A internet mudou a forma de consumir arte. O conteúdo que vemos em nossas telas pode ser produzido por qualquer pessoa: desde um jovem com um celular na mão até uma atriz, pesquisadora e professora de teatro, como é o caso de Aline Marques. Formada em teatro pela Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (Uergs) em 2007 e com mestrado concluído em artes cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2022, a atriz carrega 20 anos de estudo em bufonaria, linguagem cômica do teatro. Em 2012, aprofundou sua formação em comédia física na Ecole Philippe Gaulier, na França, referência internacional nessa técnica.
Com experiência consolidada em espetáculos como As Bufa e Valdorf, Aline decidiu levar o seu trabalho ao mundo digital. O resultado? Mais de 432 mil seguidores entre Instagram e TikTok em sua conta pessoal, enquanto o personagem fictício Valdorf soma mais de 730 mil. Em meio a um cenário em que muitos criadores de conteúdo viralizam sem formação artística, Marques traz para as redes sociais o peso de duas décadas de estudo, pesquisa e experiência de palco. Mas será que o público se importa com essa diferença?
As plataformas digitais estão em constante evolução, e basta um clique para atualizar a página e encontrar um novo conteúdo. O mundo nunca esteve tão prático e, para se destacar, é preciso entender os algoritmos. Nesta entrevista, Aline Marques fala sobre o papel da formação artística em meio a um universo dominado por likes e sobre as possibilidades de um futuro em que o teatro e o digital caminham lado a lado.
Toda a sua trajetória levou às redes sociais. Teve algum momento específico em que você percebeu que precisava estar nelas?
Mais ou menos. Eu comecei a criar conteúdo para o YouTube em 2018, com o personagem Valdorf. Não havia uma necessidade absurda, como aconteceu com muitos artistas que entraram na internet apenas em 2020, durante a pandemia. Mas eu já percebia que o teatro tinha um aspecto elitista. Quem consome teatro, geralmente, são pessoas que tiveram acesso a oportunidades que o público geral não tem. O povo consome internet, televisão e rádio. E apesar de trabalhar com comédia, que é uma linguagem popular, muitas vezes meu público era formado por pessoas já acostumadas a frequentar o teatro. Então, comecei a pensar em como poderia ampliar meu alcance.
As redes sociais apareceram como esse caminho. Os vídeos do Valdorf funcionaram muito bem, chegaram a viralizar, mas de uma forma meio “torta”: as pessoas realmente acreditavam que ele era uma criança. Não viam aquilo como um produto artístico, mas como realidade. É absurdo pensar que alguém acreditava que eu, com 35 anos, tinha 6. Mas a internet faz isso com a cabeça das pessoas. Depois, eu fui ampliando para outras possibilidades. Entrei no TikTok, criando conteúdo como Aline, colocando a minha cara para jogo.
Seu conteúdo viralizou no YouTube em 2019, e, em 2023, no TikTok. Você sente muita diferença entre as épocas e as plataformas?
Sim. Aos poucos, as pessoas foram entendendo que eu não era realmente uma criança, mas ainda hoje tem quem se surpreenda. Sobre as plataformas, são bem diferentes. Até as métricas mudam muito: um vídeo que era enorme no YouTube tem o mesmo número de visualizações de um vídeo medíocre no TikTok.
Com o crescimento do TikTok, você acha que é mais fácil para as pessoas viralizarem e se tornarem influenciadores?
Acho que sim, o TikTok tem esse perfil. Se você entende como funciona, experimenta e insiste, existe essa facilidade. Mas não é tão simples: é preciso constância, aceitar errar e fracassar várias vezes.
Atualmente, muitos criadores de conteúdo conseguem viralizar e acumular seguidores, mesmo sem uma formação como a sua. Como você se sente diante disso?
Acho que eu não sinto nada. Eu entendo que é reflexo do nosso momento como sociedade. Hoje as pessoas querem ver o que é real, acompanhar a vida dos outros nos stories, assistir reality shows. É natural que, às vezes, isso atraia mais do que um vídeo ficcional como o meu.
