Escutar a Daiane dos Santos pessoalmente é descobrir uma mulher que vai muito além da atleta que vimos conquistar o mundo. É impressionante como mesmo tendo um salto com o próprio nome na história da ginástica ela fala de tudo com uma simplicidade e um carinho que nos fazem esquecer por alguns minutos que estamos diante de uma pioneira.
A Daiane fora da ginástica artística é outra presença. Ela é riso fácil, olhar genuíno, fé firme e um orgulho enorme das próprias raízes. E isso aparece em cada resposta, em cada lembrança.
Ao perguntá-la quem é fora das câmeras, ela responde com muita clareza e rapidez: “Eu sou uma pessoa muito cristã, não como rótulo, mas como fundamento”. A fé atravessa toda a trajetória de Daiane: a coragem de decidir parar, a força para recomeçar, a tranquilidade de aceitar que a vida tem ciclos. Ela fala disso com um brilho nos olhos, como se cada virada tivesse vindo com uma mão invisível dizendo: “Vai, tu consegue”.
O diálogo com Daiane do Santos aconteceu durante o Power Up Unisinos, um evento que acontece anualmente e é organizado pela própria Universidade do Vale dos Sinos. Um espaço que proporciona reflexão sobre a construção e desenvolvimento de carreira no cenário atual e perspectivas futuras. Neste ano a palestrante escolhida a foi campeã mundial de ginástica artística, para uma fala sobre sua trajetória no esporte, construção profissional e autodesenvolvimento.
Orgulho de onde veio
Além da religiosidade, a fala de Daiane mostra o orgulho de onde ela veio. Ela cresceu no bairro Medianeira, na zona sul de Porto Alegre. A ex-ginasta não separa a campeã mundial da menina que cresceu na comunidade. Pelo contrário: ela faz questão de lembrar que é dali que veio toda a força, e que a ginástica só foi possível porque uma professora enxergou nela o que ninguém tinha visto antes.
Em 1994, aos 11 anos, ela brincava numa pracinha que ficava junto à Associação dos Amigos do Centro Estadual de Treinamento Esportivo (AACETE), no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, quando foi abordada pela professora Cleusa de Paula, que viu na Daiane um porte físico para ginástico e a convidou para fazer o teste no Grêmio Naútico União. Foi uma oportunidade que mudou tudo: uma professora que viu nela o que ninguém mais enxergaria. Não viu atraso, nem falta de padrão, nem limite. Viu brilho.
Daiane carrega essa memória com emoção evidente. E deixa claro: é por ter recebido muito, que hoje sente necessidade de devolver. Ela diz com uma naturalidade bonita que é “cria da comunidade”, fala isso sorrindo, como quem sabe exatamente o poder que essa frase carrega.
O “Duplo Twist Carpado” como metáfora de vida

Sua carreira inciou aos 11 anos e rapidamente se destacou rapidamente. Começou a fazer parte da equipe de ginástica do Grêmio Naútico União no ano de 1995 e ficou até o ano de 2005. Ela entrou para a seleção brasileira em 1997 e fez parte até o ano de 2012, quando aposentou. Durante esse período, ela só ficou de fora entre 2008 e 2011 por ter feito uma cirurgia no joelho direito.
Ao se aposentar, Daiane dos Santos havia alcançado feitos inéditos na ginástica brasileira. Em 2003, no Mundial de Anaheim (EUA), ela se tornou a primeira brasileira a conquistar uma medalha de ouro em um Campeonato Mundial, vencendo na prova de solo. Daiane também teve dois movimentos no solo nomeados em sua homenagem: o “Dos Santos I” (duplo twist carpado) e o “Dos Santos II” (duplo twist esticado). Ela acumulou nove medalhas de ouro, uma prata e quatro bronzes em etapas de Copas do Mundo. Participou de três edições dos Jogos Olímpicos (2004, 2008 e 2012), alcançando o quinto lugar no solo em Atenas 2004, que era o melhor resultado olímpico individual de uma ginasta brasileira na época.
Daiane dos Santos anunciou sua aposentadoria definitiva em 31 de agosto de 2012, aos 29 anos, após detectar uma nova lesão. Suas últimas apresentações como ginasta da Seleção Brasileira ocorreram durante a fase classificatória das Olimpíadas de Londres, em julho de 2012, a qual conquistou o 12º lugar por equipes.
