O número de desastres climáticos provocados pelas chuvas no Brasil cresceu 222,8% na última década, segundo um estudo da Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica, coordenado pelo Programa Maré de Ciência da Universidade Federal de São Paulo, em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a Unesco e a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. A enchente de 2024 no Rio Grande do Sul foi um desses eventos devastadores, que trouxe à tona um tema até então pouco discutido pela população: a importância de compreender as cotas de inundação.
Com a tragédia, muitas pessoas começaram a buscar informações sobre as cotas de inundação de rios e lagos, indicadores essenciais para a previsão de alagamentos, organização de resgates e proteção de vidas. Porém, a falta de uma comunicação clara e acessível sobre esses dados dificulta a atuação da população e das autoridades na prevenção de desastres. Para que as pessoas possam agir de maneira preventiva e eficiente, é necessário traduzir essas informações em termos simples e compreensíveis, capacitando as pessoas para enfrentar os desafios impostos pelos eventos climáticos extremos.
O que significa cota de inundação
Na prática, a cota de inundação representa o nível do rio a partir do qual a água ultrapassa a calha principal (o chamado leito menor) e avança para áreas mais baixas, conhecidas como leito maior ou várzea. É nesse ponto que o risco de alagamentos em áreas urbanas se concretiza.
De acordo com Juliana Fisch, coordenadora da Defesa Civil de Gramado, a cota de inundação corresponde ao momento em que o nível de um rio ou corpo d’água ultrapassa o leito normal e começa a invadir áreas que não ficam permanentemente submersas. “É nesse ponto que acontecem as inundações”, resume.
Essas cotas são classificadas em diferentes estágios, com cada uma indicando o grau de gravidade do risco:
- Cota de atenção: primeira sinalização de que o nível do rio está acima do normal.
- Cota de alerta: momento em que a Defesa Civil começa a emitir comunicados oficiais.
- Cota de inundação: quando as águas efetivamente transbordam.
- Cota de emergência: quando áreas habitadas e serviços essenciais são atingidos.
- Cota recorde: o maior nível já registrado historicamente.
- Cota de estiagem: quando o nível da água está tão baixo que compromete o abastecimento e outros serviços.
Como é feita a medição
No Rio Grande do Sul, os rios são monitorados por estações hidrométricas, que utilizam réguas instaladas em pontos estratégicos. Os dados são registrados em tempo real e repassados para sistemas como a Sala de Situação da Agência Nacional de Águas (ANA) e para órgãos estaduais e municipais.
Em algumas cidades, no entanto, a situação é diferente, como em Gramado, na serra gaúcha. Segundo Juliana Fisch, o município possui pouquíssimos pontos de risco de inundação, localizados em áreas muito específicas. Por essa razão, não há instrumentos tecnológicos para medição dos rios e arroios e também não existe uma cota oficial definida. Ainda assim, o monitoramento foi aprimorado após 2024. Hoje, a Defesa Civil local conta com pluviômetros eletrônicos que permitem acompanhar o volume das chuvas em tempo real. Além disso, foram cadastradas as famílias que vivem em áreas de risco, criados grupos de Whatsapp para comunicação direta, intensificado o monitoramento em campo e abertos novos canais de alerta, como o Instagram da Defesa Civil e um número exclusivo no Whatsapp.
O olhar da sociedade civil
As enchentes de 2024 escancararam fragilidades desse sistema. Muitas vezes, a informação chegava à população apenas em números frios, “nível do Guaíba em 5 metros”, sem traduzir o que isso significava para a vida prática das pessoas. A sociedade civil assumiu um papel muito importante no apoio às vítimas e na organização dos resgates, o que reforça a importância de uma clara compreensão sobre essas medições.

Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini
Lucas Sebastian da Rocha, de 30 anos, foi um dos voluntários mais ativos do coletivo Resgate+, que se destacou pelo trabalho emergencial. Sua inserção no grupo foi espontânea e cheia de urgência: “Quando a enchente começou, eu estava em casa, acompanhando as notícias, e senti a necessidade de ajudar. Entrei em todos os grupos de WhatsApp sobre enchentes e comecei a conectar as pessoas que precisavam de resgates com quem estava na rua”, conta Rocha. Ao longo da crise, ele se envolveu em diversas atividades, desde o apoio em resgates até a organização de doações e ajuda nos abrigos, transformando-se em uma peça-chave na mobilização social.
O voluntário lembra com orgulho do momento em que o Resgate+ se tornou uma referência tanto para a população quanto para órgãos oficiais: “Chegou a um ponto em que até o Exército e órgãos do Estado buscavam referência com a gente. Foi uma loucura, mas muito importante”. Ele destaca, ainda, a solidariedade entre os grupos independentes, como o bar El Aguante, que virou um ponto de apoio durante a tragédia em Porto Alegre.
Para Rocha, as cotas de inundação eram fundamentais para entender a gravidade da situação. “A cota de inundação era uma referência para ver como o Guaíba estava subindo e nos ajudar a perceber a urgência de agir”, explica. No entanto, ele aponta que a falta de informações claras dificultou muito o trabalho de resgates e a orientação da população. “Recebia alertas por SMS, mas um aviso dizendo ‘nível do Guaíba em tantos metros’ não transmite a gravidade disso na prática”, critica. Na opinião do voluntário, a comunicação estava distante da realidade das pessoas afetadas.
A solução encontrada por grupos como o Resgate+ foi a criação de mapas colaborativos, onde as pessoas podiam visualizar, bairro por bairro, os efeitos do aumento das águas. Esses mapas permitiram um planejamento mais eficiente dos resgates e ajudaram a direcionar as doações de forma mais eficaz.
*Esta reportagem explicativa faz parte de uma série para o projeto VerificaRS, iniciativa de divulgação de conteúdo verificado contra a desinformação climática
