Música tem o poder de marcar épocas, construir memórias e atravessar gerações. Em Porto Alegre há 75 anos, a Orquestra Sinfônica vem fazendo exatamente isso. Fundada em 1950, a Ospa se consolidou como uma das principais instituições culturais do Brasil. Com uma trajetória que acompanhou mudanças políticas, sociais e estéticas em sociedade, a orquestra é hoje parte do imaginário da cidade. Seus concertos já ocuparam espaços diversos, do Theatro São Pedro, passando pelo nostálgico Teatro Leopoldina, Araújo Vianna, Salão de Atos da UFRGS e muitos outros até chegar onde está situada hoje, no Centro Administrativo Fernando Ferrari.
A Ospa é a segunda orquestra mais antiga em atividade ininterrupta no Brasil, atrás apenas da Orquestra Sinfônica de Recife. Atualmente com mais de 100 músicos e uma programação que alterna obras consagradas e repertórios contemporâneos, a orquestra mantém também a Escola de Música da Ospa, braço educativo que forma jovens instrumentistas. O tamanho dessa estrutura não diminui o aspecto humano de quem a compõe. Entre os rostos da formação atual, três deles chamam atenção. Um contrabaixista veterano, um celista e uma clarinetista.
Das serenatas ao palco da Ospa
Contrabaixista da orquestra há 35 anos, a relação de Walter Schink com a música, em especial a erudita, é ainda mais longeva. Criado em uma casa regada a expressões artísticas, não demorou muito para que seu interesse em fazer parte dessa troca aflorasse. “Antigamente se faziam serenatas, uma coisa que hoje nem se imagina. Os grupos iam tocar na casa dos meus pais. Eu desde criança, ainda engatinhando, ficava à frente da figura do contrabaixista”, recorda.
Com o passar dos anos, Walter já tinha um contrabaixo para chamar de seu e foi aos poucos ganhando mais intimidade com o instrumento. Como jovem instrumentista, ao ser convidado por um olheiro para participar da Orquestra da Paraíba, em João Pessoa, Walter viu uma oportunidade para concluir seus estudos enquanto tinha a garantia de um emprego fixo. Da Paraíba, seu próximo destino era ainda mais longe do Rio Grande do Sul: a Alemanha.

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Em Würzburg, Walter passou aproximadamente 10 anos estudando música no segundo maior conservatório do estado da Baviera, atrás apenas do de Munique. Ao ser perguntado sobre o porquê de ter deixado a Alemanha, uma vez que é um dos países que mais valorizam música erudita, Walter explica que precisaria prestar concursos para orquestras e a concorrência é infinitamente maior quando comparada ao Brasil. Isso porque em países europeus, sobretudo, existe um número maior de músicos profissionais. “A Alemanha não precisa de músicos. Eles não sabem o que fazer com tantos. O meu sonho era ir lá, estudar, voltar com esse conhecimento ao Brasil e permanecer aqui”, pontua.
Pai, filho e a construção do fazer cultural
Além do sobrenome, Walter também divide o palco com o violoncelista Pablo Gross Schink, seu filho. É fácil pressupor que a relação de Pablo com a música tenha se iniciado cedo. Depois de se apegar à arte do violoncelo e decidir seguir carreira, ele entendeu que precisava buscar a melhor capacitação possível. Já decidido de que queria estudar fora, passou 10 anos na Universidade do Sul do Mississipi e depois partiu para a França, onde morou por nove anos.
Com tantos tempo fora de casa, a ideia de voltar ao Brasil já ressoava em sua mente, mas não queria apenas “voltar por voltar”, queria ter algo concreto. Com apoio e conselhos do pai, ao saber que tinham sido abertas inscrições para um novo concurso da Ospa em 2021, Pablo entendeu que esse era o “bom” motivo para retornar de vez. “Queria ter algum objetivo maior. Esse concurso era o que estava faltando. Passei e resolvi voltar então para Porto Alegre”, relata.

Sobre a relação de pai e filho que dividem a mesma profissão, ambos enxergam com muito orgulho. Por um lado o pai que fica feliz ao ver que os seus ensinamentos levaram o filho a traçar um caminho parecido, e por outro o filho que enxerga o pai como referência naquilo que almeja ser. “Parece que a gente está passando o bastão. Quando tu passa, vê o teu filho, ali trabalhando junto contigo, tu diz: ‘Poxa, é um legado que ficou, né?’ Quer dizer que alguma coisa eu fiz de legal porque ele está seguindo a carreira e está feliz”, comenta Walter.
“É uma grande satisfação para mim estar tocando ao lado do meu pai, pessoa que eu admiro. E ao lado também da minha namorada, que conheci através da Ospa. Então, todas as vezes que a gente tem a oportunidade de tocar junto, é maravilhoso”, acrescenta Pablo.
A voz do clarinete dentro da orquestra
Foi dentro da Ospa que Pablo conheceu a colega e hoje companheira, a clarinetista Ariane Rovesse. Mineira em terras gaúchas, a sua história carrega semelhanças com a de Pablo e Walter, mas, diferentemente deles, ela é a única musicista profissional em sua família. Ela explica que em Minas Gerais existia uma tradição muito forte de bandas musicais, como a de coreto, por exemplo.
Depois de integrar o Palácio das Belas Artes em Belo Horizonte, aos 18 anos rumou a São Paulo para concluir sua graduação na USP. Lá, além dos estudos, Ariane conciliava seu tempo com Orquestra Jovem do Estado de São Paulo. Com o canudo em mãos, deu continuidade aos estudos na Alemanha e Suíça, respectivamente. “Meu primeiro mestrado foi sobre o meu instrumento em orquestra. O segundo foi uma especialização pedagógica. Então, continuei me especializando no instrumento com o mesmo professor que deu aulas na Alemanha, mas também com todo o conteúdo da pedagogia musical que me permite ser professora licenciada hoje”, explica.

