Lagoa dos Barros sob ameaça: os riscos que a Estação de Tratamento de Esgoto de Osório representa ao balneário

Retomada das atividades por parte da Corsan se deu em meio a denúncias de irregularidades
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Thiele Reis
Hemelly Marques

Por Thiele Reis e Hemmely Marques

Uma estação de tratamento de esgoto reativada, efluentes lançados diretamente na Lagoa dos Barros, um plano de abastecimento de água que pode estar comprometido, uma batalha jurídica que dura mais de uma década. Este é o cenário que preocupa moradores e autoridades de Santo Antônio da Patrulha, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, bem como toda a comunidade ligada à causa ambiental na região. A Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) de Osório, operada pela Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), recentemente privatizada e adquirida pela gigante canadense Aegea, voltou a funcionar em caráter de pré-operação, em meio a denúncias de crime ambiental e irregularidades no processo de licenciamento, apontados por especialistas da área jurídica, química e ambiental.

A estação está funcionando em caráter de pré-operação, com uma nova etapa de tratamento desde novembro de 2024

A Lagoa dos Barros, considerada um dos corpos hídricos mais importantes da região, aparece no Plano Municipal de Saneamento Básico de Santo Antônio da Patrulha como alternativa estratégica para abastecimento de água em situações de estiagem. No entanto, desde a retomada da operação da ETE, em novembro de 2024, efluentes tratados têm sido despejados diretamente na lagoa, o que tem causado indignação entre a comunidade, ambientalistas e profissionais da área da defesa do meio ambiente.

A estação foi implantada sem Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), exigências legais para empreendimentos desse tipo, segundo o advogado Luciano Amorim, que atua desde 2017 na defesa dos interesses do município de Santo Antônio da Patrulha nos diversos processos judiciais acerca do assunto, que correm em múltiplas instâncias, inclusive federal. “Além disso, os estudos apresentados pela Corsan para tentar justificar a dispensa do EIA/RIMA e o funcionamento da estação são incongruentes com os estudos contratados pelo município, conduzidos por equipe da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), composta por especialistas altamente qualificados” completa.

Decisão desrespeita a ciência, aponta professor

Em entrevista à Beta Redação, o coordenador da pesquisa da UERJ, químico e professor Friederich Herms, que é mestre e doutor em Química e especialista em Elementos Traço e Gestão de Recursos Hídricos, destacou alguns pontos importantes levantados pela instituição. Segundo ele, a Corsan utilizou pareceres técnicos simplificados para justificar a viabilidade da operação da estação, uma vez que dados imprescindíveis a esse tipo de análise, como medição de vento a longo prazo in loco e mapeamento de profundidade (batimetria) não foram realizados. 

“O vento que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) utilizou para fazer a modelagem foi o da estação costeira de Tramandaí. Só que a condição de Tramandaí é de uma estação costeira. Você está a uma certa distância da Lagoa dos Barros, tem um contraforte da Serra Geral ali ao norte da lagoa, protegendo desse vento mais direto da costa. Então, há uma condição de vento completamente diferente. E constatamos isso no nosso relatório de meteorologia, no qual mostramos que a incidência de chuvas na Lagoa de Barros é 40% diferente da incidência de chuva em Tramandaí”, afirma. “Além disso”, prossegue, “eles fizeram medição de corrente durante um mês. E, a partir dessa medição de corrente de um mês, no verão, eles estabelecem a corrente para o ano inteiro. Temos que ter pelo menos um ano de medição para esse tipo de estudo, é necessária a análise de pelo menos três meses no verão e três meses no inverno, pois são condições atmosféricas completamente diferentes”.

O professor também alega que a Corsan não solicitou a autorização necessária da Marinha para a construção de um emissário submarino para evitar o lançamento desses efluentes à margem da Lagoa: “Entendemos que eles não têm licença para várias coisas. Por exemplo, fizeram um emissário para lançar o efluente tratado no meio da lagoa. Para esse tipo de obra, é necessária uma autorização da Marinha que não existe, sequer pediram. Nós solicitamos o projeto do emissário eles alegam agora que o perderam. E na realidade eles não têm a licença para a instalação do emissário. Hoje, eles estão pré-operando sem esta licença ambiental necessária”.