A ex-atleta fala da aposentadoria da ginástica com uma sinceridade que é quase dura: não foi fácil. Foi planejado, pensado, dolorido mas necessário. Ela sabia que a ginástica era finita e que precisava preparar outro caminho. Passou quatro anos estudando, estagiando, se reorganizando mentalmente para aceitar que o corpo que voava não duraria para sempre. Foi quando percebeu que estava prestes a dar o maior salto da vida, e usou o próprio movimento como metáfora: “Eu dei meu Duplo Twist Carpado para aterrissar em outro lugar.”
O salto virou símbolo: coragem, giro, reinvenção. E, como ela diz, a vida também exige técnica e ousadia para que a gente possa continuar em pé depois de virar.
A comunicadora que narra com técnica e sente com o coração
Após se aposentar da ginástica artística, a ex-atleta, formou-se em Educação Física e, por volta de 2015, começou a trabalhar como comentarista no Grupo Globo, atuando nos canais SporTV e na TV Globo. Desde então, ela participa das transmissões de grandes eventos de ginástica, como Olimpíadas e Campeonatos Mundiais.
Quando recebeu o convite para ser comentarista, Daiane não se escondeu atrás do currículo de campeã mundial. Ao contrário: pediu estágio, pediu para observar outros profissionais, pediu para aprender. “Fazer ginástica é uma coisa. Explicar ginástica é outra”, ela repete.
Hoje, segundo Daiane, seu jeito de comentar se apoia em dois pilares: técnica clara e acessível, para tornar simples um esporte que é extremamente complexo; e emoção verdadeira, comentando com sentimento porque já viveu tudo que está narrando.
O exemplo mais marcante é 2019, durante o Campeonato Mundial de Ginástica Artística em Stuttgart, na Alemanha, Daiane dos Santos se emocionou e chorou ao vivo com a performance da equipe brasileira feminina, especialmente com o desempenho que garantiu a vaga do Brasil para os Jogos Olímpicos de Tóquio. A emoção foi notável ao ver a nova geração de ginastas alcançando resultados importantes, o que a fez reviver suas próprias experiências como atleta olímpica.

A educação como base da transformação
Ao falar sobre sua formação em Educação Física, Daiane demonstra a mesma firmeza que exibe ao narrar sua trajetória como atleta. A faculdade não foi um capricho tardio, mas um objetivo construído ainda na infância. Ela queria ser professora de Educação Física porque admirava a educadora que marcou seus primeiros anos e via na docência um caminho para devolver ao mundo o que havia recebido.
Ser a primeira da família a ingressar no Ensino Superior foi um marco não apenas individual, mas coletivo. A decisão abriu portas para irmãs, sobrinhas e até para o pai, que seguiram seu exemplo. Daiane acredita que a educação é a ferramenta mais eficiente para transformar vidas — e sua própria família se tornou prova disso.
Para além do diploma, ela enxerga a universidade como um espaço de formação humana: lugar onde se aprende a pensar criticamente, a entender o mundo e a atuar nele com responsabilidade.
Projeto Brasileirinho: o esporte como porta que se abre para outras crianças
Entre todos os capítulos da trajetória pós-ginástica, talvez nenhum seja tão significativo quanto o Projeto Brasileirinho. Daiane criou a iniciativa inspirada justamente na experiência que transformou sua própria vida: a oportunidade que recebeu quando era criança e que nem sabia que poderia ter.
O Brasileirinho funciona como projeto social voltado à ginástica artística para crianças de comunidades. Mais do que ensinar movimentos e fundamentos do esporte, o projeto trabalha autoestima, disciplina, convivência e perspectiva de futuro.
Daiane costuma dizer que a ginástica é apenas o instrumento; o objetivo real é abrir portas. “Essas crianças já perderam muito. A gente está aqui para ensinar elas a ganhar”, afirma. O projeto nasceu do desejo de devolver à comunidade o mesmo olhar que a encontrou aos 11 anos. É, ao mesmo tempo, gesto de gratidão e compromisso com o impacto social que ela acredita ter a obrigação de exercer.
O legado que ela escolhe construir
Quando perguntada sobre como gostaria de ser lembrada, Daiane não menciona medalhas, títulos ou saltos que entraram para a história. Ela responde de forma simples: “Quero ser lembrada como alguém que colaborou com algo positivo para o mundo.”
E ao ouvi-la durante toda conversa, com toda a consciência, a serenidade e a firmeza com que revisita sua trajetória essa resposta faz absoluto sentido. Daiane dos Santos não é apenas um marco do esporte brasileiro. É uma mulher que transformou a própria história em ferramenta. Que acredita na educação como pilar, na comunidade como força e no esporte como caminho. Que pisa no mundo com a mesma coragem com que aterrissava no tablado: firme, precisa e sempre pronta para dar um novo salto.
