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Entre estigma e identidade: a cultura das modificações corporais

Pessoas que mudam radicalmente o corpo enfrentam o preconceito para viver sua autenticidade na própria pele  

Tatuagens, piercings, alargadores, tinturas capilares… as possibilidades são inúmeras. Seja por motivações culturais, estéticas ou até mesmo políticas, as modificações corporais ganham espaço na sociedade. Ao passo que existem os que preferem tratá-las de forma mais discreta, há também aqueles que decidem ir um pouco mais além, transformando-as em um estilo de vida. O que para muitos pode parecer estranho ou até mesmo assustador, para eles é uma questão de identidade. 

Para Dandara Zick Gross, 20 anos, natural de Bento Gonçalves (RS), o desejo de se tatuar surgiu ainda na infância. “Desde muito criança, eu já era bem envolvida com a arte e a criação. Sempre soube que iria ser bastante tatuada, porque achava super legal ver pessoas assim. Meu sonho era ser desse jeito, estilosa”, relembra. Hoje em dia, ela reside em Garibaldi (RS) e trabalha como tatuadora em seu próprio estúdio. 

Aos vinte anos de idade, Dandara é uma entusiasta das tatuagens e já trabalha como tatuadora: “Meu sonho era ser desse jeito, estilosa” (Foto: Arquivo Pessoal)

O início foi cauteloso, muito por conta do conservadorismo paterno. “A primeira (modificação corporal) foi um piercing transversal na orelha. Eu tinha 15 anos na época”, relata. “Depois, com 16, fiz uma tatuagem pequenininha escondida do meu pai, porque ele não deixava”. Apesar disso, ela garante que mantém uma boa relação com a família: “Ele (o pai) já se acostumou. Até agradeço. Se eu tivesse feito as tatuagens antes dos 18, acho que elas não seriam tão legais”. 

Atualmente, além de piercings implantados, Dandara já contabiliza mais de 20 tatuagens. A mais chamativa se encontra no braço direito, onde foi aplicada uma técnica conhecida como blackout — que consiste em cobrir uma grande parte do corpo inteiramente com tinta preta. “Não tem nenhum significado em si. É uma tatuagem que eu admiro muito e queria fazer. Sempre quis ter um dos braços pretos”, comenta sobre sua intervenção favorita. 

Em relação ao simbolismo das modificações, Dandara aponta que existe um viés terapêutico. “Eu levo a tatuagem como um momento da vida que estou registrando. Se aconteceu alguma coisa que está me prendendo, eu penso em algo para fazer e eternizo”, declara. Ela reconhece que certas formas de julgamento são corriqueiras, mas diz que já aprendeu a lidar com a situação. “É uma coisa diária (o preconceito). Quando eu ando na rua, as pessoas me olham bastante com cara feia. Mas eu super entendo e até acho engraçado, sabe? Então não é algo que me afeta mais. Até porque tem os que acham legal também”, observa. 

Para o futuro, Dandara garante que deseja continuar se tatuando. “Eu pretendo fechar o corpo como um todo, só não a cabeça. Mas estou deixando muitas áreas livres para, mais para a frente, pensar em um projeto anatômico e bonito. Não dá para fazer tudo jogado”, conclui.

Estética de ruptura 

Natural de Osasco (SP), T. Angel é uma pessoa trans não-binária que trabalha na educação pública. Atualmente com 43 anos, está se preparando para iniciar o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), pela qual já cursou mestrado. Pesquisadora na área de corpos modificados desde a década de 1990, foi na época da adolescência que ela começou a praticar suas modificações corporais: “A primeira foi um body piercing na região do lábio. Eu tinha 15 anos de idade”.  

Hoje em dia, ela afirma não ter interesse em contar tudo o que possui no corpo, mas já realizou uma série de procedimentos estéticos. Além das tatuagens e piercings, também é possível perceber singularidades como implantes, alargadores, nulificações e escarificações — cicatrizes propositais feitas com o objetivo de marcar a pele permanentemente. Outro detalhe peculiar que pode ser observado é a bifurcação da língua, cortada na ponta de tal forma que a deixa semelhante à dos répteis.  

Perguntada sobre o que entende por modificação corporal, T. Angel explica: “Tudo. Acredito que todo o corpo vivo é modificado e passa por modificações ao longo dos anos. E dentre tantas possibilidades existentes de se alterar corpos, há esse pequeno recorte que costumo chamar de ‘modificações corporais não-hegemônicas’, como tatuagens, implantes, entre outros”, argumenta. “As pessoas são multiplicidades, assim como também serão as motivações (para se modificar). Em minhas pesquisas, percebo que passam pelo campo do ritual de passagem, estética, artística, afetividades, memória, etc.”.  

Autodeclarada monstra, desde a década de 90 T. Angel é pesquisadora na área das modificações corporais (Foto: Leonardo Waintrub)

Sobre o preconceito, Angel revela que se trata de algo extremamente presente. “Está em todos os espaços sociais que você pode imaginar. Não me dobro. Não me vergo”, atesta. “Precisamos urgentemente nos perguntar por que algumas modificações são aceitas e outras satanizadas. É uma emergência a luta pelo direito de decidir sobre os autousos do corpo”, conclui. Hoje em dia, ela se autodeclara “monstra”. “É uma desistência da espécie humana. É uma negação. É pegar uma palavra que utilizavam para me desumanizar, ressignificá-la e vesti-la dizendo: ‘vocês que fiquem com a humanidade’. Essa humanidade corrompida que está levando o mundo ao colapso”, comenta. 

Desde 2006, T. Angel gerencia o “FRRRKguys”, maior fórum online de modificações corporais do Brasil. Atualmente, essa comunidade já conta com mais de 8.300 seguidores no Instagram e centenas de artigos publicados no site oficial. O nome escolhido faz referência ao “Orgulho Freak” (em português, esquisito ou anormal), movimento social que celebra a individualidade excêntrica e a subjetividade dos corpos modificados. Ela também foi responsável pela obra A história da modificação corporal no Brasil – 1989-1990. “É um pequeno livro feito com muita responsabilidade e paixão, que busca contar e preservar nossa história”, assegura.  

Psicologia da diferença

Para Bernardo Misturini, especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC) e neuropsicologia, as modificações corporais podem ser interpretadas de diversas formas. “Não é errado dizer que se trata de uma forma de arte, e  a gente também pode pensar nisso em termos de uma construção ou reafirmação da nossa própria identidade”, define. “Particularmente, como psicólogo, acredito que mesmo um corpo inteiro modificado não seria suficiente para expressar tudo o que o ser humano representa. Entretanto, essas simbologias de identificação demonstram traços daquilo que se quer representar”.  

O psicólogo explica que as alterações corporais, por si só, não fazem referência direta a nenhum problema emocional. “Não é o tipo da modificação ou a quantidade em si que vão definir uma patologia, assim como também não é o desenho ou a forma que foi escolhida. Há muitas coisas que devem ser levadas em consideração”, aponta. Entretanto, segundo ele, modificações que precisam ser feitas a qualquer custo e que colocam a saúde ou a integridade física em risco devem acender um sinal de alerta.  

“É muito fácil olhar para as coisas que nos incomodam no outro. Isso tira o foco das coisas que não queremos olhar em nós mesmos. Mas será que esse incômodo não está nos prejudicando?”, provoca o especialista. “Se a gente simplesmente se permitir a se abrir e a conversar com essas pessoas, olhando para além das modificações, acredito que seria uma evolução muito importante. É a diferença que nos enriquece”, finaliza. 

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