Final de novembro, já amanhece calor em Porto Alegre. Apesar de não ser verão, a primavera mostra seus primeiros sinais de cansaço, e da mudança para a estação mais quente do ano. Em meio à selva de pedra, no coração do bairro do Bom Fim, reduto da criatividade porto-alengrese e da boa gastronomia, o calor parece se concentrar entre o concreto dos edifícios e o asfalto das calçadas.
Ele chega na sua moto, parece simples. De capacete preto, abre o restaurante para atender eu e o fotojornalista Ramiro Lemos. “Querem uma xícara de café?”, pergunta. Aceitamos, já que às 10h da manhã, o corpo ainda parecia estar sonolento. Em um casarão de 1900, que dispensa apresentações, o chef Maurício Olmi é o protagonista de uma das gastronomias mais conceituadas da cidade.
“Só minha mãe me chama de Maurício, pode me chamar de Mauri”, afirma. Barba fechada, careca aparente. Uma camisa de linho branca e bermuda para amenizar o calor, deixando à mostra todas as tatuagens que tem em seus braços e pernas. O homem da serra gaúcha parece já ter se adaptado ao clima da Capital.

Natural de Guaporé, cidade que fica a cerca de 200 quilômetros de Porto Alegre e tem pouco mais de 26 mil habitantes, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2022, Mauri nasceu em 1987. Ele é o irmão do meio dentre três, e está a poucos dias de completar 38 anos. Em 2023 abriu o próprio restaurante, o Libertino, e se consolidou como um expoente da alta gastronomia porto-alegrense, sendo capaz de reinventar o cardápio uma vez a cada dois meses, e nunca, segundo ele, repetindo os pratos. “Só uma vez, porque era uma ocasião especial”, brinca.
Formado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos em Gastronomia, Mauri Olmi não herdou o talento na cozinha de casa. O pai não cozinhava um ovo, e a mãe tampouco tinha dotes culinários. O mais próximo de uma boa comida era da avó, que de massas entendia.
Ainda jovem, começou a cursar Biologia pela Universidade de Caxias do Sul em 2005, mas não se encontrou no curso. Uma professora das aulas de extensão da universidade foi quem acendeu, de forma quase profética, uma luzinha em Mauri. “Tu definitivamente não serve para isso, és muito ansioso. Já pensou em trabalhar em uma cozinha?”, lembra, arregalando os olhos. Na época, Mauri não era uma pessoa que cozinhava no dia a dia, tinha tido apenas uma experiência com um trabalho voluntário, mas foi comprado pela ideia e decidiu, em 2007, entrar na Unisinos, no recém aberto curso de Gastronomia.
“Era um curso muito concorrido na época, pois havia tido o boom da gastronomia. Fiz uma prova prática no vestibular, era algo inusual. Botaram cinco loucos em ordem alfabética para organizar um jantar, pessoas que tu nem conhecia. Achei muito legal trabalhar na pressão”, relata. A partir desse ponto, Mauri nunca mais deixou a cozinha de um restaurante.

Despojado e bom de conversa, logo na terceira semana de faculdade começou um estágio em uma cafeteria em Porto Alegre, por necessidade inclusive. “Com aquele dinheiro eu podia pagar meu aluguel, um cigarro e comida. Precisava me sustentar minimamente”.
Fumante, não esconde que tem uma péssima alimentação também, por conta da rotina. Apesar disso, o medo de ter um infarto daqui a 10 anos fez com que buscasse um novo estilo de vida. Hoje, faz natação três vezes por semana e tenta manter uma organização fora do restaurante. Para Mauri, é difícil relaxar do trabalho, e o emprego na área é algo extremamente exaustivo. “Tu precisa ser um pouco fodido da cabeça para trabalhar em uma cozinha”, afirma.
Em 2009, trabalhou no Dado Bier, um restaurante no Shopping Boubon Country, que, para ele, foi o lugar onde aprendeu a cozinhar devido às grandes porções de comida que eram feitas. Após isso, teve uma breve experiência no seu primeiro cargo de chefia em 2010, na praia de Xangri-lá. Acanhado, não descreve muito sobre, tampouco desmerece. Recém formado, com o diploma na mão e muito jovem, um acontecimento vira de cabeça pra baixo a vida de Mauri completamente.
Crônicas em Bolonha
“Alô, Maurício, tudo bem? Eu fui um tempo atrás comer no Dado Bier, e gostei muito das saladas. Gostaria de ver se tu quer vir trabalhar aqui em Bolonha, na Itália?” “Porra, eu tinha 22 anos, jura que eu não ia”, exalta. O convite era de uma brasileira que tinha uma churrascaria com o marido – que era italiano – na cidade que dá nome ao molho típico. Com tudo pago, e um lugar para ficar, o jovem de 22 anos pegou um avião e foi para Bolonha, em uma das experiências mais bizarras que viveria como chef de cozinha na sua carreira.
