Entre 2014 e 2023, foram registrados 830 de casos de racismo dentro de estádios de futebol envolvendo brasileiros. O número foi obtido atrás de um monitoramento realizado pelo Observatório de Discriminação Racial no Futebol. Desse total de casos, 89 aconteceram em estádios no Rio Grande do Sul.
Para elucidar as questões que envolvem o racismo dentro das quatro linhas, das arquibancadas e como o estado gaúcho se mobiliza quanto a isso, a Beta Redação entrevistou Nina Fola. Com uma longa trajetória em movimentos sociais, Nina é socióloga pela UFRGS, instituição na qual cursou seu mestrado e está concluindo o doutorado.
Atualmente, aos 53 anos, é coordenadora do “Protocolo Zero – Fim de jogo para o racismo”, projeto lançado pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF), juntamente com a Odabá – Associação de Afroempreendedorismo -, para combater casos de racismo em todas as competições organizadas pela FGF, tanto nas categorias de base quanto no profissional.
De onde surgiu a ideia do Protocolo Zero? Qual a metodologia adotada pelo projeto?
Após frequentes casos de racismo em estádios no Rio Grande do Sul, a federação resolveu tomar uma atitude. Em 2022, por meio de uma indicação, contataram a Odabá, associação da qual faço parte, para que desenvolvêssemos um projeto antirracista a ser aplicado no futebol gaúcho. O primeiro passo foi organizar um letramento racial, que nada mais é do que uma aula introdutória para explicar o que é o racismo, como ele se estrutura, se desenvolve, porque existe e porque persiste na sociedade. Começamos esse letramento com os funcionários da FGF, depois o estendemos a árbitros e atletas das categorias de base de diversos clubes. Hoje, nossa atuação vai além: oferecemos apoio psicológico e judicial às vítimas de racismo. Durante os três anos de existência, o Protocolo Zero já trabalhou com centenas de pessoas.
Qual o balanço que faz sobre a atuação do projeto nesses anos? Ele é positivo?
Com certeza. Desde a implantação do protocolo nos Gauchões das Séries A e A2, a partir de 2024, prestamos apoio a dez vítimas de racismo em estádios, acolhendo-as na sede da FGF e encaminhando-as para aconselhamento psicológico. Inclusive, em um desses dez casos, o criminoso ainda está cumprindo pena — algo que, muitas vezes, não é a realidade no nosso país.
Existe alguma outra federação do Brasil que tenha desenvolvido um projeto semelhante?
Na época do lançamento, em 2022, a FGF foi a primeira federação a implementar um protocolo antirracista. Inclusive, a própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) reconheceu e destacou a importância de iniciativas como essa.

Os estádios ainda são ambientes em que se veem muitos casos de racismo. Você acha que ali as pessoas se sentem confortáveis para isso? Por quê?
Sim. Inclusive, isso é muito discutido junto à federação. Quando a pessoa está no jogo, ela acredita que aquele é um espaço de catarse, de extravasar a raiva. O ambiente é permissivo — tudo parece passar despercebido. Além do racismo, o estádio ainda é um espaço muito hostil para as mulheres.
Como mudar essa realidade?
Aplicando penas mais severas, que atinjam o clube diretamente.
Há uma conversa direta do Protocolo Zero com a FGF sobre punições mais severas? Podemos ver mudanças nas próximas competições?
Sim, é exatamente nesse ponto que a federação quer “pegar pesado” em 2025. Participei de uma reunião sobre esse tema na semana passada com dirigentes de clubes da Divisão de Acesso do Gauchão. Quando se fala em perda de mando de campo e jogos com portões fechados, estamos falando de perda financeira. É tocar na ferida. Discutimos isso com equipes da Série A2; imagina quando falarmos com a dupla Gre-Nal. Haverá mudanças já no campeonato da Divisão de Acesso, que começa em 17 de maio. Em caso de atos racistas nas torcidas ou dentro de campo, serão aplicadas punições protocolares. Um novo regulamento foi criado especificamente para essa competição. É importante ressaltar que os episódios devem constar na súmula do árbitro e que deve haver uma denúncia formal da vítima; caso contrário, as punições não poderão ser aplicadas.
Um monitoramento realizado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol mostra que, entre 2014 e 2023, o Rio Grande do Sul é o estado com o maior número de casos de racismo registrados em estádios no Brasil. A partir dessa informação, do teu conhecimento e das tuas experiências, é possível afirmar que o Estado é, inevitavelmente, racista?
Seria muito leviano apenas dizer que sim; apesar de essa ser a resposta rápida, já que, em oito dos dez anos estudados pelo monitoramento, lideramos o ranking. O Rio Grande do Sul é o segundo estado do Brasil com maior população branca e, consequentemente, o segundo com menor população negra em termos percentuais. Aqui, a gente observa um tipo de comportamento racista muito declarado. Acho que esse é o dado. Aqui é tudo mais explícito, é um racismo particular fruto de um projeto de embranquecimento provocado pelo governo. Entretanto, existe um paradoxo, porque, ao mesmo tempo em que todos esses casos ocorrem, a nossa federação foi a primeira a demonstrar interesse em criar um protocolo antirracista; como citei anteriormente.
Ainda baseando-se nesse mesmo levantamento, é possível observar um aumento de mais de 500% em casos de racismo em estádios também no período entre 2014 e 2023. É seguro afirmar que o futebol nunca esteve tão racista quanto atualmente?
Será que é um aumento de casos, aumento no número de denúncias ou diminuição de tolerância? Hoje o jogador diz “eu não quero mais ser chamado de macaco”. Isso também é reflexo de um movimento político da comunidade negra. Há 30 anos, isso era piadinha, brincadeira. Os próprios jogadores negros mais velhos têm posicionamentos antiquados, por exemplo em relação ao Vinicius Júnior. Muitos dizem “porque quando eu joguei na Espanha também era assim”, só que eles toleraram, e o Vinicius não tolera. É simples.

Dos casos mais recentes de preconceito no futebol, quais mais marcaram a tua trajetória na luta antirracista?
O do goleiro Aranha, em 2014, que na época defendia o Santos, por ter sido identificada a mulher que proferiu as ofensas e terem até descoberto o endereço dela para ameaçá-la. Além de ser um raríssimo caso em que o clube foi punido. Outro que serve de exemplo é do Luighi, atleta da base do Palmeiras, que sofreu ofensas do adversário durante o jogo. Isso porque, primeiro, ele reivindica um lugar de fala que não havia recebido durante a entrevista protocolar após a partida, e segundo, porque ali era para ser uma escola aos atletas, para que eles chegassem no profissional com uma consciência social.
Em meio à polêmica, externada em reportagem escrita pela revista Piauí, que envolve o aumento do salário dos presidentes das 27 federações estaduais de futebol do Brasil que passou de R$ 50 mil para R$ 215 mil após decisão da CBF, é interessante ver a verba da FGF ser destinada a um trabalho tão importante. Qual o valor desembolsado pela entidade junto à Odabá? Quantos funcionários trabalham no Protocolo Zero?
Vale ressaltar que apenas prestamos uma consultoria a federação, não somos funcionários. A equipe que trabalha continuamente no protocolo é formada por quatro pessoas. Apesar da pequena equipe, estamos chegando a mil pessoas atingidas. Sobre valores acho que não posso dizer.