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A fé que virou brinde: como um aspirante a padre tornou-se dono de bar?

Reinaldo da Rocha desistiu da vida religiosa para transformar um terreno vazio em frente a Unisinos no coração da noite universitária

Ele é parte importante da história da Unisinos. Curiosamente, não é funcionário. Também não é professor. Já foi aluno, mas nunca chegou a concluir a graduação que começou; aquele típico silêncio da sala de aula nem combina com sua personalidade. Gosta mais da conversa, do movimento, da aglomeração. O espírito empreendedor apareceu ainda na infância. Já foi dono de um mercado, de um bar, de um segundo mercado, de um estacionamento e, hoje, há mais de 20 anos é proprietário de seu segundo bar. “Quando criança, via que o dono só ficava sentado e não fazia nada; era aquilo que eu queria pra minha vida”, conta em tom de brincadeira.

Desde o início dos anos 2000, Reinaldo Afonso da Rocha faz as noites dos estudantes da maior universidade do Vale dos Sinos mais felizes. Entre uma cervejinha gelada, uma risada com amigos e um momento de descontração, seu estabelecimento tornava-se espaço de conforto para aqueles jovens que precisavam dar uma escapada das exigências da vida adulta que começava a bater na porta. O nome Reinaldo não passava de uma mera formalidade, já que o marcante apelido pelo qual era conhecido, estampava o letreiro do estabelecimento em letras vermelhas garrafais: Bar do Alemão.

As três mesas de sinuca são local de diversão para os frequentadores que pagam R$ 1,00 por partida – GUSTAVO BAYS/BETA REDAÇÃO

Alemão, apenas para os leopoldenses e seus costumeiros clientes, já que a alcunha surgira ainda quando aquele mesmo terreno dava lugar ao estacionamento que ele havia inaugurado. Em Estrela, cidade onde nasceu, era Reinaldo mesmo. E talvez continuasse apenas Reinaldo se a vida não tivesse feito algumas curvas inesperadas.

Durante o início da adolescência, ele chegou a acreditar que poderia seguir o caminho religioso e se tornar padre. A vontade era sincera o suficiente para levá-lo a um internato em Bom Princípio, onde passou alguns anos. Com o tempo, a cabeça começou a mudar. “Ficou muito difícil lá, era tudo muito rígido. Queriam que a gente fosse santo, e guri novo quer aprontar.” Acabou desistindo e voltou para Estrela, levando a experiência consigo. Terminou os estudos, chegou a trabalhar na região e, algum tempo depois, decidiu tentar a vida fora da cidade natal.

Já no início da vida adulta, resolveu vir para a Unisinos em busca de estudo. Tentou vaga em um curso que era novidade na época. “Queria fazer Nutrição, que era novo e bem disputado, e acabei não entrando. Mas escolhi a segunda opção e deu certo.” Ingressou em Ciências Contábeis e cursou cerca de metade das disciplinas antes de desistir por completo da graduação.

O mercado não espera sentado

Trabalhou por alguns anos de carteira assinada, mas sentia que não era aquilo que queria. Então associou-se com dois primos e o irmão e abriu um minimercado em Esteio. Eram eles mesmos que a enfrentavam as dificuldades diárias, eram os responsáveis pelo estoque, pelo açougue, pelo caixa e por tudo o que fosse necessário. “A jornada era muito longa, às vezes passava de 14 horas, e eu não consegui conciliar com os estudos.” Ficou alguns anos nessa rotina, até que decidiram fechar o comércio. “Nesse período eu me casei e a minha esposa não se adaptou muito à rotina do mercado. Ainda tiveram os assaltos, uns cinco ou seis. O último foi mais grave, tentaram sequestrar meu guri junto. Ele era um bebê ainda, então desisti.”

