
Nascido em 1970 na capital paulista, Lalo de Almeida estudou fotografia no renomado Instituto Europeo di Design em Milão, na Itália.Com quase três décadas de dedicação à Folha de S.Paulo, sua obra fotográfica nasce entre a teia política, imperativos dos direitos humanos e a avassaladora crise ambiental que se manifesta em solo brasileiro.
Seus projetos que se tornaram emblemáticos, como a “Distopia Amazônica” — agraciada com o Eugene Smith Grant — e o “Pantanal em Chamas”, revelam um profissional que se recusa à superfície dos fatos, buscando incessantemente expor as causas e as consequências humanas de decisões políticas míopes, de modelos econômicos predatórios e de uma negligência social alarmante.

Ao longo dos anos trabalhando na Amazônia, quais foram as mudanças mais significativas que você testemunhou em relação às políticas ambientais e aos direitos das comunidades locais?
Esse meu trabalho eu comecei a fazer em 2009, fui para Belo Monte, Altamira, acompanhar as primeiras audiências públicas sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte. E quando eu comecei a acompanhar essas reuniões, entendi que aquele projeto seria um desses processos que vira e mexe eu lia e me interessava, assim como a construção da Transamazônica, nos anos 70, ou as grandes obras da ditadura militar.
E estava vendo, em pleno ano de 2009, o início de mais um desses processos que estavam se repetindo, com uma lógica muito parecida, essa lógica extrativista, pensando sempre nesses projetos de fora para dentro, sem se preocupar com as comunidades tradicionais e com o meio ambiente. Então, eu acompanhei durante 10 anos e para mim foi revelador isso, porque me fez entender exatamente como é que as sociedade brasileira vê a Amazônia.
As transformações que eu vi ao longo desses últimos 15 anos foram muito poucas. Vi esses processos avançando, as fronteiras do desmatamento cada ano que passava estavam andando para frente.
E esse processo continua acontecendo. Por exemplo, a crise do Yanomami é um processo que começou nos anos 80, teve um outro pico com Bolsonaro, veio o governo Lula, fez o processo de desintrusão, mas o garimpo ainda continua em algumas regiões da terra indígena porque existe uma pressão muito grande.
Agora, uma coisa foi interessante, porque no governo do Jair Bolsonaro, onde houve uma grande pressão sobre os indígenas, ele sempre falou muito contra os povos indígenas. E quando ele assumiu a presidência, por conta dessa pressão e dessas ameaças, os indígenas se sentiram muito ameaçados e começaram a se organizar.
Vejo que depois de quatro anos de governo Bolsonaro, o que poderia ser uma desgraça para a população indígena na verdade teve o efeito contrário. Essas populações indígenas estão muito mais unidas, empoderadas, conectadas, várias novas lideranças surgiram, especialmente jovens mulheres. Então eu acho que depois de quatro anos de Bolsonaro as comunidades indígenas saem fortalecidas. Isso foi o lado bom que eu vi acontecer.
Seu projeto “Distopia Amazônica” revela um cenário complexo e preocupante na região. Como você define a “distopia”?
“Distopia Amazônica” tem esse nome porque distopia é o contrário de utopia. Distopia significa um lugar ou uma sociedade totalmente desorganizada e onde as coisas de alguma forma não deram certo. É um pouco o que eu vejo na Amazônia; acompanhando esse processo que não deu certo.
Ele não deu certo porque, além de ser destrutivo, devastou uma parte grande da Amazônia. E essa devastação, que deveria produzir riqueza, na verdade não produziu. Se você ver o IDH das cidades do Norte, elas estão entre as piores do Brasil. Então, essa devastação, que teoricamente seria para produzir riqueza, é uma falácia. Isso nunca produziu riqueza, porque essas cidades continuam paupérrimas. Esse dinheiro dessas atividades criminosas não fica na região; são poucas pessoas que se beneficiam.
A maior parte da população está ali no limite da sobrevivência, muitas em regime de semi-escravidão. Esse modelo é totalmente distópico, produziu uma sociedade pobre, ambientalmente devastada e não traz nada de benéfico para a região. É nesse sentido que eu usei a palavra distópico.





