Na tarde de 7 de agosto de 2025, a tranquilidade das escolas de Novo Hamburgo foi rompida por uma mensagem que circulou pelos grupos de Whatsapp de pais e professores: uma ameaça de ataque. Pai de dois alunos do Colégio Sinodal da Paz, Antônio Carlos Oliveira comenta que, inicialmente, levou a ameaça com desconfiança. “Pensei que poderia ser um trote, mas depois me preocupei. Logo pensei nos meus filhos”, lembra. Mas logo ele e centenas de pais correram às escolas para buscar os filhos e as aulas foram suspensas pela prefeitura. Durante dois dias, o silêncio substituiu o som das crianças nos pátios das escolas hamburguenses. O ataque, felizmente, não foi efetivado.
Segundo o relatório D3e – dados para um debate democrático na educação – ataques em escolas têm se tornado mais frequentes no Brasil desde 2022. Foram 27 casos desde então, correspondendo a 62% de ocorrências totais no século. Desse total, 78% dos autores de ataques eram menores de idade e apenas um era uma garota.
No caso de Novo Hamburgo, as mensagens que continham as ameaças foram interceptadas na dark web – um ambiente virtual desconhecido pela maioria das pessoas, que se tornou mais próximo com o caso na região. “A dark web é como um submundo da internet, similar ao modo que todos usamos. Porém, ela não pode ser encontrada em mecanismos de busca tradicionais na web, como o Google ou Firefox”, explica o inspetor da Delegacia de Polícia de Novo Hamburgo Yan Cavalheiro.
Segundo Michele Prado, assessora especial do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema do Ministério Público do Rio Grande do Sul (Nupve-MPRS), desde 2022, uma combinação de fatores têm colaborado para o aumento de ataques e comportamentos violentos em jovens. “A internet tem papel central tanto na origem quanto na difusão desses atos, fornecendo narrativas, modelos e rituais que jovens podem imitar, se inspirar e principalmente, auto radicalizar”, afirma. Estudos do Núcleo apontam que a maioria dos recentes ataques exibiram, nas evidências deixadas pelas pegadas digitais dos agressores, indicadores de radicalização online. “Grupos se formam onde há afinidades compartilhadas sejam ideológicas, identitárias ou mesmo estéticas, e na exploração de vulnerabilidades pré-existentes”, esclarece Michele. “Esses discursos se proliferam com mais eficácia quando há possibilidade de anonimato e moderação fraca por parte das plataformas digitais”.
Embora apareça em alguns casos, nem sempre é a dark web o principal ponto de contato entre adolescentes e grupos extremistas. “A porta de entrada costuma ser a internet costumeira que usamos. A dark web funciona mais como espaço de aprofundamento e coordenação para quem já está radicalizado violentamente e criminosos em geral”, explica. “Agentes maliciosos às vezes aliciam o usuário a partir de memes, subculturas on-line, chats de games, humor ácido, canais no YouTube, fóruns, que depois os levam a grupos fechados (Telegram, Discord) e, em casos mais avançados, a espaços mais anônimos”, conclui.

Perigo digital
A psicanalista e mestre em saúde coletiva Priscila de Melo afirma que os jovens são mais suscetíveis a conteúdos violentos na internet devido a fatores como: busca por aceitação identidade e pertencimento; solidão e isolamento social; ansiedades, incertezas e pouca esperança sobre o futuro; vínculos familiares frágeis ou deteriorados. “É comum que grupos extremistas explorem essas fragilidades dos jovens e ofereçam falsas soluções fáceis e simplórias para mitigar esses problemas, o que atrai o indivíduo”, explica Priscila.
A adolescência é o período da vida em que são formados a identidade, valores e personalidade do ser humano. “O contato contínuo com discurso de ódio interfere na construção de vínculos saudáveis e na capacidade de convivência, podendo comprometer o desenvolvimento emocional e social do adolescente”, pontua a psicóloga. Ela esclarece ainda que o fato de autores dos ataques serem majoritariamente garotos pode ser explicado pela exploração de ideias de masculinidade baseadas em ódio, força e superioridade. “Isso pode levar meninos e homens jovens a construírem uma identidade frágil, com uma infinidade de traumas e problemas não solucionados, uma necessidade de dominação, então recorrem a instrumentos como agressividade para lidar com problemas”, observa a psicanalista.
Priscila destaca que as redes sociais e a Internet são espaços tão reais na vida dos jovens quanto qualquer outro, e é nesses espaços que muitos adolescentes encontram acalento para suas dores, um ombro com quem desabafar e chorar, uma palavra amiga ou de acolhimento. “Para que comunidades extremistas usem disso para manejar estes jovens é um passo muito pequeno”, frisa.

