel parece ter esquecido como fazê-lo sozinho. Restaurar não é apenas preservar a memória do que os livros contam. É preservar a memória que eles são — o silêncio que ecoa conhecimento, sussurra o passado e atravessa os séculos.
