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Comissão do Plano Diretor de Porto Alegre recebeu mais de R$ 400 mil de empreiteiras

Com vereadores cujas campanhas foram financiadas pelo setor imobiliário liderando as discussões, o planejamento urbano da cidade será decidido nos próximos dias
Pedro Henrique Souza Curi
Laura Santiago

Em Porto Alegre, a revisão do Plano Diretor está nas mãos de uma comissão que, em sua maioria, deve sua campanha ao setor que mais se beneficia das mudanças em debate: o mercado imobiliário. Dos 14 vereadores que compõem a Comissão Especial do Plano Diretor, nove receberam significativas doações de campanha de construtoras, incorporadoras e empresários do setor imobiliário. Estima-se que somente em 2020, o financiamento privado oriundo desse setor tenha ultrapassado os R$ 400 mil. 

A presença de vereadores financiados pelo setor da construção civil na comissão responsável pela revisão do Plano Diretor acende um alerta sobre possível conflito de interesses. As doações feitas por construtoras e incorporadoras são legais e públicas, mas chamam atenção pelo fato de terem sido destinadas justamente a quem agora define regras que impactam diretamente esse mesmo mercado. Para especialistas, essa relação pode comprometer a independência das decisões e reduzir o peso da participação social, já que grupos econômicos com grande capacidade de investimento passam a ter influência direta sobre mudanças que orientam o crescimento e a ocupação de Porto Alegre. 

Apelidada de “Bancada Imobiliária”, essa configuração não é apenas simbólica, mas um retrato das relações de poder que moldam as decisões sobre o futuro da cidade. Para o economista André Coutinho Augustin, presidente do Observatório das Metrópoles, Porto Alegre repete um padrão histórico de influência do setor imobiliário sobre a política urbana. “Nas nossas análises, a cidade sempre aparece acima da média nacional no volume de doações vindas da construção civil”, afirma. Autor de um estudo sobre o financiamento da campanha de Sebastião Melo em 2020, Augustin cruzou dados do TSE e da Receita Federal para identificar empresários com vínculos diretos ou indiretos com construtoras e incorporadoras. Segundo ele, o termo “bancada imobiliária” surgiu justamente para descrever vereadores que, embora não formem uma frente parlamentar oficial, “atuam como representantes do setor dentro da Câmara” explica. 

O economista salientou que o impacto das doações vai além dos números. “Mesmo com valores considerados baixos, o retorno é bilionário. Uma simples mudança no Plano Diretor pode transformar um limite de cinco andares em trinta, multiplicando o lucro das incorporadoras”, explica. Augustin destaca ainda que há uma correlação clara entre as doações e as pautas defendidas. “Os maiores defensores do setor imobiliário na Câmara são justamente os que recebem dinheiro de empresas desse ramo”, conclui. 

O que é o Plano Diretor 

O Plano Direto é o principal conjunto de normas que organiza o crescimento e a ocupação de uma cidade. A cada 10 anos, ele deve (re)definir regras sobre o uso do solo, onde e como se pode construir, além de estabelecer diretrizes para transporte, meio ambiente, habitação e serviços urbanos. Em tese, sua função é garantir que o desenvolvimento de Porto Alegre ocorra de forma equilibrada, sustentável e em benefício da população. 

O projeto do novo plano, apresentado pela prefeitura como Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), tem como principais mudanças a separação da Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS) e a PDDUA, a criação de 16 Zonas de Ordenamento Territorial, a liberação de prédios acima de 90 metros em áreas como Centro, Praia de Belas, 4º Distrito, e a valorização de espaços públicos como a orla do Guaíba. O texto também prevê estratégias de adaptação às mudanças climáticas, redução de deslocamentos, incentivo ao uso misto no território e a criação do Centro de Inteligência Territorial (CIT) para monitoramento urbano.  