Herms destaca que uma das coisas que chamaram atenção da equipe da UERJ, em relação ao relatório da UFRGS apresentado pela Corsan quanto ao primeiro período de operação da ETE é que, mesmo havendo a adição de cloro antes do lançamento na lagoa, o efluente estava saindo com coliformes fecais. “E isso não é possível, né? Qualquer lançamento tem que ser coliforme fecal zero absoluto”, destaca.

A batimetria da lagoa é outra pauta levantada pelo professor que gera controvérsias entre os estudos apresentados. “Não temos a batimetria real, bem feita da lagoa. Nós encontramos uma batimetria feita lá em 1960 e depois mais três trabalhos que apresentavam quatro batimetrias, elas fornecem para a gente quatro mapas diferentes. A batimetria é a chave principal para se utilizar nos modelos matemáticos de dispersão dos poluentes. Então, se a minha batimetria está errada, o meu modelo vai dar errado”, afirma.

Herms explica que em um modelo de simulação da circulação da lagoa para o período de 10 anos presente nos estudos da UFGRS, mesmo com todos os erros apontados da modelagem, conclui-se que em 24 meses de lançamentos contínuos o esgoto decai apenas 50%. “Eu participo de uma consultoria para a Assembleia Legislativa e encaminhei, em 2009, relatórios a eles já alertando que a Lagoa dos Barros não teria condições de receber qualquer tipo de esgoto. Naquela época, com os dados que se tinha, a catástrofe anunciada era ainda maior, e ainda não se tinha nada construído”, ressalta.

Outro aspecto a ser considerado é que o esgoto que chega nesta fase de pré-operação da estação é extremamente diluído. “A quantidade de DBO, que é a demanda bioquímica de oxigênio, quanto consome de oxigênio para degradar matéria orgânica, é de alguma coisa entre 400mg e 800mg por litro. E o esgoto que tem chegado ali para ser tratado está na ordem de 40mg a 60mg por litro, ou seja, 10 vezes menos, um esgoto doméstico 10 vezes diluído”, informa. O especialista destaca que esse dado afeta diretamente o funcionamento da própria estação, pois todo o processo de preparação e análises da pré-operação está sendo feito com o esgoto diluído, mas o projeto de funcionamento prevê um esgoto 10x concentrado.

“Ou seja, está tudo ok. Agora, se a estação passar a receber o esgoto normal, como é que vai se comportar? Todos esses parâmetros são ajustados na pré-operação, se você muda o esgoto afluente precisa mudar isso tudo – é como comparar a força necessária que um carro precisa para subir uma ladeira com um passageiro, em comparação ao mesmo veículo no mesmo local, exercendo a mesma força, com sete passageiros. O que nos leva ao questionamento: será que a estação é capaz de tratar o esgoto real?”, pergunta.

O que determina a legislação

Esses fatores estão na contramão das exigências legais estabelecidas pela Resolução nº 01/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que no seu 1º artigo determina como impacto ambiental “qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam a saúde, a segurança e o bem-estar da população, as atividades sociais e econômicas, a biota, as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente e a qualidade dos recursos ambientais”.

Vale destacar que a Lagoa dos Barros é fonte de lazer para banhistas que visitam o local no verão, provenientes de diversas regiões do Estado, tendo a sua orla como palco para apresentações musicais, campeonatos esportivos e práticas de lazer em geral. Além disso, a pesca também é exercida na lagoa – todas estas atividades ficam comprometidas a partir da poluição do recurso hídrico, como constatado nos episódios de eutrofização enfrentados pela lagoa no período em que a ETE esteve em funcionamento.

Já no 2º artigo, a resolução deixa claro que “dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental (EIA) e respectivo relatório de impacto ambiental – RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do Ibama e em caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como (…) V – Oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos coletores e emissários de esgotos sanitários”.

