“Luz na passarela, que lá vem ela.” O famoso verso do grupo É o Tchan pode até remeter à loira da banda, mas também se encaixa, com surpreendente precisão, na trajetória de Lauro Ramalho – ainda que ele próprio se defina como uma pessoa tímida. Ao longo deste texto, você vai entender por que essa música me faz lembrar dele.
Quando alguém pergunta quem é referência no teatro gaúcho, Lauro é uma das primeiras respostas. Desinibido, apaixonado pelos palcos e dono de uma presença magnética, ele nunca cogitou outro caminho que não fosse o das artes cênicas. Lauro cursou o ensino médio na Escola de Aplicação da UFRGS, um espaço que, na época, valorizava intensamente a cultura. Foi lá que conheceu nomes marcantes, como a professora Olga Reverbel — teórica, autora e referência nacional na relação entre teatro e educação. Nesse ambiente fértil, ele cultivou desde cedo seu amor pela cena.
Assim que terminou o colégio, realizou com os colegas seu primeiro espetáculo. “Eu lembro que foi no Teatro do IPE. Havia toda uma divulgação, um público de verdade — não só minha escola ou minha família. Era um texto alemão do Grips Theater de Berlim, que trabalhava o teatro de forma lúdica, dando ferramentas para as crianças pensarem. Quando a cortina abriu e eu vi aquele público, pensei: ‘Eu tenho duas alternativas: posso sair correndo ou me entregar’. E eu escolhi me entregar. Dali, nunca mais saí”, relembra.
E assim foi. Em 2006, Lauro passou a integrar a Companhia Stravaganza, onde mergulhou ainda mais fundo no ofício. “Ali eu aprendi muito a ser ator de verdade, a ter responsabilidade, disciplina”, conta. Foi na companhia que ele teve certeza de estar no caminho certo. “Em 2008, a gente montou A Comédia dos Erros e ficamos 12 anos apresentando esse espetáculo. Circulamos pelo Brasil, pelo interior do Estado… Foi um presente. É um espetáculo lindo, que ainda temos vontade de remontar”, rememora.

Todos os espetáculos de Lauro são coletivos. Solo, ele tem apenas uma personagem — mas que, sozinha, vale por todas: Laurita Leão. Laurita nasceu de um convite do amigo e ator João Carlos Castanha, que nos anos 80 frequentava boates de shows transformistas. Ele sugeriu que Lauro experimentasse aquele universo. A princípio, Lauro resistiu: “Parte de nós ainda carrega algum preconceito, alguma forma de discriminação. Mas eu fui experimentar. Porque acho que o ator precisa se permitir viver qualquer coisa. E eu fui… E me identifiquei muito com aquele espaço, aquelas pessoas, aquele mundo de fantasia”.
Depois de subir ao palco como Laurita, Lauro nunca mais parou. Foram 15 edições consecutivas da Parada Livre de Porto Alegre apresentadas por ela, consolidando-se como um ícone da cena cultural LGBTQIAP+ da capital, e é por isso que afirmei lá no início, a música do É o Tchan faz todo sentido quando penso nele. Porque além de Lauro Ramalho, ele também é Laurita Leão — que é mais do que uma personagem, é um símbolo de resistência e liberdade. É o papel que ele interpreta há mais tempo, e que mais o transformou. “Ela me trouxe muita coisa boa, principalmente o improviso e o humor, que no teatro tradicional eu não explorava tanto”, explica.
Acostumado a roteiros rígidos, Lauro encontrou em Laurita uma presença cênica mais espontânea, ousada e viva. “Ela me ensinou que o ator não pode olhar só pra frente, fixamente. A Laurita olha nos olhos das pessoas, cria conexão direta com o público”, reflete Lauro. Laurita, segundo ele, tem a liberdade de dizer o que pensa, liberdade que, como Lauro, ele às vezes hesita em exercer: “Ela é exagerada, fala o que quer, enquanto eu sou mais tímido. Mas a gente se entende bem, e seguimos juntos até hoje”.
A personagem por si só já diz tudo, mas o contexto em que nasceu faz com que Laurita Leão, e Lauro Ramalho, representem algo ainda maior. Se até hoje drag queens enfrentam preconceito, imagine na década de 80, quando Laurita surgiu. Lauro é um artista de 61 anos que rompe paradigmas até hoje. É idoso, gay e transformista — termo ao qual tem verdadeiro apego e nunca trocou por “drag queen”. Além da luta de ser artista em um país que ainda não valoriza a cultura, enfrenta outras batalhas, ser gay numa sociedade muitas vezes homofóbica e, agora, também a luta contra o etarismo. Apesar de lidar bem com isso, é algo que o acompanha. “Prefiro não pensar muito, mas percebo os comentários, dizem, em tom de piada, que meu tempo já passou. Na noite há competição, mas no teatro há acolhimento — é onde sigo mostrando meu trabalho com verdade”, reflete.
A admiração por Lauro se espalha por todos que cruzam seu caminho, dentro e fora do palco. “Conheço o Lauro Ramalho há muitos anos. Somos grandes amigos e já trabalhamos juntos em diversas situações — ele como ator, na Companhia Stravaganza e em outros espetáculos que divulguei ao longo da minha carreira, além de nos encontrarmos com frequência pelas redações, quando ele atua como assessor de imprensa. Gosto demais do Lauro, tanto como pessoa quanto como profissional, ele é um ator extraordinário. A Laurita Leão então, é uma criação inacreditável, maravilhosa, assim como tudo que ele faz no palco. Tenho enorme carinho por ele”, resume Bebê Baumgarten, jornalista e amiga próxima de Lauro.
Para quem está na cena transformista de hoje, Laurita é sinônimo de legado e inspiração. “A Laurita, na verdade, eu conheci quando comecei a vir pra Porto Alegre. Eu tinha 18 anos, trabalhava com arte, Carnaval, e comecei a frequentar a noite. Além de drag, é ator — então tem esse diferencial, entende muito bem o palco. Eu acredito que a importância dela seja abrir caminhos na noite, na arte como um todo, para as drags mais novas. Ela fincou essa bandeira de que a arte drag é pra todos, não é mais periférica, mas sim uma arte admirada e contemplada pela sociedade”, destaca Uriel de Araújo Ventura, produtor de moda e artista que assina como Mona Vipère.
Quem já dividiu camarim com Laurita guarda memórias especiais. “A experiência que eu tive com a Laurita foi em 2019, junto com a Lady Sibelius e a Glória Cristal — três monstros da arte drag gaúcha. Eu ajudei a arrumar elas. A Laurita foi uma pessoa doce, muito tranquila, equilibradíssima. Simpaticíssima, fora de série! E uma coisa que eu não posso deixar de dizer: ela é muito engraçada, demais!”, recorda Ester Diamonds (William Campello), cabeleireiro e performer.
Agora, Lauro se prepara para um novo desafio: seu primeiro espetáculo solo.“Estou preparando. Tenho várias ideias. Tenho muita vontade de falar sobre a questão LGBTQIAP+ na terceira idade. Quero muito montar um espetáculo a partir de depoimentos de pessoas da comunidade gay que estão nessa faixa etária. A ideia é entrevistá-las, ouvir suas histórias e transformar isso numa dramaturgia. É sobre dar voz, criar a partir da vivência real”, revela.