Fé e ciência sobre o mesmo tablado; a dança pela cura

Em Cura, a Cia de Dança Deborah Colker faz do palco uma celebração ao buscar a cura do que não tem cura

São movimentos leves, síncronos, gravados nas musculaturas dos bailarinos em oito tempos. Na extremidade que limita a profundidade do palco não há nada, apenas a cortina preta, mesma usada nas coxias – divisões nas laterais do palco, por onde entram bailarinos e cenografia. E não era necessário, você ficava preso a cada movimento criado, transcendendo o tempo e o espaço.

Assistir a Cura é ser convidado a viajar para a maior intimidade de si. O trabalho ultrapassa a história da sua singularidade e da riqueza de uma vasta pesquisa de criação, que te carrega por quatro dimensões: física, emocional, intelectual e espiritual. Mas também é o encontro de duas genialidades brasileiras.

Uma genialidade é de Carlinhos Brown – um dos maiores compositores e produtores do nosso país -, que criou do zero a trilha sonora, uma música pensada especialmente para a obra. Um detalhe a parte, Brown utilizou de instrumentos inéditos para criar efeitos sonoros, como, por exemplo, arrastar um balde de metal pelo chão.

A outra é a única mulher a criar uma obra para o Cirque du Soleil (OVO), e, recentemente, a dirigir uma obra no MET, o Metropolitan Opera de Nova York (Ainadamar), e aclamada pelo público, Deborah Colker, novamente leva a arte brasileira, a lugares até então impensáveis.

A linguagem da forma como trabalha os corpos de seus bailarinos sempre foi própria. Ao ver uma obra sua, você é capaz de associar à assinatura de Colker em outras de suas obras, mesmo que totalmente distintas. Sua profundidade ao criar para seus bailarinos me faz recordar Pina Bausch.

A Cura nasceu da indignação à ciência e ao preconceito da sociedade. Seu neto Théo nasceu com uma condição rara que causa bolhas em sua pele, EB – epidermólise bolhosa distrófica recessiva. A partir da ideia da cura do que não tem cura – como a própria Deborah costuma chamar sua obra -, ela fez uma viagem para dentro de si e, como todos temos algo em nós que precisa de cura. Uma cura que nasce do amor.

Foto: Lina Sumizono/Divulgação

O espetáculo apresenta sua força já nos primeiros minutos. Com a narração de uma história da cultura africana – que abre e fecha a obra da Cia -, Théo conta a lenda de Nanã, a Orixá que criou os seres humanos. Ao final, Nanã, que todos achavam ser muito velha, pediu para ter seus filhos, que nascessem de dentro dela, assim ela deu à luz a gêmeos. Um deles era um dos bebês mais lindos que ela havia visto, este se tornou uma serpente e fugiu para a floresta. O outro, no entanto, ela não conseguia olhar, era horrível, com a pele coberta de feridas.

Nanã decide abandoná-lo, deixa-o perto ao mar, seu choro não cessava e, de tão alto, fez ouvir Yemanjá. A Orixá dos mares vê nele a criança mais linda do mundo, sem ligar para suas bolhas, mas, com o passar do tempo, para protegê-lo da dor e dos olhares dos seres humanos, o cobre com uma roupa feita de palha, deixando apenas seus olhos, mãos e pés à mostra. Seu nome é Obaluaê, o Orixá da dor e da cura.

E assim, bailarinos que se sustentam no ar dançam através de estruturas “vivas”, com uma altura mínima de três metros, como um figurino que cobrisse em palha, assim como Obaluaê, entram em cena. O movimento dos corpos, ao adentrar e sair, a forma como utilizam as extensas palhas que chegam perto do chão, fazem com que pareçam ser vivas.

Foto: Pedro Moraes

Em Cura, a Cia de Dança Deborah Colker faz do palco uma ligação profunda e íntima entre fé e ciência. A obra que cita a fé em seu entrée, fazendo uma linda celebração ao Candomblé (Axé, Saravá), aborda em seu segundo ato a ciência – acompanhada pelo direito de questionar, pela dor. 

Então, ao fundo do palco, aparece em caixa alta: PELE. E, usando dois tablados montáveis e, figurinos em vermelho vivo, amarrados a seus corpos. Os bailarinos se doam aos movimentos mais intensos de toda a obra. Colker deixa claro nesse momento que sua criação é algo tão pessoal de cada um que assiste, e de si mesma. 

Divulgação: Site da Cia de Dança Deborah Colker

No palco, o seu corpo de baile faz saltos característicos do trabalho desenvolvido na Cia, entrelaçando seus corpos aos outros, representando o sangue das feridas de Théo, seu neto. Ao mesmo tempo em que fala da importância de amar para curar, aquilo que não há cura, de ver a dor do outro

Ao som da música inédita criada por Brown para a obra, o corpo de baile acompanha uma solista que com seus movimentos consegue se desfazer da faixa que cobre seu corpo inteiro, mas, ao fazer isso, ela encontra o preconceito e a discriminação. Um pas de deux (dança a dois) entre ela e um bailarino com vestimentas pretas, demonstra a luta contra o preconceito sofrido por aqueles que são diagnosticados com doenças raras. Ao fundo, o corpo de baile se movimenta em conjunto, se contraem, escondem seus rostos, eles são a vergonha, a sombra que paira contra essas pessoas.  

Ao final da obra, a luz quente fica tão intensa, sendo sem dúvida a parte em que o palco está mais claro. Uma referência à luz, que também aparece ao final da lenda de Obaluaê – Yemanjá respondia a quem perguntava porque seu filho vivia coberto por palha pois era a criança mais linda do mundo

De tanto pedirem para então deixarem que o vissem, ela acaba por aceitar. No momento em que ela tira a roupa em palha que cobre o corpo de Obaluaê, o sol brilhava tão forte que iluminava sua pele, como se fosse banhada a ouro. E todos concordam com Yemanjá: ele era a criança mais linda do mundo. 

Com cantigas e gritos na língua mãe de Moçambique – o lugar mais especial das viagens feitas por Deborah Colker, procurando a Cura para seu neto, que se tornaram laboratórios para a obra Cura. E desta celebração, o sangue das feridas se transformou em pipocas estourando. A oferenda preferida de Obaluaê é o deburu, um prato de pipoca. 

Divulgação: Site da Cia de Dança Deborah Colker

A obra em sua totalidade é uma prova de que a arte pode curar, o que fere o mais profundo em nós.

A Cia Deborah Colker nasceu em 1994, e desde seu início, seus trabalhos sempre trouxeram aos palcos grandes elementos cenográficos, que compunham a obra criando uma singularidade aos movimentos. A Cura é sem dúvida um renascimento da coreógrafa, ela não utiliza de grandes estruturas, não há necessidade, seu trabalho é de uma profundidade tão verdadeira e pessoal, onde você não consegue desviar o olhar, e deixa o teatro olhando para si e seu processo de cura. 

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