Antiga residência de verão do governo gaúcho levanta debate sobre memória e preservação

Desativado como espaço de hospedagem oficial, antigo Palácio das Hortênsias não é tombado e tem acesso restrito à população
Reprodução Antônio Olmiro dos Reis

O que antes era um imponente casarão de madeira construído nos anos 1950, conhecido como Palácio das Hortênsias, hoje dá lugar ao Solar das Hortênsias – atual residência oficial de verão do governador do Rio Grande do Sul, localizada em Canela. A substituição da sede de veraneio ocorreu em 1981, quando a família Sopher, de Porto Alegre, doou seu próprio solar, que foi desmontado e remontado cuidadosamente, peça por peça, como um imenso quebra-cabeças, na Serra Gaúcha. Desde então, o novo prédio passou a abrigar os governadores durante suas visitas à região serrana.

A velha casa de madeira, no entanto, segue de pé. Ainda no mesmo terreno, a construção original não foi removida, mas passou a desempenhar apenas uma função secundária, servindo como apoio técnico e logístico para as equipes do governo. Apesar de sua importância como marco histórico da presença oficial do estado na região, ela segue sendo ignorada nos registros públicos e excluída das discussões sobre patrimônio por parte do Estado.

Segundo Éder Kurz, Diretor-Adjunto de Jornalismo do Governo do Estado, a responsabilidade pela manutenção do espaço é da Secretaria Executiva de Gestão do Complexo Palácio Piratini. “Há um servidor que zela pelo espaço e terceirizados que fazem a conservação e limpeza”, explica. Quanto ao tombamento, ele afirma, “o interesse geralmente surge pelos institutos de patrimônio, que veem algum potencial em preservar os espaços”.

Um bem pode ser tombado em nível municipal, estadual e federal, dependendo da sua importância e do interesse público. Desde 2013, Canela, pela lei n° 3.712/2013, instituiu o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Cultural, Natural e Paisagístico (CMPHCNP), que é responsável por assessorar o município na formulação de políticas de preservação, análise e aprovação de processos de tombamento para que seja encaminhado ao Poder Executivo Municipal. Em 2019, segundo declaração no site da prefeitura de Canela, foi recebido o relatório da primeira fase do Inventário do Patrimônio Cultural, Histórico e Paisagístico do Município, que inclui a Catedral de Pedra, a Casa Auxiliadora, as Ruínas do Cassino, Cascata do Caracol e o Palácio e o Solar das Hortênsias. Há, portanto, uma intenção manifesta por parte do município em avançar com o processo de tombamento, mas ainda falta iniciativa e reconhecimento formal por parte do Estado.

Nenhum processo de tombamento foi iniciado pelo Estado até hoje. Tampouco há documentação oficial sobre a história do imóvel nos arquivos da Secretaria Executiva. “Não há registros oficiais sobre o histórico do espaço”, afirma Éder Kurz. Nem mesmo a localização original do solar doado pela família Sopher, em Porto Alegre, é conhecida pela atual gestão. “Não possuímos essa informação”, completa.

Acesso restrito e obstáculos para chegar ao local

Ponte de acesso até o Palácio das Hortênsias por dentro do Parque do Palácio
Antiga ponte de acesso ao Palácio das Hortênsias no interior do Parque do Palácio / Foto: Annelize Mattos

A dificuldade de acesso ao espaço reforça o isolamento do palácio. A ponte que leva ao terreno, pela estrada interna do parque do palácio, está em estado precário, existindo apenas um único acesso pela rua lateral. Além disso, o espaço é fechado ao público. Não há possibilidade de enxergar o casarão com detalhes sem auxílio de equipamento técnico próprio para isso. A reportagem tentou visitar o local, mas foi impedida de entrar. Sobre isso, Éder Kurz foi categórico: “Não tem acesso público, por ser uma área restrita ao governante do Estado”.

Além do isolamento físico, o palácio sofre de invisibilidade pública. Não há qualquer sinalização, placas informativas, museu, nem qualquer material acessível que registre sua história ou explique sua função atual. Embora mantido com verba pública, o imóvel opera como uma propriedade privada.

A psicóloga Laura Marques da Rosa, 27 anos, moradora de Canela, nunca aprendeu sobre o palácio das hortênsias na escola. “Ouvi falar apenas pelos meus pais. Acho que a maioria dos gaúchos nem sabe que existe. E, mesmo entre os canelenses, poucos sabem sobre o espaço além do fato de que é a casa do governador”, conta. Para ela, manter o espaço com recursos públicos sem acesso é “inútil para o povo”. 

O técnico de informática Willyan Foss, 32 anos, de Gramado, compartilha da indignação. “É frustrante. O local poderia ser aproveitado pela população. Parece que a intenção de quem comanda é que seja esquecido”, afirma. O produtor cultural Fernando Costa Gomes, 42, que vive há 16 anos em Canela, concorda: “A única vez em que estive presente foi em uma edição do Canela Foto Workshops, quando a esposa do então governador Tarso Genro, Sandra, abriu o espaço para uma exposição. Acho essencial ser providenciada essa abertura para eventos e projetos culturais. Proponho um edital de ocupação, com dois ou três eventos por ano”.