Projeto Distopia Amazônica – vencedor na categoria ‘Longa Duração’ do World Press Photo 2022
A questão do desmatamento e da exploração ilegal de recursos é central em muitas de suas imagens da Amazônia. Como você percebe a influência de políticas governamentais (ou a falta delas) nesse cenário?
A lógica do modelo de ocupação é a mesma que atravessa todos os governos. Isso está enraizado na cabeça da sociedade brasileira, esse modelo de ocupação predatória no qual a gente continua vendo a Amazônia como uma colônia. Dependendo do governo, você tem contrapesos diferentes.
Na época da ditadura militar, ocupou-se a Amazônia pensando nessas ideias dos militares de ocupar, sem pensar nas populações que já estavam nos lugares; muitas foram dizimadas. Aí você tem um governo Lula, com uma ministra como a Marina Silva, que tenta controlar o desmatamento, e há uma queda. O problema é que esse conceito de ocupação da Amazônia continua o mesmo; as políticas funcionam mais como um contrapeso do que como um modelo transformador.
Entrou o Bolsonaro com um discurso anti-indígena, anti-meio-ambiente. Isso tem um efeito no território, porque as pessoas se sentem estimuladas a cometer crimes, sentem que vai ter impunidade. Mas mesmo quando você tem um governo que se diz preocupado com o meio ambiente, as coisas no território continuam acontecendo porque a lógica não mudou. Não vi nada transformador até agora em termos de política pública.
A questão da Amazônia não é só ambiental, mas social. A gente precisa encontrar um novo modelo econômico para a região que traga renda para essas famílias e que mantenha a floresta em pé. Até agora eu não vi isso acontecendo em escala transformadora.

Seu trabalho frequentemente expõe a violência e a ameaça enfrentadas por defensores da floresta e ativistas de direitos humanos na Amazônia. Quais histórias te marcaram mais nesse sentido?
Grande parte do meu trabalho é com as comunidades tradicionais da Amazônia, os grandes zeladores da floresta. Se você olhar uma foto de satélite, as ilhas de floresta são, na sua maioria, ou áreas protegidas ou territórios indígenas. Uma das mais interessantes foi o Caiapó, da terra indígena Baú, no sul do Pará, uma área problemática com muito desmatamento.
Essa terra indígena sofre pressão do garimpo; algumas lideranças foram cooptadas e permitem que garimpeiros ajam no território. Mas outras aldeias são contra. A Aldeia Baú, liderada pelo cacique Bepe Joe, se opõe radicalmente à atividade garimpeira. Eles organizam patrulhas, tentam monitorar e expulsar garimpeiros num ambiente muito violento.
Para obter renda, tentam viver de atividades sustentáveis, como a venda de Kumaru para uma marca de cosméticos. É muito interessante ver como, apesar das pressões, lideranças combatem esse tipo de ameaça para proteger seus territórios.
Como você avalia o papel da mídia e do fotojornalismo na conscientização sobre a crise climática e na cobrança por mudanças?
O fotojornalismo tem uma capacidade de comunicação muito direta. Contudo, as notícias sobre questões ambientais têm um nível de interesse do leitor muito baixo. Talvez porque as mudanças climáticas sejam um assunto um pouco abstrato; as pessoas não conseguem entender os impactos de um aumento de 1,5º na temperatura do planeta. E, quando se trata de Amazônia, interesse zero.
Ο brasileiro não tem interesse pela Amazônia; não existe um sentimento de pertencimento. O interesse pela pauta indígena também é mínimo, em parte devido à nossa formação cultural e representações históricas dos bandeirantes como heróis e indígenas como selvagens preguiçosos.
É um grande desafio conectar-se com as pessoas. O fotojornalismo, por seu efeito de comunicação direta, “olho no olho”, talvez seja a ferramenta mais eficiente. Uma foto de uma região devastada toca muito mais as pessoas do que um texto. O poder da imagem tem um papel muito importante na comunicação da pauta ambiental.