Eles fecharam o mercado naquele endereço, mas o lugar não ficou muito tempo sem função. Depois do susto, ele ainda levou um tempo para se recuperar, mas acabou voltando com outra ideia: montou uma bodega no mesmo espaço. Era um ambiente diferente do antigo comércio, mais pulsante, com gente entrando e saindo o dia inteiro. A música baixa se misturava com o barulho da conversa, com o cheiro do cigarro e o vai-e-vem das bolas de sinuca. Ele ria ao lembrar das figuras que apareciam por lá. “Alguns dos caras que tinham me assaltado viraram clientes. Iam lá jogar, beber. Era engraçado, mas ao mesmo tempo trágico”, relembra.

O Bar do Alemão também conta com seus felinos de estimação que se sentem à vontade com o público em volta – GUSTAVO BAYS/BETA REDAÇÃO

Apesar das boas lembranças, o local não era sinônimo de prosperidade. O movimento mantinha o básico, pagava fornecedores, cobria as contas e segurava a casa, mas não sobrava quase nada. “Vivíamos apertados. Dava para manter a família sem dívidas, mas não dava para grandes extravagâncias.” Ficou alguns anos levando essa rotina, equilibrando como podia o pouco que entrava. Foi ali que entendeu na prática que aquele sonho de infância, de ser o dono de mercado que ficava sempre sentado observando o movimento, não correspondia com a realidade. Na verdade, o dono era quem mais corria, andava sempre cheio de boletos, contas atrasadas nas mãos e não tinha um segundo de paz.

Com o tempo, fechou a bodega, conseguiu comprar uma casa em Esteio e, na frente dela, ergueu um novo minimercado. Era mais uma tentativa de reencontrar estabilidade, um recomeço dentro da mesma profissão que já o acompanhava há tantos anos.

Do terreno vazio à vida em movimento

Com o passar do tempo, a gestão do minimercado passou para as mãos da agora, ex-esposa. Durante o período, ele se dedicava à marcenaria, mas sentia falta de tocar um empreendimento, por isso acabou seguindo um novo caminho longe de Esteio. A mudança começou a se desenhar quando o irmão Pedro, no final de 1999, comentou sobre um terreno que possuía em São Leopoldo, bem em frente a Unisinos. Era um espaço grande e totalmente vazio. A região estava em expansão e começava a receber cada vez mais carros por causa da movimentação da universidade, portanto decidiram colocar um estacionamento naquele terreno.

Alemão lembra que tudo começou com uma proposta direta do irmão. “Ele me chamou e disse que aquele espaço poderia virar uma boa oportunidade de negócio, algo para eu tocar e voltar a fazer o que eu gostava, que era empreender”, conta.

A partir daí, a dupla iniciou o trabalho do zero. O pedaço de terra era tomado por eucaliptos, que precisaram ser removidos antes de qualquer coisa. Depois veio a terraplanagem, o nivelamento e toda a preparação para que, pouco a pouco, ganhasse forma. “Não tinha nada ali. Fomos fazendo conforme dava”, relembra Alemão.

Apesar dos esforços, o plano não deu certo. Para concorrer com o estacionamento da Unisinos, que era próprio, barato e bem localizado, eles precisaram reduzir muito os preços, logo perceberam que não haveria lucro. “Foi aí que comecei a pensar em como transformar aquele espaço em algo diferenciado, que realmente chamasse atenção de quem vinha até aqui”, aponta.

Em dias de semana o bar abre pela manhã e só fecha depois da meia-noite – GUSTAVO BAYS/BETA REDAÇÃO

Graças à sua veia empreendedora, ele enxergou uma nova oportunidade. Como o lucro no estacionamento era limitado, decidiu investir em algo que o concorrente não ofertava: experiência e relacionamento. Decidiu comercializar refrigerantes e salgados, criando um ambiente de convivência. Começou a conversar com os frequentadores, a conhecer o pessoal, e logo ganhou o apelido de Alemão. Aos poucos, o estacionamento se transformou em ponto de encontro. Quando o frio chegou, passou a vender quentão, o que fez um sucesso imediato, atraindo as pessoas para beber, conversar e fortalecer os laços.

