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Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça, realizado em 2022, havia 27.456 crianças com processos de destituição do poder familiar no Sistema Nacional de Adoção. Só no Rio Grande do Sul, 1.619 menores de 18 anos tiveram seus laços rompidos com os pais no ano em que o levantamento foi realizado.
A destituição do poder familiar é o processo de retirada de uma criança ou adolescente da casa dos pais via medida judicial. Ela visa romper o vínculo entre pais e filhos em casos de graves violações do direito da criança. Essa alternativa é usada em casos de exceção quando outras ações de proteção se mostram insuficientes para garantir o bem-estar da criança ou adolescente.
O processo de destituição é regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 22, inciso III. Ele prevê a perda do poder familiar nos casos de abuso ou exploração sexual, abandono, negligência, atos contrários à moral e aos bons costumes, conduta imprópria ou, ainda, em situações de descumprimento injustificado dos deveres inerentes ao poder familiar.
Caso Henrique
Henrique, cujo nome verdadeiro foi preservado nesta matéria, é um dos casos de destituição do poder familiar. Aos dois anos, ele apanhava constantemente do padrasto e sofria com desnutrição e falta de higiene básica. Em 2024, a criança vinha sofrendo abusos recorrentes. Entre puxões de cabelos e empurrões, foram registradas nove denúncias contra a mãe e o padrasto por maus tratos. A principal surgiu quando o Ministério Público teve acesso a um vídeo do padrasto chamando o menino de demônio e dando pontapés em suas costelas.
Em fevereiro de 2025, a madrinha de Henrique, Olivia, foi acionada no Fórum de Jaguarão, no extremo sul do Estado, onde essa história aconteceu. O objetivo da visita era lidar com a situação do afilhado e saber quais ações seriam tomadas.
No caminho, a merendeira de 40 anos recebeu uma ligação da amiga Carla, mãe biológica da criança: “Quando falei com ela, fiquei incrédula. Ela me disse que tinha falado com a promotora e tinha decidido abrir mão da guarda”, relata Olivia.
Henrique seria encaminhado para um abrigo temporário do Ministério Público e entraria na fila da adoção caso não houvesse algum familiar próximo disposto a acolhê-lo.
Motivos para destituição

A promotora da Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Braga, é especialista no tema da destituição familiar. Ela destaca que a maior recorrência de casos é por abusos de drogas pelos pais das crianças.
Conforme relatos dos vizinhos da família biológica de Henrique, os parentes estavam envolvidos com o tráfico – o avô e os tios, inclusive, já haviam sido presos. Sendo assim, Henrique não tinha nenhum familiar apto para assumir a guarda de forma legal.
Quando a madrinha foi informada que o menino iria diretamente para um abrigo e entraria na fila de adoção, ela se comoveu e resolveu assumi-lo. “Não foi uma decisão fácil, pois já tenho dois filhos que dependem de mim, mas meu marido me apoiou e falou que a decisão certa era ficar com o Henrique”, afirma Olívia.
Para a promotora Cinara Braga, manter a criança na família de origem visa evitar traumas. Avós, tios, padrinhos e madrinhas podem assumir a criança. Esses familiares são chamados de família extensa. “Quando o Ministério Público e o Conselho Tutelar exaurem as medidas protetivas e o processo é ajuizado, não raramente as famílias se organizam e algum familiar assume essa criança”, afirma a promotora.

Rede de Proteção
Cinara Braga destaca que o passo mais importante para a proteção da criança é a denúncia. “Nosso pedido é que se alguém souber ou presenciar uma violação de direitos, denuncie nos órgãos competentes”. Atualmente, existe no Brasil o Disque 100 e o Fala.BR. Esses são meios que recebem denúncias de violação de direitos de crianças e adolescentes, que podem ser feitos de forma anônima.
Após a denúncia, o primeiro órgão de proteção a ser acionado é o Conselho Tutelar, como conta o coordenador geral dos Conselheiros Tutelares de Canoas, Rogério Behn. “Nosso dever é apurar os casos denunciados e, havendo indícios de violação ou violência, encaminhamos a criança para a rede de proteção”. Esse movimento é chamado de acolhimento e dura até 90 dias.
A rede de proteção é formada pelo Centro de Referência de Atendimento Infantojuvenil (CRAI), pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Esses órgãos realizam o monitoramento com assistentes sociais e psicólogos. Sua função é oferecer atendimento especializado para crianças, adolescentes e suas famílias, buscando soluções como orientações para os pais e acessos a hospitais e escolas visando garantir os direitos da criança.
Porém, a psicóloga judiciária na Vara da Infância e Juventude da 1ª Comarca de Canoas, Lucilene Pinheiro, comenta que a rede de proteção pode se mostrar ineficaz. “Todos os órgãos precisam ser instigados a participar da defesa da criança e, infelizmente, a rede é sucateada e falta pessoal e material suficiente para dar conta das demandas”, afirma a psicóloga.
Da descoberta da violência ao acolhimento

Para Lucilene, a principal dificuldade na descoberta da violência contra a criança é que não há sinais claros. “Uma das perguntas mais frequentes que eu recebo é como descobrir quando uma criança está sofrendo violência. A resposta é complexa, pois cada caso é um caso. A criança pode urinar na cama e isso ser um fator ou não”.
Atualmente, nos processos de destituição de poder familiar, os órgãos utilizam a chamada escuta protegida que evita o confronto da criança com a situação. O objetivo é o menor não precisar repetir diversas vezes a mesma história e alterar o depoimento, prejudicando a prova.

Com relação ao encaminhamento do menor ao abrigo, em que a família extensa não consiga acolher a criança, o conselheiro tutelar Rogério Behn afirma que a principal dificuldade é quando ela passa dos 6 anos, pois quanto mais velho mais difícil será sua adoção. “Ela pode ficar no abrigo por até 18 meses. Após esse período, ele precisa ser encaminhado novamente para a família ou para a adoção. Isso ocorre na lei, mas na prática não é o que acontece”, afirma Behn.
Ao fazer 18 anos, o jovem sairá de forma compulsória. O conselheiro também afirma que “nenhuma criança fica presa no abrigo. Ela pode fazer cursos e trabalhar. E o dinheiro fica numa poupança que o auxiliado terá acesso ao completar a maioridade”.
A psicóloga judicial afirma que a principal dificuldade é “ter políticas públicas adequadas e não tratar a infância como prioridade”. Segundo ela: “O problema vem de cima que vê a criança como um sujeito menor”.
Já para Olivia, um dos fatores que mais dificultou sua jornada foi a falta de ajuda dos órgãos de proteção à criança. “O Conselho Tutelar me ajuda muito, porém a rede de proteção, principalmente o CRAS e o CREAS, nunca veio aqui e pouco se envolveu no processo. A promotora do Fórum só falou comigo quando eu assumi a guarda provisória e me cobrou umas papeladas para seguir o processo”.

Como está Henrique agora?
Atualmente, Henrique mora com Olívia e seus dois irmãos, Gabriele, de 14 anos, e Carlos, de 8. Ele frequenta a escola infantil, já não usa mais fraldas e está começando a se adaptar à nova casa “Ele ainda não me chama de mãe, mas é um processo”, afirma Olivia.