Em “Pantanal em Chamas”, você registrou uma tragédia ambiental com consequências diretas para a biodiversidade e as comunidades locais. Quais paralelos você traça entre Pantanal e a situação na Amazônia?
Na Amazônia, a dinâmica do desmatamento e dos incêndios é que se corta a vegetação, espera secar e depois coloca-se fogo; a maioria dos animais já fugiu. No Pantanal, em 2020, o fogo passou devastando tudo rapidamente. A quantidade de animais mortos ao longo do caminho era impressionante, uma coisa que eu nunca tinha visto na Amazônia, porque os bichos não tiveram tempo de fugir. Foi muito diferente do que eu estava acostumado a ver.
Trabalhar no Pantanal era mais fácil porque a questão fundiária é mais resolvida; mais de 90% são áreas privadas, fazendas antigas, com famílias que têm apego ao território, diferente da Amazônia, que é um caos fundiário, com mentalidade extrativista e sem apego à região. A Amazônia é muito mais conflituosa, perigosa e vasta.
Essa experiência do Pantanal de 2020 foi bem traumática. A quantidade de bichos mortos foi uma surpresa inédita. O que mais me deixava agoniado era ver os bichos feridos, sofrendo, queimados, ou os filhotes ao lado das mães mortas. Era o apocalipse, muito pesado. Ver o Pantanal abandonado na época do governo Bolsonaro era muito angustiante. Um bombeiro me disse: “Aqui não tem mais o que fazer. Isso aqui só vai parar quando queimar tudo ou quando chover”. Foi uma experiência terrível.



Como essa experiência foi para o Lalo sem a câmera?
A máquina fotográfica de alguma forma te protege, funciona como um escudo. Mas você nunca passa ileso. Naquele momento, você está tão focado que se aliena um pouquinho, mas isso entrou dentro de você, foi absorvido. Isso se manifesta depois; muitas vezes fico no chuveiro processando tudo.
A gente entra em contato com emoções muito intensas. A gente não passa ileso disso. Isso vai acumulando e ficamos abalados emocionalmente. Eu me emociono muito facilmente fora desse ambiente do trabalho. Acho que isso é resultado dessa experiência de viver ambientes cheios de emoção. A fotografia é uma forma de proteção, a máquina funciona como escudo. Durante o trabalho eu consigo, senão não conseguiria trabalhar. Mas vou absorvendo tudo, e todas essas emoções se manifestam depois na minha vida, com minha família, no meu dia a dia.

Lalo, você viajou por diversos cantos do mundo documentando realidades complexas. Há algum encontro específico, alguma pessoa ou história que te marcou profundamente e transformou sua perspectiva como fotógrafo e como ser humano?
Eu acho que tudo é transformador, é o conjunto, não tem um fato específico; sou fruto de todas essas vivências. O fotojornalismo propicia contato com realidades intensas e diversas.
Talvez a experiência mais recente que me impactou foi documentar o Estreito de Darien, rota de migração entre Colômbia e Panamá. Pessoas atravessam uma selva perigosa, com crianças, famílias, para chegar nos EUA. Chegam ao Panamá muito fragilizados. A maioria latinos, famílias normais em busca de uma vida melhor; a gente se identifica com a situação deles.
Passam por perigos, ameaças, exaustão. Chega um momento que você guarda a máquina e começa a ajudar. No Panamá, é crime dar carona para migrantes, mas a situação é tão extrema. Começamos a dar carona, comprar medicamentos. Muitas crianças doentes; ver essa fragilidade me derrubou bastante. Foi uma das coisas que me tocou demais ultimamente.
Ao longo de 30 anos dedicados ao fotojornalismo na Folha de S. Paulo, como você sente que sua relação com a fotografia evoluiu? Houve momentos de crise, de redescoberta ou de redefinição do seu propósito?
Verdade, são 30 anos trabalhando de Folha, mas fiz várias outras coisas, trabalhei para o New York Times por uns 12 anos e depois me dediquei aos grandes projetos da Folha. A crise é contínua. Nunca estou satisfeito. Acho que as histórias são muito mais fortes do que eu consigo retratar. Me sinto impotente muitas vezes, querendo contar melhor a história das pessoas e às vezes a gente não consegue.
Às vezes não temos tempo, condições, ou não somos capazes mesmo. Me dedico de corpo e alma, mas temos limitações. Isso é frustrante, mas vejo que ao longo dos anos evoluí, tive ajuda de muita gente, bons editores. Fotógrafo bem melhor hoje do que há 15 anos, embora meu estilo e visão de mundo continuem os mesmos. Essa insatisfação é um estímulo para continuar trabalhando com mais dedicação. As histórias são muito maiores do que o meu trabalho.
Raramente consigo contar a história do jeito que acho que ela deveria ser contada, mas me esforço. Às vezes me sinto um picareta, não conseguindo contar a história do jeito que ela merece. É o tempo inteiro me questionando; essa insatisfação faz parte.
O prêmio World Press Photo por seu ensaio sobre as vítimas do Zika foi um reconhecimento importante. Qual foi o impacto pessoal e profissional desse prêmio, especialmente considerando a sensibilidade do tema?
O trabalho do Zika foi a primeira vez que ganhei o World Press Photo. Pessoalmente foi muito importante; para quem é inseguro como eu, o prêmio te dá uma espécie de selo de qualidade, mostra que você tá no caminho certo, te dá segurança, vontade de trabalhar e confiança. Profissionalmente, abre portas e ajuda a levar a história para uma audiência global. Era uma história muito importante.