Tal qual os italianos chegaram ao Rio Grande do Sul em meados do século XIX com promessas do império brasileiro na época, Mauri sofreu do contraveneno italiano. As promessas que foram ditas na ligação e que o convenceram a ir para a “Bota” não se concretizaram. Para ele, o período foi pavoroso. “O cara era um nojo, racista e xenofóbico”, se referindo ao proprietário da churrascaria. “Era o típico estereótipo de churrascaria brasileira na gringa, mulheres seminuas dançando samba nas sextas-feiras e mais um show de horrores”, descreve.
Ele tocava a cozinha sozinho, cuidava do buffet para 300 pessoas, com pratos quentes e saladas. Apesar dos percalços encontrados no restaurante, o chef adquiriu muita experiência durante sua estadia. “Eu tinha carta branca para fazer o que quisesse, eles usavam insumos de qualidade, podia comprar tudo e usar nas receitas”. Para Mauri, a gota d’água foi um dia em que o proprietário chegou bêbado e levantou a voz com ele, algo que nunca havia acontecido, pois era o único branco que trabalhava no restaurante: “Bati de frente e no outro dia fui embora. Os dois são grandessíssimos filhos da puta”. Depois de sete meses, duas semanas e três dias da sua chegada, o chef se encontrava à deriva em um mar de sonhos no velho continente.
Sem rumos concretos, o cozinheiro brasileiro arquitetou uma viagem a Londres com o dinheiro que juntou durante o trabalho anterior. Acontece que ele não tinha tido uma experiência em um restaurante genuinamente italiano. “Eu queria ao menos ter um dia em uma cozinha de um restaurante bolognese antes de embarcar para Londres.”
Teimoso, encontra na internet um pequeno local que servia comida típica da região, e decide enviar um currículo. “O cara que me atendeu disse que não precisava de ninguém, mas mesmo assim fui deixar o currículo lá”. Na mochila do chef, uma dolma – o uniforme branco que o cozinheiro utiliza – e muita insistência. O que deveria ser apenas, com muita sorte, um dia de trabalho, acaba se tornando mais de um ano no restaurante. “Foi uma experiência muito massa. Ali eu realmente vi o que era trabalhar sob pressão”, comenta.
Apesar de gostar do local em que trabalhava, Mauri parece não se adequar muito à monotonia e, em 2012, decide fazer um mestrado pela Europa. “Eram 900 euros o curso todo, passando por quatro países, eu podia pagar”, lembra. Decidido, antes de iniciar os novos estudos pelo velho continente, volta ao Brasil para tirar férias por dois meses. O que era para ser uma curta estadia em casa acaba tomando outro rumo.
“Eu nunca mais voltei.”
De volta ao Brasil
Em mais uma reviravolta na vida do chef, ele volta para a pequena cidade de Guaporé. Mauri, como descrito, não adere à monotonia, característica marcante que pude notar. Para a sócia do restaurante Libertino, Fernanda Souza, “ele é uma das pessoas mais sensíveis que eu conheço, criativo, vaidoso e teimoso”, descreve a amiga os demais traços do guaporense. Inquieto, durante toda a entrevista ele não podia parar de tentar retirar o rótulo da garrafinha d’água que estava na mesa onde conversávamos. Essa inquietação não só era vista em gestos de Mauri, mas também na mente e nos desejos do chef que não podia ficar parado muito tempo.
De volta para o Rio Grande do Sul, recebeu o convite de sua ex-professora da graduação para ser sócio de um novo restaurante em Porto Alegre, chamado Lucca, junto de uma ex-colega. Ele aceitou: “Eu entrei com trabalho, e não com dinheiro. Lá, já fazíamos coisas à frente do tempo para a época. Era um baita restaurante”, lembra.
Durante 2014, os três puseram em prática tudo que sabiam de gastronomia em um novo conceito na Capital. Ele relata com saudosismo a memória, e se orgulha de poder ter trazido à tona novas ideias gastronômicas importadas do tempo que passou no exterior.
A união acabou se desgastando, e pouco tempo depois o chef já não via mais sentido naquela cozinha. “Fui convidado a chefiar um restaurante em Porto Alegre, com carta branca para montar uma equipe e assinar um cardápio”. O restaurante em questão chamava-se Eleven, e ficava no bairro Moinhos de Vento. Mauri aceita o convite e mais uma vez, despede-se de uma antiga cozinha para assumir um novo local. “Ali eu encarnei, pela primeira vez, o chef de cozinha, de fato.”
Para ele, o ápice era a equipe de cozinha, que ele apelidou de Dream Team, nome que faz referência à seleção norte-americana de basquete das Olimpíadas de 1992, em Barcelona, e ficou conhecida por essa alcunha. “Internamente, nos outros restaurantes nos chamavam assim. Foi um experimento e um precursor da cozinha autoral”, se exibe.