Claro, às vezes vejo vídeos muito toscos que se propõem a ser humor e penso “bah…”. Mas também reconheço que existe público para tudo. A gente também pode cair no elitismo, achando que só o que aprendemos a gostar é válido. Isso é uma forma de ser preconceituoso com outros materiais. Não estou querendo ser boazinha e dizer que tudo é bom, mas é difícil falar sobre isso. A internet funciona por uma mistura imensa de fatores.
O público consegue perceber a diferença entre conteúdos bem construídos e os sem preparação?
Depende. Muda de plataforma para plataforma. Algumas pessoas têm esse cuidado, essa curadoria. Outras não conseguem diferenciar uma comédia que reflete sobre a atualidade de uma que só reforça estereótipos. Às vezes, vejo um vídeo original, criativo, e logo depois alguém copia de forma tosca e viraliza também.
Quais diferenças você sente entre a internet e o teatro?
O teatro é a arte do encontro. Existe interação direta com o público, que influencia cada gesto e fala. É transformador tanto para quem assiste quanto para quem atua. Na internet não há presença física, mas existem outros ganhos: a possibilidade de alcançar mais pessoas, de explorar recursos audiovisuais, de editar os vídeos. Eu amo editar, já gravar é mais cansativo.
Você espera que o público conquistado na internet vá também ao teatro?
É o meu sonho, mas sei que talvez o público da internet prefira ficar apenas nos vídeos. Mesmo assim, é o meu grande objetivo: ampliar o público do teatro. Por isso dediquei tanto tempo às redes, mas agora eu não estou mais aguentando e preciso voltar ao palco.
Muitos atores sentem que estar nas redes é uma obrigação. Você concorda?
Não acho que seja obrigação, mas uma oportunidade. Conheço colegas que não têm a menor vontade e até veem isso como algo menor. Então, acho que é muito pessoal, mas eu vejo como oportunidade. Também acho que é uma tendência em qualquer profissão, não só do artista. E eu às vezes invejo quem não precisa estar nas redes sociais, mas sigo porque acredito que elas podem ampliar o público do teatro, e também porque existe a questão da monetização. É cansativo e às vezes sinto vontade de voltar a uma vida analógica, fazendo teatro para 100, 60 ou 7 pessoas. Mas ainda vejo como uma oportunidade.
O digital realmente democratizou o acesso dos artistas ou ainda há barreiras?
Ainda existem barreiras. Conheço pessoas que não conseguem encontrar um formato que funcione online. O conhecimento artístico é diferente do conhecimento de internet. Algum músico pode criar um show interessante para quem está lá ao vivo, mas não conseguir transpor isso para a internet. O teatro é a mesma coisa. No meu caso, por trabalhar com comédia popular, a transição foi mais natural. Mas mesmo assim precisei entender os macetes do algoritmo. Ainda é imprevisível, mas agora já consigo compreender melhor como funciona.
Como você vê o futuro dos artistas no digital?
Sinceramente, não sei. Tudo muda muito rápido. Eu acho que, daqui a pouco, a sociedade vai se cansar de tanta impessoalidade desses algoritmos malucos e começar a buscar experiências mais íntimas, como redes menores. Enquanto for interessante, quero continuar, mas sem abrir mão do teatro. Espero que as duas coisas possam caminhar juntas, uma fortalecendo a outra. Mas eu realmente não sei o que a nossa sociedade vai querer, porque está tudo mudando muito rápido, tanto em termos tecnológicos quanto em termos de comportamento.
Para levar mais pessoas ao teatro, falta incentivo do governo?
Sem dúvidas. O teatro já foi uma arte muito mais popular em outros momentos históricos. Hoje compete com facilidades como Netflix, e exige presença física. Por isso precisa de incentivos, que até existem, mas ainda são escassos. Quando o público vai ao teatro, percebe a importância e a magia dessa arte. É transformadora, mas não deveria ficar tão enfraquecida. Investir em formação e acesso é fundamental.
É difícil viver apenas do teatro?
Depende do caminho. O teatro comercial ou infantil pode ser mais rentável. Já o teatro mais experimental exige outros apoios, como dar aulas ou atuar em pesquisas acadêmicas. Eu mesma já trabalhei com teatro infantil e foi bastante rentável. Cada vertente tem suas próprias condições de sobrevivência. Mas eu nunca tive fases muito difíceis. Para mim, o teatro sempre foi prazeroso e rentável.