Fui para Paraíba e Pernambuco e percebi que a história não era sobre as crianças com microcefalia, mas sobre a relação de amor das mães com essas crianças. Elas viviam em condições precárias, mas a dedicação e a relação delas com as crianças era impressionante. Fiquei muito emocionado.
Enquanto filmava e ouvia os depoimentos das mães, eu me escondia atrás da câmera chorando, porque os depoimentos eram incríveis. Era a relação dessas mães com essas crianças, o cuidado, o amor, a dedicação em meio à extrema precariedade. O trabalho ganhou outro prêmio, da Fundação Conrado Wessel, com valor financeiro. Achei que tinha obrigação de dividir com as mães. Fiz uma viagem com minha família para encontrar três delas e levar o dinheiro. Uma delas eu tenho contato até hoje.

Seu projeto “Distopia Amazônica” recebeu o Eugene Smith Grant in Humanistic Photography. O que a fotografia humanista significa para você e como você busca incorporar essa perspectiva em seu trabalho?
O Eugene Smith Grant é o principal prêmio de fotografia documental; fiquei super feliz. O último brasileiro a ganhar foi Sebastião Salgado nos anos 80. O prêmio leva o nome de Eugene Smith, um dos fotógrafos que mais admiro, pioneiro na narrativa fotográfica, que também tinha essa insatisfação com o próprio trabalho, era extremamente dedicado e perfeccionista. Ganhar um prêmio com o nome dele é uma honra.
A fotografia humanista que faço é colocar sempre o homem em primeiro lugar, sua vida cotidiana. Meu enfoque é a relação do ser humano com a paisagem, seu território. A Distopia Amazônica trata dessa relação do homem com o ambiente amazônico, colocando o ser humano como protagonista, mas dividindo esse protagonismo com a própria paisagem. Na Amazônia, a relação das comunidades tradicionais com os territórios é direta; o modo de vida deles está associado à natureza.
Você transita entre o fotojornalismo diário e projetos de documentação de longo prazo. Como é esse equilíbrio entre a urgência da notícia e a profundidade da pesquisa? Quais são os desafios e as recompensas de cada um?
Eu sempre gostei de fazer projetos de longo prazo. No fotojornalismo diário, a sensação era que estava viajando de trem, via temas que queria aprofundar, mas não parava em nenhuma estação. Paralelamente, comecei a me dedicar a temas com mais profundidade. Um dos primeiros foi “O Homem e a Terra”, sobre a relação de populações tradicionais brasileiras com os biomas. Também gostava de acompanhar processos a longo prazo, como reencontrar anos depois crianças que fotografei em situação de rua na Praça da Sé.
Sempre procurei achar temas com esse perfil dentro do jornal. Nunca quis cobrir a Copa do Mundo; preferia uma grande história na Amazônia. Sempre gostei de fazer histórias com mais profundidade, mais tempo, entender melhor as coisas, não fazer aquela coisa correndo, sensação de ser um paraquedista. Isso me dava uma sensação muito ruim. A partir de 2013, a Folha começou a fazer grandes projetos, como sobre Belo Monte. Fui encontrando esse caminho no jornal, que me abriu essa porta para desenvolver longas narrativas.
A Folha te dá muita liberdade. Usei o espaço que o jornal me dava para fazer o que eu gostava. Sou péssimo no jornalismo diário, não tenho essa velocidade. Nunca fui um cara rápido. Meu tempo é outro, gosto de pensar, de entender como vou contar a história. A Folha me deu esse espaço.