A situação se agrava ao considerar que a ETE de Osório já havia sido desativada por vários anos, justamente devido à localização inadequada e aos riscos ambientais que representa ao corpo hídrico da Lagoa dos Barros. A decisão de reativá-la, mesmo que em caráter de pré-operação, parte da construção de uma estrutura na estação de tratamento, que inclui uma nova etapa no processo, responsável pela remoção química do fósforo, a fim de reduzir as quantidades do elemento químico para o parâmetro permitido pela legislação.

A solução, no entanto, não resolve o problema. Segundo o professor Herms, a quantidade estabelecida pela legislação prevê o despejo de efluentes em ambientes aquáticos onde há fluxo contínuo e renovação de água, o que não é o caso da Lagoa dos Barros, que não se conecta a nenhum outro corpo hídrico e é abastecida apenas pela água da chuva, portanto é considerada uma “lagoa de autocumulação”.

“Mesmo que você coloque pouco, a tendência ao longo dos anos é ir aumentando, aumentando, aumentando. Um exemplo bastante crítico para isso são os casos de ocorrência de floração de algas”, destaca o especialista em Gestão de Recursos Hídricos, referindo-se ao período em que a estação funcionou durante cerca de um ano e meio e, quando chegou o verão, houve uma grande floração de algas, de cianobactérias, resultando em uma água verde escura e anormal para aquele corpo hídrico.

A partir daquele cenário, a prefeitura de Santo Antônio da Patrulha conseguiu suspender o funcionamento da ETE ao longo de três anos, período no qual o cenário da floração de algas e cianobactérias acima do comum não mais ocorreu, assim como nunca havia ocorrido antes do funcionamento da estação. “Antes da ETE, nunca ocorreu. A ETE operou, ocorreu. Parou de operar, não ocorreu mais. Para mim, é uma associação de causa e efeito bastante lógica”, conclui o especialista.

Questionado sobre quais seriam os efeitos negativos das cianobactérias e da floração das algas para a lagoa e sua balneabilidade, o professor diz também que há tipos de cianobactérias que conduzem cianotoxinas que afetam os peixes de forma geral, tornando-se um fator de risco para a população que consome o pescado, além do risco de alergias cutâneas que podem afetar os banhistas em contato com a água contaminada. “As cianotoxinas são várias, causam problemas hepáticos e problemas de pele, então pode ser um potencial agente nocivo para a região”, afirma. 

Quanto aos resíduos dos químicos utilizados na estação para a eliminação do fósforo, o professor informa que geralmente esses elementos passam por um processo de sedimentação para que sejam separados antes do despejo no corpo hídrico, mas, mesmo assim, deve haver resíduos no efluente. Além disso, esses sedimentos devem ser processados ou transferidos. No entanto, o professor alega desconhecer o processo completo na nova fase da ETE, afinal, essa informação faz parte de um conjunto de documentos e relatórios que a Corsan/Aegea não forneceu à prefeitura de Santo Antônio, nem aos pesquisadores da UERJ. 

Segundo especialistas, a Lagoa dos Barros não se conecta a nenhum outro corpo hídrico e é abastecida apenas pela água da chuva, é considerada uma “lagoa de autocumulação” com baixa capacidade de autodepuração.
Foto: Acervo / DMA

As análises técnicas são extensas e apontam diversos riscos. O principal e com maior caráter de incontestabilidade é o fato de que a Lagoa dos Barros possui baixa renovação hídrica, o que a torna ainda mais vulnerável à contaminação. “A carga orgânica lançada na lagoa compromete o equilíbrio ecológico. Estamos lidando com um corpo d’água que não tem capacidade de autodepuração suficiente para absorver esse tipo de efluente em grande escala”, alerta o advogado Luciano Amorim, em consonância com os dados apontados pela equipe da UERJ.