Contradições no plano 

“Em Porto Alegre nunca se construiu tanto como está se construindo, e na velocidade que está se construindo. Já temos uma população e o número de unidades habitacionais suficientes, mas segue se construindo mesmo com várias questões pendentes” pontua a Doutora em Planejamento Urbano e Regional e professora de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS, Cibele Figueira.  

Apesar das inconsistências, a especialista acredita que o as propostas do Plano Diretor “têm boas intenções”, mas ainda estão olhando para o município como qualificação urbana e não como uma solução dos problemas reais (desigualdade, falta de moradia acessível, imóveis vazios, mobilidade desigual, especulação imobiliária) que ele apresenta. 

A fala da professora contrasta com a visão de entidades técnicas que estão auxiliando na construção do novo plano – como a ASBEA-RS, representada por sua presidente, Raquel Hagen. Para a arquiteta, a revisão do plano avança na direção certa ao modernizar índices urbanísticos, incentivar o adensamento em áreas com infraestrutura e permitir usos mistos que aproximem moradia, serviços e trabalho. 

Um dos pontos esclarecidos pela presidente da Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura do Rio Grande do Sul diz respeito ao polêmico limite de altura de novas edificações. Raquel explica que essa altura só foi prevista “nos eixos estruturantes, no centro e em alguns pontos do Quarto Distrito”, ou seja, ela enfatiza que atingir 130 metros não será algo recorrente. “Para conseguir atingir essa altura toda, é preciso um terreno muito grande, porque uma das questões do regime urbanístico são afastamentos.” Segundo ela, esses afastamentos variam de 18% a 25% em relação à altura da edificação, o que significa que poucos terrenos poderiam comportar construções dessa magnitude. Ainda assim, ela considera positiva a possibilidade, especialmente em regiões com infraestrutura já consolidada. 

É nesse ponto que a crítica as proposições do novo Plano Diretor se intensificam. Segundo Cibele Figueira, o problema não diz respeito somente a altura dos prédios, mas ao fato de que a cidade segue ampliando seu estoque imobiliário enquanto milhares de imóveis permanecem sem uso. De acordo com um levantamento realizado em 2023, Porto Alegre conta com mais de 100 mil imóveis domiciliares desocupados.  

Uma vez que o ganho médio mensal dos trabalhadores formais é de 3,8 salários-mínimos, a pesquisadora questiona “quanto é que valem os imóveis em Porto Alegre? Boa parte da população não consegue comprar um imóvel dentro da cidade em que trabalha. Isso é bem grave”.  Essa distância entre renda e mercado imobiliário afeta diretamente a mobilidade urbana. “Como é que eu vou pensar mobilidade se a pessoa que trabalha aqui tem que ir para Viamão, tem que ir pra Alvorada? Por que que ela está fazendo esse movimento? Não é porque quer, é porque é obrigada”, reflete. 

Cibele afirma ainda que enfrentar o problema dos imóveis vazios exigiria medidas políticas que atingem interesses consolidados. “São (problemas) difíceis de enfrentar. Até porque vão confrontar interesses econômicos, que viram políticos.” Para ela, o Plano Diretor prioriza demandas do mercado, como o aumento de índices em áreas centrais, sem responder à questão central que levanta: “Para quem que é feita a cidade?”.  

Bancada Imobiliária 

Na comissão composta por 14 vereadores, nove deles fazem parte da bancada dita governista, ou seja, ligada à prefeitura de Sebastião Melo. Destes nove, sete receberam R$ 402 mil em doação por empresários ligados ao setor imobiliário. 

Os parlamentares da base governista que compõem a Comissão Especial são os seguintes: Claudia Araújo (PSD), Idenir Cecchin (MDB), que ocupa a presidência da Comissão, Jessé Sangali (PL), José Freitas (Republicanos), Márcio Bins Ely (PDT), Marcos Felipi (Cidadania), Mauro Pinheiro (PP), Moisés Barboza (PSDB) e Ramiro Rosário (Novo). Destes, apenas Claudia Araújo e José Freitas não receberam doações de empresários do setor da construção. A oposição é representada por Atena Roveda (PSOL), Giovani Culau e Coletivo (PCdoB), Karen Santos (PSOL), Jonas Reis (PT) e Juliana de Souza (PT). 

