Usamos cookies para melhorar sua experiência, personalizar conteúdo e exibir anúncios. Também utilizamos cookies de terceiros, como Google Adsense, Google Analytics e YouTube. Ao continuar navegando, você concorda com o uso de cookies. Veja nossa Política de Privacidade.

Municípios líderes em desmatamento no RS acumulam bilhões em subsídios agrícolas

Dados do Banco Central e do MapBiomas revelam correlação entre incentivos rurais e o avanço da supressão de vegetação

O Brasil e o Rio Grande do Sul vivem um paradoxo em suas políticas públicas. Investimentos públicos destinados ao agronegócio via crédito rural são aproveitados por proprietários de terras em muitas cidades que lideram os rankings de desmatamento. Na prática, é o Estado brasileiro custeando uma parte considerável da atividade rural que ameaça, entre outras coisas, a segurança climática dos gaúchos.

A nível nacional, alguns estudos já expõem a contradição na relação entre crédito rural e desmatamento. Um levantamento publicado em julho de 2024 pelo Climate Policy Initiative (CPI) revela que 31% das propriedades brasileiras onde houve desmatamento tiveram acesso a crédito rural subsidiado no período analisado, recebendo em média R$ 14 bilhões por ano – 15% do volume total de crédito subsidiado.

Para melhor compreender o cenário do Rio Grande do Sul, a reportagem apurou, a partir de dados do Mapbiomas, as 10 cidades que mais foram desmatadas entre 2020 e 2024, e as que mais receberam créditos rurais no mesmo período, de acordo com relatórios do Banco Central. Os dados são referentes a valores de programas de incentivo à agricultura e à pecuária, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp). Foram considerados os valores de custeio, utilizados para cobrir despesas já existentes, imediatas e rotineiras da produção; e os valores de investimento, que têm como objetivo bancar bens que vão repercutir no médio e longo prazo, visando expandir a produção, como terras, veículos ou maquinários.

Ao todo, os 10 municípios gaúchos com mais desmatamento tiveram R$ 9,3 bilhões dos cofres públicos direcionados a proprietários rurais beneficiados por programas de incentivo ao agronegócio.

Falta de critérios ambientais

Segundo o biólogo e ecólogo Paulo Brack, esse desenho de financiamento público fere critérios ambientais básicos. “O financiamento hoje desconsidera a necessidade do cumprimento da legislação no que se refere à Constituição Federal, especialmente no que tange à devastação que está ocorrendo. Não existe incentivo para proteger a biodiversidade quando o modelo econômico subsidia quem degrada”, analisa.

A relação entre incentivo financeiro e perda ambiental também é percebida pelo professor Valério de Patta Pillar, ecólogo da UFRGS. Para ele, não resta dúvidas sobre a correlação. “É possível conciliar avanço agrícola e pecuário com preservação ambiental, desde que existam limites. Essa correlação indica que a concessão de crédito deveria ser condicionada ao cumprimento desses limites”, pontua. Ele destaca ainda que parte do problema está no próprio desenho do crédito. “O Plano Safra já oferece um incentivo modesto de redução de juros para proprietários que atendam à legislação ambiental. O cumprimento da legislação deveria ser uma condição, não uma opção. E o crédito também não deveria promover a monocultura”, conclui.

No ano de 2021, por exemplo, o município de São Gabriel foi o quarto que mais desmatou no Estado, de acordo com o Mapbiomas. Ao todo, foram 213 hectares de área afetada, todos do bioma pampa. Ao mesmo tempo, a cidade da Campanha ficou em terceiro lugar no ranking de recebimento de créditos rurais no mesmo ano, com mais de R$ 437 milhões em benefícios. No acumulado dos cinco anos, entre 2020 e 2024, o município recebeu cerca de R$ 2,2 bilhões, segundo os registros do Banco Central.

