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“Escolhi o audiovisual como ferramenta de visibilidade”, diz cineasta do Morro da Cruz premiado em Gramado

Crystom Rodrigues, mais conhecido pelo nome artístico de Afronário, é um estudante do curso de Realização Audiovisual, na Unisinos de Porto Alegre. Morador do Morro da Cruz, uma das periferias da capital gaúcha, Crystom produziu o curta-metragem “Aconteceu a Luz da Lua”, uma obra quase biográfica, que aborda a realidade de muitos moradores da periferia.

Seu curta-metragem foi exibido no 53° Festival de Cinema de Gramado deste ano, ganhando o Prêmio Especial de Júri, uma das categorias de nível nacional. Nesta entrevista ele contou como foi a produção.

Nas suas redes sociais, você relata o cotidiano de diferentes comunidades de Porto Alegre, incluindo o Morro da Cruz, onde você vive. Qual a importância de registrar e ressignificar o pensamento da população sobre a realidade nas comunidades?

O Morro da Cruz é mais uma periferia na cidade de Porto Alegre, que não se encontra no IBGE. Eu consigo citar 10 comunidades agora e o IBGE não. Porque ali eles separam os bairros pobres da cidade de Porto Alegre. Quando uma comunidade não se encontra dentro do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, as pessoas que estão ali, dentro desse território, elas já não estão incluídas na sociedade. E essas pessoas acabam ficando à margem.

Eu fui um jovem que achava que a minha vida poderia ter sido de um outro jeito, que eu não era capaz de chegar aonde estou hoje, por exemplo. Por estar em um ambiente onde o que os meios de comunicação convencionais mostram apenas as tragédias. Então é isso, eu vou aceitar? Que é o que o sistema faz com a gente, que a gente vire comida de tubarão. E aí, criou-se um Afronário, pra tentar fazer essa imersão, de colocar as comunidades de Porto Alegre no mapa, principalmente para os moradores desses territórios terem autoestima e de se verem como algo, e principalmente como artistas, ou como pessoas, cidadãos e cidadãs normais. E essa é a minha missão.

Em 2022, quando voltei do Rio de Janeiro, eu conversei com pessoas, e elas me falaram que não sabiam que existiam pessoas pretas e periferias em Porto Alegre. Então eu voltei querendo relatar tudo isso através das lentes, e foi por isso que escolhi o audiovisual, para ser ferramenta de visibilidade pra esses espaços que são invisibilizados. Quero que as pessoas tenham autoestima de viverem onde vivem e mostrarem que são capazes de chegar em qualquer lugar.

Quais foram as suas referências para a produção do ‘Aconteceu a Luz da Lua’?

Desde o fundamento do roteiro, foram dois filmes. O primeiro filme é de 1991, que se chama Os Donos da Rua (Boys in the Hood), dirigido pelo John Singleton. Ele foi a primeira pessoa preta a ser indicada na categoria de melhor diretor no Oscar e o melhor roteiro original. Ele tinha se formado no curso de cinema, em Los Angeles. E escreveu um roteiro, num longa-metragem, que é Os Donos da Rua, onde ele relata o que acontece na vizinhança através de um longa-metragem. Um filme incrível.

A segunda referência foi, não tem como, Cidade de Deus. O filme de 2004, onde eles fizeram aquele laboratório com os moradores da comunidade interpretando personagens que são daquele território. Era o meu sonho fazer isso desde que eu entrei na universidade. Todo o filme é também por conta do trabalho sociocultural, que eu acredito que o cinema faz.

Em seu filme, você retrata a sua vida em dois personagens: um que está recém ingressando em um curso superior e outro que busca viver de arte. Como foi transformar essa realidade em obra audiovisual?

Os dois personagens são o Crystom dividido em duas pessoas. O Wellington é aquele jovem de 18 anos, que é o primeiro da família a terminar o ensino médio e que vai prestar vestibular para fazer o ensino superior. E o William é um jovem que quer ser um artista da comunidade, mas sem seguir no meio acadêmico. E pra mim foi, vou te dizer que o que foi difícil foi fazer a galera entender a mensagem do filme, os atores. Porque a gente fez audição aqui na comunidade, eu e o Wagner do Santos, que é um ator que nasceu aqui no Morro da Cruz e agora está em Gramado. Eu o chamei pra gente fazer as audições na comunidade.