Dos vereadores que mais receberam financiamento por empresários ligados ao setor imobiliário estão: Marcos Felipi e Ramiro Rosário, com, respectivamente, R$ 163 mil e R$ 132 mil em doações de empresários do setor, o que representou 70,8% e 60,1% de suas campanhas. A lista completa e detalhada – mapeada pelo economista André Augustin – das doações que cada parlamentar recebeu pode ser conferida através deste link

Fonte: André Coutinho Augustin 

Consultado pela Beta Redação, o vereador Ramiro Rosário afirma não existir qualquer conflito de interesse. “Durante a campanha, defendi de forma transparente minhas posições sobre o Plano Diretor e apresentei isso diretamente aos meus eleitores. Minha convicção foi validada nas urnas. Todas as doações foram legais, declaradas e analisadas pela Justiça Eleitoral”, pontua.  

Quando questionado sobre este mesmo conflito de interesse, uma vez que a comissão que aprova o novo Plano Diretor conta com sete parlamentares que receberam verba de figuras ligadas ao setor imobiliário, o vereador Jessé Sangali (PL) foi enfático em sua resposta. Ele classificou como “ridículo” qualquer ataque ou questionamento sobre a doação de R$ 14.720 recebida de pessoas físicas ligadas ao setor da construção civil para sua campanha. “Chega a ser ridículo um ataque ou mesmo colocar em xeque a minha pessoa por uma doação de valor tão irrisório de pessoas físicas que supostamente possuem ações na construção civil. Fui o vereador mais votado, é óbvio que vou ter pequenos percentuais de doação de pessoas físicas de múltiplos segmentos”, afirmou. Jessé também citou o PT – ainda que não questionado sobre – alegando “valores milionários de propina que o PT e outros ‘partidinhos’ receberam ao longo dos anos” completa. 

Sobre a possibilidade de um conflito de interesses em alterações no Plano Diretor que possam beneficiar incorporadoras, o vereador afirmou que o lucro de empresas da cidade, quando resultado de boas alterações, é positivo. “Se boas alterações multiplicam o lucro de segmentos locais, eu acho ótimo, isso significa mais investimento, empregos e renda”, disse. 

Também procurado pela Beta Redação, o vereador Marcos Filipe (Cidadania), que mais recebeu doações ligadas a empresários e figuras do setor imobiliário, não retornou efetivamente às quatro tentativas de contato. Assim como ele, os demais parlamentares, tanto os da bancada governista como os de oposição, não retornam as perguntas feitas pela equipe de reportagem. Todos foram consultados mais de uma vez. Caso algum vereador queira adicionar sua versão ou retornar nosso contato, a equipe segue disposição de contato. 

Datas importantes  

A agenda do Plano Diretor avança para sua fase decisiva, com datas que vão definir os rumos da proposta. Houve alterações no prazo de entrega do relatório final, previsto inicialmente para o dia 1º de dezembro. 

Próximas datas previstas: 

05/12: Entrega do relatório final, reunindo todas as diretrizes debatidas ao longo do processo, que seguira para apreciação dos parlamentares. 

10/12: o documento passa por votação, podendo receber ajustes finais antes da etapa conclusiva. 

15/12: está prevista a votação dos projetos que efetivamente colocarão em prática o novo Plano Diretor, determinando como a cidade deverá se desenvolver nos próximos anos. 

Ainda sem resultado concreto do plano diretor e com dúvidas de quando poderá realmente ser aplicado, a cidade de Porto Alegre acumula mais de 5,3 mil pessoas vivendo nas ruas, ao mesmo tempo em que o valor dos imóveis dispara para patamares acima dos R$ 6 mil por metro quadrado e os aluguéis seguem numa escalada de mais de 26% em apenas um ano. 

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