Outra cidade que se destaca negativamente em termos ambientais é Canguçu. Localizada na região sul do Estado, é figura carimbada entre as 10 que mais desmatam. Ocupa o nono lugar em 2024, o quarto em 2023 e em 2022, a décima posição em 2021 e a sétima em 2020. Nos cinco anos analisados, Canguçu acumulou uma quantia de R$ 1,4 bilhão em crédito subsidiado por programas governamentais, com 463,18 hectares desmatados.

A terceira cidade que também preenche a cartela entre as 10 que mais desmatam e recebem créditos rurais é Bagé. Ocupando o sétimo lugar no ranking de desmatamento, com 431,28 hectares, recebeu, em 2022, R$ 308,8 milhões. Na soma dos cinco anos, a cidade da Campanha Gaúcha acumulou R$ 1,2 bilhão em valores investidos por programas de crédito rural.

São Gabriel, Canguçu e Bagé, juntos, somam aproximadamente R$ 4,9 bilhões em crédito rural recebido nos cinco anos analisados. Ou seja, representam mais da metade do total recebido pelos 10 municípios mais desmatadores.

Sobre esse cenário, Paulo Brack pontua que a lógica de incentivo se mantém mesmo diante de previsões internacionais. “As metas da Convenção da Diversidade Biológica já apontavam a necessidade de retirar financiamentos de atividades que degradam o meio ambiente. Não adianta falar de sustentabilidade enquanto continuarmos bancando quem destrói”, reflete.

Pampa, um bioma ameaçado

Parte do problema no Pampa se agrava porque o bioma é invisibilizado pela aparência mais rasa de sua vegetação. “Muita gente não percebe que a destruição de campos causa uma perda de biodiversidade tão grande ou maior do que quando se perde a floresta. Essa visão equivocada ainda prevalece”, diz Valério Pillar. O professor ainda cita que a perda anual de cerca de 140 mil hectares de campo nativo é tratada como algo normal. “Nada acontece e isso reflete um senso comum que não valoriza vegetação nativa que não seja florestal”, analisa.

Segundo Brack, isso escancara o papel dos subsídios na pressão sobre o território. “No ritmo atual, teremos talvez mais 20 ou 30 anos antes de reduzir o Pampa a menos de 10% da área original. É um colapso anunciado caso não haja mudança profunda nas políticas econômicas”, alerta, destacando que o problema é estrutural. “A economia brasileira é baseada na exportação de matérias-primas. A soja recebe R$ 516 bilhões do Plano Safra, não paga impostos na exportação e ainda conta com isenções de agrotóxicos. É um modelo que incentiva monoculturas que destroem os biomas”, diz.

Pillar concorda com a afirmação. Para ele, não faltam alternativas – falta vontade política. “As áreas campestres que já foram convertidas são suficientes para manter a agricultura e a silvicultura no RS. Os remanescentes podem ser conservados e sua produtividade pode aumentar com melhores práticas de manejo. Se a Lei 12.651/2012 (que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa) fosse cumprida, já seria o suficiente para barrar a perda de vegetação nativa”, conclui.

Embora alguns indicadores mostrem uma leve desaceleração no ritmo de perda da vegetação em partes do Estado, os dados reforçam a leitura dos especialistas. Segundo eles, o ciclo que junta o crédito rural e o avanço do desmatamento segue ativo e distante de uma mudança real. Os bilhões concentrados nos municípios que mais pressionam o Pampa indicam uma lógica de financiamento praticamente inalterada, mesmo após um ano marcado por eventos extremos, como as enchentes históricas que expuseram a fragilidade climática do Rio Grande do Sul.

Se, por um lado, os gráficos sugerem pequenas ondulações, por outro mostram que elas ainda não são suficientes para mudar a trajetória geral da degradação. Como apontam as fontes ouvidas pela reportagem, sem ajustes profundos nos critérios de créditos e nas práticas produtivas, a distância entre o incentivo público e a conservação ambiental tende a permanecer, e o futuro do Pampa seguirá diretamente influenciado pelas escolhas econômicas feitas agora, em um Estado que já sente os impactos de um território cada vez mais vulnerável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia também