“Se você já colecionou alguma coisa, você e o Érico vão se perguntar, juntos, o que é colecionar, por que colecionar e onde esse colecionismo vai parar. Porque, desculpe o aviso: um dia, essa coleção vai existir e você não”. Assim começa o prefácio de O Colecionador, mais recente HQ do selo independente Dom Mordaz, em parceria com a Editora Hipotética. Escrita por Djeison Hoerlle e ilustrada por Dieferson Trindade, a obra apresenta Érico, dono de um sebo em Porto Alegre, apaixonado por quadrinhos. Entre o humor cínico e desânimo do dia a dia, ele precisa enfrentar uma jornada de desapego da própria coleção.
Além de O Colecionador, Djeison, jovem autor de Campo Bom de 25 anos, assina as HQs Dissabores, O Vigilante do Centro Histórico e o livro de contos Café Delgado. Junto de outro conterrâneo, criou o selo que aposta na publicação de HQs e literatura nacional de forma independente. Na conversa a seguir, ele fala sobre a nova obra, processo criativo, recepção do público e os desafios de produzir quadrinhos independentes no Brasil.
Como você descreveria o Érico e a história dele?
Assim como muitas pessoas que a gente conhece, o Érico é um personagem que não tem muito perfil para o capitalismo. Ele é dono de um sebo e se intriga com cada negócio que faz: quando recebe uma coleção ou obra valiosa por um preço baixo, se pergunta por que aquilo perdeu o valor para alguém. É nesse ponto que surgem os “fantasmas” das obras, carregando histórias de abandono e que perderam sua importância. Ao mesmo tempo, ele passa por mudanças pessoais que o levam a olhar de forma mais crítica para o meio em que vive, e assim a narrativa se desenrola.
De onde veio a inspiração para a história?
Há tempos percebo um movimento no cinema de usar a própria indústria como plano de fundo para contar as histórias, algo que vem sendo chamado de metamodernismo. Sempre gostei desse tom, e achei interessante trazer isso para o universo de quadrinhos no Brasil, que é uma indústria pequena, mas muito apaixonada. Então, criei uma história que utilizasse a “bolha dos quadrinhos” como plano de fundo.
Qual foi o maior desafio durante a produção do quadrinho?
A paciência para esperar ficar pronto. Demoramos quase quatro anos para concluir a história, entre roteiro e ilustrações. E conforme a obra ganhava forma, eu começava a me questionar sobre escolhas que fiz na hora de escrever, que hoje eu encontraria soluções diferentes narrativamente. Mas precisei resistir e me manter fiel ao que já estava construído. Então, principalmente, tivemos esses dois trabalhos: ter paciência para concluir e resistir aos impulsos de mudar antes de pronto.
Que tipo de leitor você imagina se identificando com a história?
Seguramente, os leitores com um olhar mais crítico. Dentro da bolha dos quadrinhos, vejo dois arquétipos básicos: os que se apegam às HQs pela nostalgia da infância — e esses eu quero “frustrar” com a história — e os que encaram o quadrinho com seriedade e maturidade. Esse segundo grupo deve se identificar bastante, porque O Colecionador tem muitas críticas embutidas, com vários debates que são levantados dentro da comunidade de fãs.
Como encontrar o equilíbrio entre crítica e narrativa na HQ?
No geral, é fácil. Se fosse apenas uma crítica, talvez não fosse bem uma história. Por isso, precisei intercalar com a narrativa e com os acontecimentos da vida do Érico que vão transformando sua forma de pensar. Esses respiros e comentários sobre a sociedade dão vida à obra. A crítica e a reflexão misturadas à narrativa me parecem o processo mais natural.

Você participou da ComicCon RS e agora estará na Bienal de Quadrinhos de Curitiba. Qual a importância desses eventos para divulgação da obra?
É lá que a gente tem contato com o público. Sempre imaginei que escrever seria a parte fácil, difícil ia ser vender. Mas trocar ideias com as pessoas e apresentar as obras é muito prazeroso. É a primeira vez que sinto que vendo algo sem parecer que estou exagerando sobre a qualidade, porque tem um carinho e dedicação enorme no processo de criação. Então a ComicCon foi uma experiência surpreendentemente maravilhosa, e já estou ansioso para os próximos eventos.
Como você percebe a resposta do público às histórias publicadas pelo selo?
Uma das maiores surpresas foi perceber como o público se identifica com obras que retratam lugares que vivenciamos. Não fiz isso com objetivos comerciais, mas é mais simples, enquanto autor, falar sobre os locais que conheço. O Vigilante do Centro Histórico, por exemplo, chamou bastante atenção justamente por retratar Porto Alegre. Na ComicCon vendemos quase 40 exemplares, e grande parte desse interesse veio da identificação com a cidade.
Como você vê o espaço do quadrinho independente dentro do mercado nacional?
Vivemos um momento um pouco mais complicado do que antes da pandemia, quando vivíamos uma ascensão constante, com muitas iniciativas valorizando artistas independentes. Ainda assim, nosso selo tem tido boa recepção e conseguiu chegar a muitos lugares em um tempo inferior ao que almejamos, considerando que estamos no mercado há apenas um ano.
Qual o papel das políticas públicas para O Colecionador e outras obras do selo?
Temos quatro obras lançadas e três em produção, todas lançadas com algum tipo de fomento cultural, como as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc. O Colecionador não foi diretamente financiado, mas foi selecionado em um edital de bibliotecas públicas, o que pagou os custos de impressão com um lote de 160 exemplares para serem distribuídos. Grande parte do sucesso do Dom Mordaz só foi possível graças à políticas públicas descentralizadoras, e somos muito gratos por isso.
Quais são seus próximos projetos depois de O Colecionador?
Tem bastante coisa. Algumas obras ainda não têm data, outras já estão planejadas, e também temos projetos a nível empresarial para o selo, que vão facilitar o crescimento com livrarias e contratos. Em 2024, três obras do selo foram contempladas pela Lei Aldir Blanc, para serem lançadas esse ano: Palhas e Penas e Nada floresceu em 99, que são roteiros meus, e Éramos dois pela manhã, do meu companheiro de selo, Braian Malfatti. Além desses, temos outros em planejamento, mas ainda buscamos parceiros e verba. É um processo que fazemos com calma. O importante é ser bem feito.
Quais são as principais formas de apoiar os projetos da Dom Mordaz?
Como selo independente, não estamos em tantas livrarias. Temos algumas parcerias, como a Loja da Brasa Editora em Porto Alegre, e sebos como Literária e Afins em Sapiranga. Mas a forma principal de adquirir nossas HQs é por contato direto com os autores, pelas redes sociais, ou pelo nosso site, que funciona como e-commerce. E, por fim, sempre temos alguma campanha no Catarse, site de financiamento coletivo.
