Por que o Brasil ainda não ampliou a lei que legaliza do aborto?

Ativistas analisam principais entraves e o impacto que o aborto clandestino causa na saúde pública

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Talvez você já tenha passado por um aborto – ou conheça alguém que já passou. Coordenada por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), Universidade de Columbia e da Universidade Estadual do Piauí, a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 ouviu, aproximadamente, duas mil mulheres, residentes em áreas urbanas, com idade entre 18 e 39 anos. O resultado não deixa dúvidas sobre a dimensão do tema em se tratando de saúde pública: de acordo com o estudo, uma em cada sete mulheres já havia passado por pelo menos um aborto – o equivalente a 10% das entrevistadas. Em 2016, o percentual identificado pela pesquisa foi de 13% e, em 2010, de 15%. Apesar do declínio, o aborto segue sendo um problema crônico, já que muitas intervenções não são realizadas em hospitais ou clínicas especializadas, e sim em clínicas clandestinas.

A legislação brasileira permite a realização de aborto em apenas três situações: gravidez resultante de estupro (incluindo estupro de vulnerável); casos de risco de vida para a mulher; e anencefalia fetal (ausência total ou parcial do cérebro e da calota craniana do feto). É considerada uma das mais restritivas da América Latina, ficando atrás de Paraguai, Venezuela e Suriname, este último onde é totalmente proibido o acesso legal ao procedimento.

Dados publicados pela Folha de São Paulo em 2018 mostram que, entre 2008 e 2017, o Sistema Único de Saúde gastou R$ 486 milhões com internações para tratar complicações relacionadas a abortos. Além disso, 2,1 milhões de mulheres foram internadas. De 2000 a 2016, 4.455 mulheres morreram após complicações.

Acesso restrito

Segundo Claudia Prates, integrante do Fórum Aborto Legal no Rio Grande do Sul, as barreiras de acesso ainda são enormes, mesmo nos casos previstos em lei. “Há relatos de recusa de atendimento por parte de profissionais de saúde por objeção de consciência, exigências de autorização judicial ou boletim de ocorrência não previstos em lei”, destaca. Isso também é relatado pela deputada federal Fernanda Melchionna, que atua como defensora dos direitos humanos na Câmara dos Deputados, em Brasília: “O Ministério da Saúde possui uma norma técnica detalhada de Atenção Humanizada ao Abortamento, que deve ser praticada pelos profissionais da saúde. No entanto, sabemos que a realidade é outra. O direito ao aborto é, muitas vezes, negado por profissionais que ‘não concordam’ com o procedimento. Muitas mulheres também se sentem constrangidas e com medo de procurar ajuda.”

Ou seja, mesmo com uma legislação vigente, ainda há grandes entraves que distanciam a população e a lei. Pode-se citar a comunicação (como a ausência de campanhas para reforçar o conhecimento sobre os direitos assegurados por lei) ou até mesmo a conscientização de profissionais da atenção primária à saúde. É possível delinear um padrão de comportamento: quem tem acesso à informação busca locais preparados para a realização do aborto e, quem não tem, acaba optando por práticas clandestinas.

O valor gasto pelo SUS para tratar pessoas internadas por complicações em abortos poderia ser reduzido caso houvesse maior acolhimento por parte dos profissionais de saúde – o que poderia diminuir a procura pela clandestinidade ou por práticas caseiras como o uso de agulhas de tricô para retirar o feto do ventre.

A Organização Mundial da Saúde recomenda que o aborto seja seguro, acessível, respeitoso para todas as mulheres e, segundo Cláudia Prates, incentiva que o Brasil revise a legislação. “A criminalização do aborto tem um impacto muito negativo no cuidado das mulheres em situação de abortamento. Mesmo aquelas que têm um aborto espontâneo são, muitas vezes, julgadas ou tratadas com desconfiança”, destaca.

O julgamento muitas vezes começa em casa. Claudia lembra de um caso em que foi realizado acolhimento no âmbito do Fórum do Aborto Legal de uma jovem cuja família acreditava em relação consentida, mas a própria jovem disse que não houve consentimento e tinha sido forçada. Com auxílio e informações adequadas, foi encaminhada ao serviço de aborto legal da sua cidade e realizou o procedimento em segurança e com sigilo garantido, como a legislação brasileira prevê.

Cláudia Prates durante visita técnica no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) – Thay Nascimento/ESPECIAL BETA REDAÇÃO

O que pode ser feito

Falar sobre abortamento ainda é tabu. A política brasileira não trata o assunto como tema de saúde pública e insiste em abordá-lo como uma “pauta de costumes” relacionada a questões éticas e morais. Para deputada federal Fernanda Melchionna, a resistência do parlamento ainda é presente nas discussões: “Precisamos lutar para que os fundamentalistas não retirem diretos das mulheres, como tentaram com o PL do Estuprador, que criminalizava o aborto nos casos em que ele já é legal e impediria que crianças que engravidaram vítimas de estupro pudessem abortar, por exemplo. E isso enquanto poderíamos estar lutando para que a legislação avance”.

Para além da ampliação da lei, é preciso fazer com que a população saiba seus direitos, sobretudo no que diz respeito ao próprio corpo, como é o caso do abortamento. Enquanto isso, brasileiras de todas as idades, inclusive vulneráveis, sofrem em silêncio pelo medo de comunicar que optaram por interromper a gestação e fazer o uso do direito garantido por lei.

Este trabalho é realizado desde 2016 pelo Fórum do Aborto Legal com o objetivo de assegurar o aborto legal no Rio Grande do Sul principalmente nos casos de violência sexual. “Não há um foco total em ‘apoiar ou acompanhar’ os serviços de aborto legal, mas em ser meio de fortalecimento destes serviços e agir no monitoramento de sua atuação por meio do acompanhamento de casos emblemáticos, escuta da rede e dos próprios profissionais que integram estes serviços”, explica Cláudia. O trabalho tem sido replicado em outros estados.

Reunião e visita técnica do Fórum Aborto Legal no Hospital Materno-infantil Presidente Vargas – Arquivo Pessoal/Cláudia Prates

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