Durante as diárias, o desafio pra gente foi informar os moradores como estar num set de filmagem. Porque foi tudo muito novo pra todo mundo. E também porque aqui no Morro da Cruz também não tem um ponto de cultura. Foi um laboratório bem desafiador. Mas na parte da interpretação o pessoal mandou muito bem. Eles estavam interpretando pessoas que eles conhecem.

Por que você acha que é difícil ter esse poder da direção?

O diretor, ele não dirige só o elenco. Ele dirige a equipe também, atrás das câmeras, a equipe técnica...Tinha um monte de coisa pra ver. Esse foi um desafio grande para mim. Eu não digo que eu não vou fazer mais. Eu vou continuar fazendo porque eu quero contar histórias. Eu estou na universidade por conta disso. Eu quero realmente contar histórias.

Como você imaginava que ia ser o ‘Aconteceu à Luz da Lua’? E como foi ver o resultado depois?

A gente deu uma enxugada em muita coisa ali. Nós gravamos o quinto tratamento do roteiro, ele passou por vários processos. Ele era uma coisa. Nisso, a gente viu que estava faltando elipses temporais. E aí o Maurício Borges (professor do curso de Realização Audiovisual da Unisinos) sugeriu a gente gravar no ano novo, na virada de 2024 pra 2025. E ele veio pra cá, se disponibilizou e tudo. Depois a gente complementou na montagem. O filme feito, poxa, eu estava com muito medo de ver o primeiro corte, tá? Porque o primeiro corte, às vezes, não sai do jeito que a gente queria.

Nisso eu pensava “será que a gente tem um filme?”, “será que o pessoal vai curtir?”, “será que eu consegui espalhar a mensagem que eu queria?”. A gente tem esse medo. Mas foi gratificante demais levar a comunidade pra ir ver o filme no Festival de Cinema de Gramado. Ninguém tinha visto ainda. E aí… Imagina, foi a primeira vez de todo mundo, né? Eu estava nervoso pra caramba.

Foi bem mágico. O pessoal gostou bastante, todo mundo se emocionou na sala de cinema. Foram muitas lágrimas Foi sangue, suor e lágrimas na hora de fazer e na hora de exibir.

Qual a importância de comemorar essa conquista com a comunidade e com a equipe que fez?

Porque é algo para eles se verem. Foi o que eu te disse no começo, os meios de comunicação convencionais são massacrantes pra caramba, eles vêm e filmam a tragédia. Agora imagina, levar as crianças, os moradores, a galera jovem, morador antigo, enfim, que fez parte do filme, pra ir assistir eles na tela de cinema. Que é aquela tela gigante. Isso aí já foi o prêmio, o pessoal ir se ver na tela de cinema. Se tu podes entrevistar cada um, cada um vai te dar um relato diferente. Eles se identificaram, se viram como moradores, como pessoas, como artistas.

Qual é a importância de retratar periferias que estão fora desse eixo Rio-São Paulo?

Tudo tem a ver com autoestima. A gente quer viver. A importância disso pra mim é que, como morador, eu estou me colocando numa visão e uma narrativa que não é estereotipada. É importante dizer isso. Que também muitos filmes, novelas, o pessoal estereotipa muito o que acontece nas comunidades. E aí, eu, Crystom, com a minha visão de morador e roteirista, tentei fazer isso do jeito certo. Além de tentar mostrar a comunidade de Porto Alegre, eu tentei não estereotipar nada. Então, o pessoal às vezes me pergunta, “ah, o que é o filme?”, “é alguém com arma, é alguém relacionado ao crime?”.

É sobre estar representando a comunidade, uma comunidade do Rio Grande do Sul a entrar no mapa. A importância de colocar uma periferia no mapa é essa, pra aumentar a autoestima dos moradores, pra os moradores se verem e se enxergarem. Ponto.

Você acha que a partir da sua indicação para o Festival de Cinema de Gramado outras pessoas, não apenas do Morro da Cruz, mas de outras comunidades do Estado, vão se inspirar para produzir obras audiovisuais?

Eu espero que sim. Por isso que a gente também vai fazer um projeto itinerante de exibir o filme em escolas e em outras cidades também. E isso é pra inspirar moradores de comunidade. O pessoal precisa fazer uma revolução na sua vida. Eles vão assistir ao filme e, eu acredito, que eles queiram fazer uma mudança. Eu quero fazer um trabalho bem grande social, mais pra frente. Assim que o semestre acabar.

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