Em questão de três ou quatro meses, o estacionamento mudou completamente de cara, dando lugar a um novo negócio, graças à sua habilidade de criar relacionamentos interpessoais. “Nessa época que surge o apelido. ‘Alemão, guarda minha chave; Alemão, estaciona meu carro’. Passou de Estacionamento do Alemão para Bar do Alemão e, hoje para Restaurante do Alemão também”, descreve ele.

O vínculo com a comunidade se manteve forte ao longo das décadas. “Se a pessoa é boa, faz amigos. Muitos ainda vêm tomar uma cervejinha. Não só os alunos, mas também os professores”.

Um exemplo claro dessa boa relação com seus clientes é a história do representante comercial Rodrigo Souza. Ele estudava na Unisinos à época e, mesmo depois de tantos anos, ainda visita o bar. “Eu comecei a frequentar quando ainda era estacionamento. Criei vínculo com o espaço, com o Alemão, e com o tempo vi o negócio crescer. Voltar aqui hoje é visitar amigos e lembrar de bons momentos, além de aproveitar o ambiente que sempre foi acolhedor”, relata. Para Rodrigo, a relação com o local vai muito além da comida ou da bebida: é a familiaridade e a parceria construída ao longo de anos que tornam cada visita especial.

A noite o bar enche de estudantes universitários que buscam um momento de lazer depois da aula – GUSTAVO BAYS/BETA REDAÇÃO

Sob o mesmo teto, novas histórias

O Bar do Alemão sempre foi um lugar alegre, um espaço de encontros e risadas que parecia transbordar. Contudo, a Covid-19 trouxe um desafio. Como ele mesmo lembra, “já foi muito bom. Antes, eu nem teria tempo para essa entrevista. A pandemia deu uma reviravolta brutal. Eu tinha mil caixas de cerveja paradas que estragaram”. Aqueles dias foram pesados, e mesmo com o tempo, o bar nunca voltou a girar com a mesma velocidade de antes, nunca recuperou completamente seu movimento.

Com a diminuição dos clientes, ele precisou buscar soluções e encontrou uma saída no almoço. Antes, o cardápio oferecia apenas lanches, mas a inclusão de um buffet deu nova vida ao negócio e garantiu uma renda extra. “O bar funciona de segunda a sábado, e conseguimos organizar tudo de forma que cada detalhe funcione bem. A equipe é pequena, mas eficiente, e cada um sabe exatamente seu papel”, conta Alemão.

O clima entre os funcionários é próximo, quase familiar. Há risadas que se espalham pela cozinha, conversas que fluem naturalmente e um cuidado mútuo que transforma o trabalho em algo leve. Márcia Moraes, que trabalha ali há alguns anos, resume bem essa convivência. “Eu admiro a amizade que ele tem com as pessoas, com a gente também. Sempre está conversando, de bom humor. Se estamos com algum problema, ele é quase um psicólogo. Quando eu precisei financiar minha casa, ele me ajudou, deu apoio. Não é só um patrão, ele é amigo da gente”, explica a funcionária. Entre panelas, copos e clientes que entram e saem, a relação de confiança e companheirismo se sente em cada detalhe, e dá ao bar uma atmosfera única.

A funcionária Márcia Moraes considera Alemão um parceiro que pode contar nos momentos difíceis – GUSTAVO BAYS/BETA REDAÇÃO

Quanto ao futuro, Alemão, hoje aos 66 anos, segue mantendo os pés no presente, mas com o olhar atento ao que virá. Pretende continuar enquanto tiver forças e não descarta que alguém de sua família ou um novo proprietário possa assumir, mantendo o espírito e o legado do lugar. Como ele mesmo diz, “enquanto Deus me der força, quero seguir. Foi muito suor para chegar até aqui”. A história do bar segue viva, entre risos e memórias, pronta para os próximos capítulos, sem perder a essência que sempre o tornou especial.

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