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Depois de um longo período fora do Brasil, ela viu o edital do concurso da Ospa como uma oportunidade. “Eu já trabalhava na Suíça, já tinha emprego de carteira assinada e tudo, então não foi falta de emprego que me fez voltar. Foi realmente a vontade de estar no Brasil de novo e poder contribuir mais para a música aqui”, complementa. A musicista diz que os países europeus têm seus problemas, como em qualquer lugar no mundo, mas a cultura da música ainda assim era mais internalizada. “Lá eu me sentia só um pedaço de um sistema que já funciona e aqui precisa de mais estímulo. Do mesmo jeito que eu tive pessoas que me inspiraram, que me influenciaram muito, que me direcionaram de forma essencial, sinto que aqui consigo ser mais importante para o futuro do que lá na Europa”, esclarece.
Hoje, além de da rotina de ensaios e apresentações, ela ainda é professora de clarinete na Casa da Música de Porto Alegre e professora de percepção na Escola de Música da Ospa. É comum que os musicistas ocupem suas agendas para além do tempo na orquestra, seja em projetos pessoais ou até mesmo com ensaios e apresentações em outras orquestras. Pablo, por exemplo, é também produtor musical e dono de um estúdio de gravação no qual trabalha com diferentes gêneros além da música clássica. “A minha vida profissional é um reflexo do meu interesse, da minha curiosidade e vivência musical com outros estilos e músicos do mundo”, explica o celista. Um exemplo disso foi quando tocou com Bruce Dickinson, da banda Iron Maiden.
Nem só de música clássica vive a orquestra
Essa viagem através de diferentes gêneros está presente nas próprias apresentações da OSPA, que tem buscado cada vez mais abraçar diferentes musicalidades, o que acaba atraindo um novo público. Em julho, a orquestra será palco do Rock In Concert, em duas apresentações. O repertório irá passear por clássicos do rock como Queen, Engenheiros do Hawaii, Barão Vermelho, entre outros. Em entrevista ao podcast Perimetral, da GZH, o diretor artístico Manfredo Schmiedt falou sobre essa variedade: “A orquestra precisa apresentar obras de compositores eruditos tradicionais, Beethoven, Haydn, Tchaikovsky, Brahms, enfim. Mas, também precisa oportunizar esse crossover entre a música popular e a música sinfônica”.

O imaginário que as pessoas têm de uma orquestra é que ela é rígida, toca somente músicas clássicas e que interessa somente as gerações mais velhas. Mas o público da Ospa tem mostrado que isso não é bem assim. A questão da localização atual da casa da Ospa tem facilitado muito. Segundo Manfredo, o fato de ter um estacionamento gratuito, acessibilidade aos concertos e programas que são diversificados é o que ajuda a trazer o público mais jovem para a plateia, amparado, é claro pelas divulgações em diferentes canais.
Ariane explica que, ao final do ano, os músicos da orquestra recebem um formulário para sugerir itens da próxima temporada. Eles podem indicar regentes convidados, repertório, solistas, ou até se candidatar como solistas, como foi o seu caso em um concerto recente que celebrou os 120 anos de Erico Verissimo. “Por exemplo, esse concerto em que eu solei pela primeira vez no ano passado, em Belém do Pará. Pensei que seria uma excelente oportunidade de repetir ele aqui (em Porto Alegre) e propus dentro desse formulário. A partir disso, o diretor artístico recebe todas as sugestões da orquestra e escolhe aquelas que ele entende que cabem melhor na temporada” explica.
Quando o fazer artístico depende da resistência
Além de trilharem caminhos semelhantes, os musicistas ainda compartilham do sentimento de que ainda existe um pensamento comum de que cultura é algo “extra”, de que não é essencial, ou até mesmo que músico não é de fato uma profissão. “Por que que manter uma orquestra sinfônica? É uma pergunta frequente. As pessoas esquecem que uma orquestra sinfônica é um museu vivo. Que o que nós fizemos – passar por todo o repertório de centenas de anos de grandes compositores e transformar isso na hora do concerto – é dar vida a partituras, objetos históricos”, explica Walter.
Um exemplo recente desse desapreço pela cultura foi o corte de verba pública para a Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo, uma instituição quase tão antiga quanto a OSPA, com 72 anos. Com um corte de R$ 1,2 milhão, o grupo, que é patrimônio histórico, artístico e cultural tombado da cidade, deverá encerrar suas atividades. A determinação resultará no desligamento de 34 músicos profissionais e na paralisação de três projetos de educação musical voltados a crianças.