O que dizem os órgãos responsáveis

A reportagem apurou que não houve consulta pública envolvendo os municípios afetados pela operação da ETE, o que contraria o princípio da gestão democrática dos recursos hídricos. “O mínimo que se espera é que os estudos técnicos levem em conta a realidade local, com simulações de cenários de estiagem e impacto cumulativo. Isso não foi feito”, afirma Amorim.

A Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) se pronunciou por meio da seguinte nota: “A Fepam informa que a estação de tratamento de esgoto em questão está operando com licenciamento ambiental vigente, em conformidade com a legislação brasileira. O licenciamento foi conduzido com base na Resolução Conama nº 377, que estabelece o rito simplificado para empreendimentos de pequeno e médio porte, como é o caso desta estação, dispensando a exigência de EIA-RIMA. Na época, uma liminar suspendeu a operação da Corsan. A liminar foi revogada após a instalação de equipamentos para remoção de fósforo, com o objetivo de melhorar a qualidade do efluente lançado e reduzir riscos ambientais. A partir disso, a Corsan recebeu autorização para operar a estação em fase de testes pelo período de um ano, com o objetivo de monitorar o desempenho da unidade e os impactos no corpo hídrico. Essa autorização foi formalizada por meio do processo nº 011690-0567/24-7, sob solicitação SOL 144846, que resultou na emissão da Autorização Geral (AUTGER) nº 586/2024. Os testes foram iniciados em novembro de 2024. Portanto, a estação não está operando de forma irregular. Ao final do período de avaliação, e confirmada a eficácia do tratamento e a estabilidade das condições ambientais, será emitida a licença de operação definitiva”.

Já a Corsan informou, também por meio de nota, que a ETE de Osório está em fase de pré-operação autorizada pelo órgão ambiental a partir de estudos consistentes elaborados por autoridades científicas e já avaliados pela Justiça. No entanto, ao ser questionada pela reportagem da Beta Redação sobre quais eram os estudos, licenças e órgãos responsáveis em questão, a empresa não respondeu às solicitações até o momento de publicação desta reportagem. 

O futuro da lagoa está em risco?

A situação expõe a fragilidade da dos órgãos de fiscalização ambiental e levanta questões sobre o uso de recursos hídricos em tempos de crise climática. Com secas cada vez mais frequentes, a dependência de corpos d’água como a Lagoa dos Barros, que também desempenha papel ímpar na agricultura da região para fins de irrigação, tende a aumentar.

A reportagem teve acesso ao depoimento público do cidadão emérito Zenor Manoel da Rosa à Folha Patrulhense, na ocasião da reativação da ETE, em novembro de 2024, onde destacou: “Tratando-se de sujeira, a palavra tem que ser nojo mesmo! Não posso entender que pessoas de alto nível de cultura, inteligência, bondade e educação, possam decidir a favor do lançamento dos dejetos fecais de Osório na nossa Lagoa dos Barros. Caso aconteça uma grande seca no Rio Grande do Sul, pode secar o Rio dos Sinos. As águas subterrâneas só Deus sabe o que tem lá embaixo. A Lagoa dos Barros poderá ser a salvação. A água, como se encontra atualmente, aceita um tratamento, mas se lançarem a sujeira de Osório nela, daqui há quatro ou cinco anos será irreparável, sem condições para consumo humano. O que será do povo? Por que escolheram a nossa lagoa para despejarem essa sujeira? Pelo amor de Deus, não sujem nossa lagoa, não acabem com a nossa prainha, onde no verão é usada por milhares de pessoas, e a maioria de outros municípios. Peço que, através das redes sociais apresentem os seus protestos e pedidos que revoguem essa decisão injusta e errônea.”

Instituições se reunem em defesa da Lagoa dos Barros
Foto: Reprodução / Facebook Prefeitura Sto. Antônio da Patrulha

A população de Santo Antônio da Patrulha aguarda, agora, uma decisão judicial que possa reverter esse cenário e garantir que a Lagoa dos Barros seja preservada — não apenas como alternativa futura, mas como patrimônio ambiental do presente.

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