Rotina escolar
Poucos dias após a ameaça de atentado que assombrou as escolas de Novo Hamburgo, a prefeitura anunciou o Programa Escola Segura, com investimento de R$ 11,3 milhões para implementar medidas de segurança nos colégios municipais da cidade. A proposta prometia câmeras com inteligência artificial, entrada monitorada, botões de pânico, reforço da Guarda Municipal e ações pedagógicas de convivência e saúde mental.
Coordenado pela Secretaria Municipal de Educação (SMED) e a Secretaria Municipal de Segurança Pública (SMSP), o projeto contava com prazos para a execução dessas ações. No entanto, passados alguns meses, a rotina dos colégios ainda mostra uma grande diferença entre o discurso oficial e o que realmente chegou às instituições.
De acordo com a diretora da EMEB Francisco Xavier Kunst, no bairro Canudos, Daniela Menezes, nenhuma das ações prometidas foi implementada de fato. “A patrulha não está acompanhando entradas e saídas, a verba extra ainda não chegou e continuamos sem profissionais para a zeladoria da escola”, reconhece.
Na EMEB Ana Néri, no bairro Boa Saúde, a diretora Cristiane Brodbeck compartilha uma situação parecida: o projeto de construção de um muro e de instalação de interfone com câmera foi aprovado, mas sem verba liberada até agora. “Foi concluída a instalação das câmeras de segurança em pontos estratégicos, o que estava prometido desde o ano passado. A princípio, a Guarda Municipal acompanha as imagens, mas não recebemos nenhuma orientação de como funcionam”, comenta. Ela também aponta a sobrecarga da equipe diretiva: “Não temos secretária em tempo integral. Somos nós que abrimos o portão, atendemos telefone, recebemos a comunidade e ainda tentamos dar conta de todas as nossas atribuições, que são muitas”.
Já na EMEB Elvira Brandi Grin, no bairro Rondônia, algumas medidas começaram a aparecer. A diretora Franciele da Rosa explica que a escola estabeleceu um protocolo mais criterioso para a entrada de terceiros e está realizando o cadastramento dos responsáveis pelos estudantes, já que o portão de entrada conta com uma câmera de reconhecimento facial. Apesar disso, a presença da Guarda Municipal é esporádica. “As rondas foram intensificadas, mas não há periodicidade definida. Em casos de emergência, temos um grupo de WhatsApp no qual podemos solicitar auxílio”, explica Franciele.
Outro ponto em comum nas três escolas é a falta de treinamento coletivo e de acompanhamento psicológico. Daniela Menezes afirma que apenas ela participou de uma formação específica, enquanto o restante da equipe não recebeu orientações sobre o que fazer em caso de emergência.
A Guarda Municipal afirma que o monitoramento das escolas é feito pela Patrulha Escola Segura, com quatro viaturas e oito agentes realizando rondas. “Tivemos um simulador de agressor ativo e estamos elaborando um plano de evacuação em caso de ataques”, informa o inspetor-chefe Marcelo Ribamar.
Apesar disso, o cotidiano das escolas municipais segue marcado por improvisos e inseguranças, dependendo mais do esforço interno das equipes do que das ações do programa, conforme relatam as diretoras.
Instituições particulares de Novo Hamburgo também se mobilizaram após a ameaça. No Colégio Sinodal da Paz, a coordenadora Silvana Noll afirma que o acesso à escola está restrito a colaboradores com crachá, que destravam os portões para alunos e visitas agendadas. O colégio reforçou a segurança com câmeras, aumentou a altura dos portões e realizou dois treinamentos com especialistas em segurança. Além disso, uma comissão interna elaborou um protocolo, repassado a toda a equipe. Silvana destaca que essas ações aumentam a segurança, embora todos permaneçam cautelosos.
Carla Beatriz da Silveira, gerente administrativa do Colégio Santa Catarina, também ressalta que a escola reforçou a segurança terceirizada, instalando mais câmeras e interfones faciais e mudando os horários de abertura e fechamento dos portões. Ainda assim, ela reconhece que a segurança pública poderia oferecer mais suporte, com a instalação de câmeras nas vias próximas às escolas e maior presença policial.
Entre portões eletrônicos, câmeras, planos de emergência e conversas em sala de aula, as escolas privadas da cidade compartilham uma certeza com as públicas: de que a segurança escolar é uma pauta permanente, e cuidar da proteção e do bem-estar dos alunos e funcionários deve ser prioridade.

Medidas preventivas
O Nupve-MPRS defende que a educação digital é crucial na prevenção. “Literacia para identificar manipulação, análise crítica de fontes, compreensão de algoritmos e capacitação emocional são requisitos essenciais para um uso saudável da internet para os jovens”, pontua Michele Prado.
Além disso, escolas precisam de currículos que integram tecnologia e noções básicas sobre extremismo online, cidadania e saúde mental e famílias precisam de orientação prática sobre diálogo aberto, supervisão e controle do acesso à internet, atenção a mudanças de comportamento.
Para o inspetor de polícia Yan Cavalheiro, o controle parental é inestimável. Segundo ele, dar acesso ao celular a uma criança de 10 anos e deixá-la sem supervisão é como dar acesso ao mundo inteiro. “Tu não vais largar teu filho no meio da rua, no meio de uma praça, de noite. Então por que tu vais deixar teu filho mexendo no celular, duas da manhã, sozinho, sem saber o que ele está mexendo? É a mesma coisa”, compara.
A psicanalista Priscila reconhece que lidar com esses assuntos é um grande desafio: “É muito comum que não se saiba como abordar, de qual forma manejar e o que fazer com tudo que pode vir desta conversa”. Ela defende que a abertura do diálogo precisa passar necessariamente por uma escuta aberta, franca e que demonstre que os familiares estão realmente interessados em escutar e entender o jovem, e não apenas em o repreender e definir o que é certo ou errado. “Uma das melhores ‘vacinas’ contra esses grupos extremistas é o fazer o jovem se sentir percebido, olhado, escutado, valorizado, reconhecido”, recomenda.
A tendência, contudo, é de alto risco de crescimento desses casos. O próprio Nupve-MPRS organiza e participa de iniciativas para notificação e remoção de conteúdo e ações investigativas contra redes que distribuem material criminoso junto do Ministério de Justiça e Segurança Pública, Polícia Federal, Associação Brasileira de Inteligência Nacional (ABIN) e secretarias estaduais. “Minha aposta prática é que, infelizmente, isso é imparável”, lamenta Michele. “Podemos reduzir impacto se houver investimento sistêmico em prevenção, coordenação interinstitucional e responsabilização de atores que lucram com a difusão de ódio”.