Para Fernando, a ausência de placas, sinalizações ou informações públicas é sintomática. “Penso que o poder público municipal e estadual estão falhando por não cuidarem do patrimônio público, ainda mais em uma cidade que vive do turismo”, defende.

E ainda critica a falta de transparência. “O fato de não haver acesso ao palácio afasta a população da história e das ações do governo estadual. E é proposital. Quanto menos o cidadão tem acesso e se envolve com história, patrimônio e informação pública, melhor para o político manter seu emprego com menos cobrança”, afirma o produtor cultural.

Entrada atual para o Solar e Palácio das Hortênsias / Foto: Annelize Mattos

O governador Eduardo Leite tem frequentado o solar com certa regularidade. Segundo o Portal da Transparência, em 2024 foram pelo menos seis visitas oficiais. Na última delas, em maio deste ano, o chefe de Estado esteve hospedado para a cerimônia de reabertura do Parque do Caracol. Ainda assim, o palácio permanece fora do radar oficial. “Ela é usada como apoio para as equipes que acompanham o governador, enquanto a hospedagem dele ocorre, de fato, no solar doado pelos Sopher”, afirma o diretor-adjunto.

A substituição da casa original por outra estrutura, ainda que mais imponente, acabou apagando parte da identidade do espaço. A função simbólica que o palácio ocupava, inclusive com rituais, como a entrega das chaves ao governador pelo prefeito da cidade que ocorria em seus primeiros anos, perdeu força com o tempo.

Um museu para a memória coletiva

Palácio das Hortênsias visto do interior do Parque do Palácio / Foto: Annelize Mattos

O palácio segue restrito ao uso do governo estadual, sem previsão de abertura ou destinação cultural. A presença da antiga casa de madeira no terreno ainda preservada como estrutura de apoio levanta a possibilidade de que, futuramente, o espaço possa ser integrado a iniciativas de preservação da memória ou aproveitamento para fins culturais e educativos.

Para o pesquisador e memorialista canelense, um dos autores de Canela por muitas razões, livro que conta a história do município e possui um capítulo destinado à história da construção do palácio das hortênsias, Marcelo Wasem Veeck, a possível abertura do espaço ao público seria uma medida não apenas simbólica, mas estratégica para o fortalecimento cultural da cidade. “A abertura para visitação do palácio das hortênsias incrementaria positiva e singularmente o produto turístico canelense, podendo, inclusive ser um local de divulgação permanente das ações do governo estadual”, afirma.

Veeck também reforça a importância de preservação de ambas as edificações – o palácio original e o solar dos Sopher – pelas suas dimensões arquitetônicas, paisagísticas e políticas: “É de suma relevância a preservação dos imóveis que compõem o palácio das hortênsias. Ambos merecem integrar o Patrimônio Histórico do Estado do Rio Grande do Sul”.

Fernando Gomes compartilha da mesma visão. “O palácio das hortênsias deveria ser reconhecido como patrimônio histórico oficial do Estado, dada a história da casa, do local onde se situa e sua importância com o bioma natural”, afirma. E defende a preservação: “Canela aos poucos perde parte de sua identidade por não valorizar sua memória política e arquitetônica. É preciso a criação de políticas públicas para preservar o patrimônio histórico e cultural da cidade”.

Além disso, para Veeck, transformar o palácio em um espaço cultural poderia acolher uma ampla gama de atividades, desde mostras de arte e literatura até feiras gastronômicas e eventos musicais, sempre com o foco na preservação da memória política do Estado. “Os prédios públicos históricos, por sua natureza sociopolítica, devem ser abertos e integrados às atividades socioculturais e educativas, contribuindo na formação individual e coletiva”, defende.

Veeck também destaca que qualquer decisão sobre o uso do futuro do palácio deve passar pela escuta da população. “Toda consulta é válida, faz parte do processo democrático e enaltece o uso coletivo do bem público”, destaca.

Preservação e turismo

A população local também imagina o que poderia acontecer no lugar do silêncio. Laura propõe que o local se torne um polo cultural e comunitário. “Podia ter a história do lugar descrita em algum lugar das próprias instalações, abrigar exposições, oficinas de arte e memória, com participação de artistas locais. Precisamos de espaços para viver em comunidade”, destaca.

Willyan reforça a ideia de um museu de história local e regional, com trilhas, bancos para contemplação e feiras de arte e gastronomia: “Seria um grande ponto turístico e manteria viva a história do local”.

Laura vai além, ao relacionar o tema à crise do turismo na serra. “Hoje Canela e Gramado enfrentam críticas por elitismo e excesso de exploração comercial. Um espaço cultural acessível poderia atrair antigos turistas que se afastaram. Nem todo mundo se interessa por hotéis de luxo e atrações natalinas. Há quem venha pela História”, finaliza.

Em tempos de reconstrução no Rio Grande do Sul, após as enchentes de 2024 que devastaram cidades e escancararam desigualdades, abrir os portões do palácio das hortênsias pode ser mais do que simbólico. Pode ser um gesto concreto de reconexão entre poder público e a população. A história que hoje se esconde entre árvores e muros pode se tornar uma ferramenta de memória e cultura. Por enquanto, a história segue trancada.

*Imagem da capa: Reprodução/Acervo/Antônio Olmiro dos Reis

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