Lucas Leiva jogou decisões de Libertadores, Champions League, Premier League e vestiu a camisa da Seleção Brasileira. O corpo, acostumado à elite do futebol mundial, parecia uma máquina infalível. No entanto, em um exame de rotina antes da pré-temporada de 2023, o então volante do Grêmio recebeu uma notícia que nenhum atleta espera: uma fibrose no miocárdio. “Eu tenho uma cicatriz no coração (…) uma parte dele não bate”, revelou o jogador em comunicado oficial. A descoberta impôs uma escolha drástica, porém necessária: “Não era a melhor decisão, era a única decisão. A aposentadoria”, contou Lucas em sua despedida, para evitar o risco iminente de morte súbita em campo.
O caso de Lucas não é isolado e ecoa uma discussão urgente trazida à tona recentemente pela morte do jogador uruguaio Juan Izquierdo, em 2024: até que ponto o corpo humano suporta a exigência do alto rendimento? Enquanto a torcida vê a glória e a superação, nos bastidores, médicos, advogados e os próprios atletas lidam com uma realidade em que a saúde muitas vezes entra em conflito com a performance.
O corpo emite sinais, mas nem sempre avisa
Para o cardiologista Rodrigo Bodanese, do Hospital da PUCRS, o monitoramento deve ser constante. Em atletas de elite, testes cardiológicos são geralmente anuais, mas o corpo pode mudar a qualquer momento. “Os principais sintomas são falta de ar desproporcional ao exercício, tontura, sensação de desmaio e dor no peito”, explica o médico.
A preparação para emergências é crucial. Bodanese alerta que equipes em estádios e ginásios precisam estar treinadas para identificar rapidamente uma parada cardíaca. “No caso de um jovem jogador que cai no meio do campo, é preciso identificar o que houve o mais rápido possível”, afirma, ressaltando que protocolos bem definidos de reanimação são a diferença entre a vida e a morte.
A vulnerabilidade de quem não é milionário
Se para um atleta consagrado como Lucas Leiva a aposentadoria precoce foi um “baque enorme” amortecido por terapia e estabilidade financeira, para a grande massa de jogadores brasileiros, o fim da carreira por doença é uma sentença de desamparo.
A advogada Mariju Maciel, especialista em direito desportivo, lembra o caso do ex-atacante de clubes como Grêmio, Inter e Vasco, Everton Costa, que encerrou a carreira em 2014 por doença cardíaca. “Nenhum clube o ajudou. Hoje, ele vive do ínfimo benefício do INSS”, relata Mariju. Segundo ela, existe um mito de que todos os jogadores ficam ricos, quando, na verdade, 55% ganham até R$ 1 mil, conforme um estudo divulgado pela plataforma CupomValido que reuniu dados da CBF, Statista e Ernst & Young sobre o esporte no Brasil.
Além do risco físico, há o abismo jurídico. Mariju destaca que a legislação muitas vezes “engessa” a carreira de jovens promessas com multas rescisórias milionárias, impedindo que atletas que ganham pouco aceitem propostas melhores. “A lei não distingue quem ganha mais de quem ganha menos”, critica a advogada, que atua como uma “guardiã” desses profissionais, lutando por direitos básicos como adicional noturno e repouso remunerado.
Essa vulnerabilidade é agravada pela “hipossuficiência emocional” de jovens que saem de casa muito cedo, longe da orientação dos pais, tornando-se peças fáceis na mão de empresários e clubes.
A ilusão do “Wellness” e o atleta amador
A pressão por superar limites não está restrita aos estádios lotados; ela também se infiltra no cotidiano de amadores sob o disfarce da vida fitness. A corredora amadora Carini Moretti viveu isso na pele. Motivada pelo lema de que esporte é “saúde em primeiro lugar” e buscando “superação”, ela ignorou o cansaço até passar mal durante uma prova em 2022 e parar na ambulância.
O incidente revelou uma cardiopatia congênita que ela desconhecia. “Muito possível que o episódio nem tenha ocorrido pela cardiopatia, mas foi o que me fez descobrir e tratar o problema”, conta Carini, que precisou passar por cirurgia. O caso ilustra como o discurso comercializado do bem-estar pode, paradoxalmente, esconder riscos severos se não houver acompanhamento médico rigoroso.
A vida após o apito final
Para quem precisa parar, o desafio é encontrar uma nova identidade. Lucas Leiva admite que sente saudades da adrenalina dos jogos, mas aprendeu a redirecionar a competitividade para outras áreas. “A gente para muito cedo (…) é super importante estar bem auxiliado, também mentalmente, para tomar outros rumos”, reflete.
Seja na elite ou na base, a conclusão é unânime: o esporte de alto rendimento exige uma máquina perfeita, mas ela é operada por seres humanos vulneráveis. Sem protocolos médicos rígidos, suporte psicológico e proteção jurídica, o preço da vitória pode ser irreversível.
Foto destacada: Lucas Leiva, ex-jogador do Grêmio, concedeu entrevista coletiva para anunciar aposentadoria devido a problemas de saúde, em março de 2023. (Crédito: Lucas Uebel/Grêmio FBPA)