Mas, como todos ouvimos uma vez na vida: “Quando a esmola é grande, o santo desconfia”. Segundo ele, o local não foi bem gerido pelos proprietários e acabou falindo, deixando uma dívida de R$ 80 mil em aberto com o chef. “Foi a melhor e pior experiência que tive. No final veio a pandemia, e eu estava desempregado.”
A pandemia de Covid-19 atingiu fortemente o setor da comida fora do lar em Porto Alegre. Sem emprego, Mauri precisou se reinventar novamente e acabou descobrindo algo que já levava consigo, mas estava escondido em um rincão de sua mente.
O Libertino sempre existiu
O relógio batia quase meio-dia em Porto Alegre. O ar-condicionado ligado buscava refrigerar o espaço. Estávamos sentados na maior mesa do salão principal do restaurante, a única com seis cadeiras, o restante das outras sete mesas tinham quatro. Segundo o chef, ele gosta que os clientes venham de “galera”, por isso a ausência de mesas pequenas com apenas duas cadeiras. Atrás da grande mesa, há um quadro pendurado na parede de tijolos aparentes fazendo alusão à Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Para Mauri, ele é muito especial e representa o início do restaurante, já que foi feito por uma amiga artista em 2023, antes da inauguração.
“Vocês se importam se eu fumar um cigarro?”, já levantando da cadeira. Abriu a janela do salão e posou, de forma cinematográfica, no parapeito do casarão.

“Como surgiu o libertino?”, indago sutilmente. Entre as tragadas do cigarro, ele responde. “O Libertino sempre existiu na minha cabeça, eu só não enxergava.” Para Fernanda Souza, faltava apenas um empurrãozinho para Mauri: “Foi uma construção na autoestima dele razoavelmente longa. Ele não confiava tanto na ideia, mas era uma vontade antiga”, conta.
Os dois se conheceram em um outro restaurante, o Vasco 1020, um pouco antes do lockdown. “Nossas primeiras interações obviamente foram em um fumódromo”, brinca. “Eu estava querendo mudar de trabalho na época e, na cara de pau, pedi para alugar um quarto no apartamento dele”, lembra Fernanda, que morava em Canoas, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Para ela, Mauri é mais que um parceiro de negócios, mas um amigo sincero. “Mauri é acessível, gosta de conversar e debater. Sensível, sempre preocupado com tudo”. Na pandemia, os dois ficaram desempregados, e Fernanda, que morava no quarto alugado do amigo, acabou convivendo diariamente com ele. Foi ali que o Libertino começou a ganhar as primeiras imagens de um esboço. “Eu queria muito abrir um restaurante de pizzas romanas em uma garagem, já era uma ideia antiga. Conheci o imóvel e vim vê-lo somente o espaço externo. Quando cheguei e vi que era toda essa construção, senti uma energia boa. Pensei: ‘É aqui’”, lembra Mauri. Hoje, a garagem dá espaço para o Libertário, que se dedica à proposta original de Mauri de fazer pizzas romanas.
Sobre o nome, ele não esconde: “É de libertinagem mesmo, mas não no teor sexual, na mesa. Comer é um ato de libertinagem, é hedonismo”. Para o chef, o restaurante é a síntese de todas as experiências acumuladas desde o primeiro estágio, ainda como estudante de Gastronomia, em 2007. Hoje, o Libertino conta com uma clientela fixa e curiosos que buscam o único restaurante em Porto Alegre como um menu rotativo. “Aqui exploramos toda a manualidade, não testamos nada. Se não der certo no primeiro dia, mudamos no segundo, e assim vamos indo. Libertino também é de ir contra a corrente, de questionar os padrões”, explica o chef.

Sobre cozinhar, ele não é nada romântico: “O meu prazer é ver as pessoas comendo, isso aqui é trabalho”. E trabalho precisa dar certo, já que empreender em Porto Alegre no ramo não é uma tarefa fácil, como ele mesmo descreve. “Trabalhar com restaurante é fazer hoje para pagar as contas amanhã. O cliente de Porto Alegre é difícil de ler, mas investimos em toda uma comunicação superlegal para poder estar conectado com a essência deste lugar”, reflete. Com um perfil com mais de 23 mil seguidores, o chef sabe da importância de se investir nas redes sociais para poder atrair novos clientes e manter os já fidelizados. “Tem vezes que é o primeiro dia do mês e já estão mandando mensagens perguntando do novo cardápio”, brinca.
Maurício Olmi, ou apenas Mauri, encanta o público com sua forma de criar e inovar. Sorridente, ele não sabe o futuro do Libertino ainda, como esperado, já que o chef não se reinventa apenas na cozinha, e sim na vida também. Para o caro amigo/a leitor/a que até aqui chegou: se um dia você for Libertino, entregue-se ao ato, e deixe Mauri emocioná-lo com o talento e manualidade que só ele pode proporcionar, seja na cozinha ou seja na personalidade.
“Mauri já me emocionou em tanto momentos, que eu não sei descrever em palavras”, resume Fernanda Souza, sócia e amiga pessoal da Mauri Olmi.

