Porto Alegre tem mais gente em situação de rua e menos ajuda enquanto voluntários tentam cobrir o que o Estado não alcança

Com crescimento de 42,7% na população de rua, capital gaúcha enfrenta déficit de abrigos e aumento da demanda por ajuda humanitária

A realidade das ruas de Porto Alegre mudou, assim como o perfil de quem faz da calçada um lar improvisado. Antes, o estigma mais frequente associava a situação de rua principalmente ao vício em drogas e álcool. Hoje, embora ainda persista no senso comum, essa ideia não reflete a complexidade atual. Muitos estão ali por motivos econômicos ou por falta de rede de apoio — um retrato que se agravou com as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024.

A Secretaria de Assistência Social de Porto Alegre estima que cerca de 5 mil pessoas vivam hoje em situação de rua, segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico). Mesmo altos, esses números não refletem toda a dimensão do problema, já que o último censo municipal específico foi realizado em 2016. A doutora em Saúde Coletiva e professora da UFRGS Maria Gabriela Godoy aponta que o número cresce mês a mês. “Em junho, o CadÚnico já registra 5.799 pessoas em situação de rua, quase 1.200 a mais do que no mesmo período do ano passado, quando eram cerca de 4.592”, observa.

Desde 2016, o CadÚnico tem sido a principal fonte de acompanhamento de pessoas em situação de rua.
LAURA SANTIAGO / BETA REDAÇÃO

A pesquisadora lembra que o aumento está ligado, sim, a desastres climáticos como a enchente de maio, mas também a fatores estruturais. “Além das crises climáticas, temos uma oferta insuficiente de serviços públicos para viabilizar a saída das ruas. E há políticas silenciosas, como remoções forçadas e recolhimento de pertences, que persistem mesmo após a decisão do STF, em 2023, que proibiu essas práticas”, explica.

Outro dado alarmante é o déficit de abrigos. Porto Alegre soma cerca de 820 vagas, considerando albergues, casas de passagem, programas de moradia e estruturas emergenciais de inverno. Isso significa que, a cada 100 pessoas em situação de rua, apenas 16 encontram um local seguro para dormir e se proteger do frio. “Os censos do IBGE não contemplam quem não tem endereço fixo. Saber quem são, onde estão e como vivem é fundamental para planejar políticas públicas mais eficientes”, reforça a professora. Diante dessa demanda, na semana passada, a prefeitura anunciou a contratação da UFRGS para realizar um novo censo específico.

Quando o frio chega

Se o clima extremo afeta até quem tem um teto, o impacto sobre quem vive sem um lar é ainda maior. Na última onda de frio no Rio Grande do Sul, a Pastoral do Povo da Rua registrou quatro mortes de pessoas em situação de rua em apenas 12 dias em Porto Alegre. Diante das mortes, a Defensoria Pública do Estado enviou um ofício à Secretaria Municipal de Assistência Social cobrando informações detalhadas sobre a política de acolhimento e a eficácia da chamada “Operação Inverno”.

A defensora Gizane Mendina alerta ainda para relatos de retirada de cobertores e pertences durante ações de zeladoria urbana feitas por equipes da prefeitura. A defensoria avalia que essas medidas podem agravar ainda mais o risco de morte por frio.

Voluntários cobrem o que falta

Em meio a esse cenário, quem supre parte das necessidades básicas são grupos de voluntários. É o caso da ONG Misturaí. Para Mara Luísa Freitas Nunes, vice-presidente da organização, a enchente de 2024 agravou a situação de quem já vivia em vulnerabilidade. “Muitos perderam tudo. Outros não conseguiram acessar o auxílio do governo por falta de documentos e por tanta burocracia que até perderam a vontade de tentar de novo”, relata.

Segundo Mara, o perfil de quem vive nas ruas também mudou. “Agora a maioria são crianças, jovens, adultos, mulheres, idosas, trans e gays. Antes eram mais homens, agora é de tudo que é jeito”. Ela destaca ainda que muitos não aceitam ir para abrigos porque nem todos permitem animais de estimação ou porque as vagas são limitadas.

A vice-presidente do Misturaí lembra que, durante a enchente, a onda de solidariedade foi intensa, mas que os donativos sumiram poucos meses depois. “Na enchente, as coisas chegavam tanto que a gente conseguiu ajudar mais de 10 comunidades. Mas depois de quatro, cinco meses, foi sumindo”, lamenta. Atualmente, a ONG luta para garantir o básico, como alimentos, roupas de frio, cobertores, meias e toucas. “Um pacote de café não dá para 100 pessoas. E o café tá R$ 35. É muito difícil”, desabafa.

Por meio de editais públicos, a ONG Misturaí atua há sete anos atendendo pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade social.
LAURA SANTIAGO / BETA REDAÇÃO

A situação, segundo especialistas, expõe o quanto o poder público é ausente. “ONGs têm papel complementar, mas não podem ser a única garantia de comida e abrigo”, diz Maria Gabriela Godoy. Para Mara, enquanto isso não muda, cabe a quem pode ajudar. “A gente corre atrás para fazer aquilo que, às vezes, o governo não enxerga, mas nós enxergamos”, afirma. E faz um apelo: que mais empresas e pessoas se tornem parceiras nessa rede de cuidado — que, no inverno, pode ser a diferença entre a vida e a morte para quem dorme ao relento.

Saiba como ajudar

Cozinha Prato Cheio

  • Almoço: segundas, quartas e sextas
  • Endereço: Rua D, Vila Graciliano — Glória, Porto Alegre — Mapa
  • Doações: Pix (informar chave)

Misturaí

  • Janta: segunda a sexta, fim da tarde
  • Endereço: Rua Luiz Manoel, 229 — Santana, Porto Alegre — Mapa
  • Doações: Pix — misturaipoa@gmail.com

Cozinha Solidária da Vila Barracão

  • Janta: segunda a sexta, 18h30
  • Endereço: Rua Doná Helena, 100 — Santa Tereza, Porto Alegre — Mapa
  • Doações: Pix — CNPJ 19.777.983/0001-03 (AMOV)

Cozinheiros do Bem

  • Quartas e quintas: das 14h às 21h
  • Sábados: das 8h às 16h
  • Endereço da sede: Av. Baltazar de Oliveira Garcia, 2132 — Costa e Silva, Porto Alegre — Mapa
  • Ponto final: Rua da Conceição — Centro Histórico, Porto Alegre — Mapa
  • Doações: Pix — olacozinheirosdobem@gmail.com

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