Muitas vezes utilizadas como sinônimas, as três palavras têm definições distintas e saber o significado de cada uma pode ser determinante
Os impactos das mudanças climáticas são sentidos cada vez mais pela população. Grandes chuvas com volumes históricos têm causado desastres em diversos lugares pelo mundo. As inundações de maio de 2024 no Rio Grande do Sul não são um caso isolado, ainda que seja o primeiro evento a vir à memória da maioria dos gaúchos. Cinco meses depois, a cidade de Valência, na Espanha, passou por uma tragédia bastante parecida. Com mais de 200 mortos, a terceira maior cidade do país fica em outro continente, tem características geológicas distintas e não está sequer no mesmo trópico que o Brasil. Nada disso impediu que, num intervalo tão curto, as duas regiões tivessem que lidar com problemas tão semelhantes.
Durante esses acontecimentos, os noticiários e até as autoridades fizeram o uso da palavra enchente para classificá-los. No entanto, o termo está tecnicamente equivocado nesses casos. De acordo com o Ministério da Saúde, uma enchente ocorre quando a água sobe temporariamente em um rio ou canal por causa do aumento do fluxo, alcançando seu ponto máximo sem transbordar. Ou seja, até houve enchente no Rio Grande do Sul, mas apenas antes do transbordamento dos rios, quando as cheias atingiram o limite das réguas que medem suas cotas. O fenômeno que efetivamente causou todo o transtorno ao estado é chamado de inundação, que acontece quando a água de um rio ou canal transborda, alcançando as áreas próximas, como planícies ou várzeas.
Além das duas classificações, muitas vezes utilizadas como sinônimos, há ainda os alagamentos, que são o acúmulo de água nas ruas e nos perímetros urbanos em pontos isolados. Diferente dos fenômenos anteriores, os alagamentos podem acontecer mesmo sem que haja um volume expressivo de chuva ou cheia de rios e lagos. Em cidades com estruturas de drenagem e escoamento precárias, alagamentos podem acontecer com pequenas precipitações ou até mesmo sem elas, através de vazamentos, obstruções, ou quaisquer falhas no sistema pluvial.
De acordo com a Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade), criada em 2012 pelo Ministério da Integração Nacional, alagamentos e inundações são definidos como desastres naturais e hidrológicos. Por não terem impacto negativo direto na sociedade, enchentes não constam na Cobrade.
Olhando para a prática
Durante o desastre ocorrido em maio de 2024 em Porto Alegre, as réguas de medição do lago Guaíba se perderam em meio à inundação. Uma das soluções encontradas para manter um indicativo do nível das águas foi desenvolvida por uma startup incubada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): a TideSat Global. Com um sistema de sensoriamento remoto que faz a medição a partir da reflexão contínua do sinal do satélite GPS na água, o equipamento de monitoramento pôde detectar o nível do Guaíba mesmo à distância.
Com essa tecnologia, a TideSat Global presta serviços a clientes que vão desde a iniciativa privada, até parceria com o poder público em diversas esferas. Além da atuação na inundação em Porto Alegre e em outras regiões do estado, a startup também tem experiência com outros tipos de desastres. “Seria fundamental termos essa distinção entre os conceitos bem difundida, para uma melhor comunicação. Principalmente porque estamos convivendo com eventos extremos cada vez mais frequentes. Tanto para que as pessoas possam tomar melhores decisões, quanto para que o próprio poder público possa ter comunicados mais eficientes”, defende o mestre em sensoriamento remoto e cofundador da TideSat, Vitor Hugo Júnior.
Como os alagamentos têm ligação direta com regiões urbanas, Vitor Hugo dá como exemplo uma região que costuma ser problemática em Porto Alegre. “Aqui tem corpos hídricos que enchem e esvaziam muito rapidamente, e aí causam algum transtorno quando transbordam. Mas é um impacto leve, principalmente na locomoção, porque pode interromper o trânsito. É como no Arroio Dilúvio, por exemplo. Por isso estamos aprimorando nossa tecnologia, para poder auxiliar o Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgoto) identificando alagamentos em corpos hídricos menores”, destaca.
Quanto às enchentes, o profissional cita um acontecimento bem mais recente. Em junho de 2025, após chuvas intensas, o Guaíba chegou em sua cota de inundação e transbordou para as margens do Cais Mauá. “Causou muita aflição, mas não afetou diretamente a vida das pessoas”, define Vitor Hugo, acrescentando que há mais um tipo de desastre. “Usamos o termo enxurrada também, para definir o que ocorreu no Vale do Taquari em 2023 e 2024. Lá a devastação foi ainda maior, por ter uma correnteza muito grande, numa área com relevo mais acidentado”, esclarece.
Mesmo defendendo a importância da utilização das nomenclaturas corretas, Vitor Hugo entende que é preciso, acima de tudo, ser compreendido. “É complicado em termos de comunicação, quando vamos falar com as pessoas. Como o termo enchente se popularizou, a gente acaba utilizando. Quando falamos com o poder público, percebemos que as pessoas ficam assustadas com qualquer um desses termos, por conta do trauma do ano passado. Então ter uma boa comunicação de desastres é fundamental”, analisa.
O entendimento da sociedade em relação aos termos é o que deve balizar a comunicação, de acordo com o vice-diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), Fernando Dornelles. “Creio que a terminologia e a linguagem devam se adaptar ao meio em que a informação está sendo apresentada. Para a população, deve garantir que ela entenda a mensagem. Um termo diferente do comum pode causar confusão e desinformação. Já em um ambiente entre técnicos da área os termos devem ser usados corretamente, de preferência seguindo as diretrizes da Cobrade”, posiciona o pesquisador.
O vice-diretor do IPH também exemplifica locais comuns de ocorrência de cada tipo de desastre: enquanto as inundações ocorrem em várzeas de rios de bacias médias a grandes, como Sinos e Caí, os alagamentos acontecem em regiões planas e baixas das cidades. Em Porto Alegre, Dornelles cita o entorno da Arena do Grêmio, no bairro Humaitá, e a Cidade Baixa.
O professor observa que, mesmo residências próximas, podem ficar vulneráveis de formas distintas, por conta de aspectos estruturais. “A vulnerabilidade é a característica de quem ou o que sofre o impacto do evento adverso. Se uma casa é baixa e de madeira, enquanto outra é elevada e estruturada em concreto e alvenaria, são vulneráveis em níveis diferentes”, acrescenta.
*Esta reportagem explicativa faz parte de uma série para o projeto VerificaRS, iniciativa de divulgação de conteúdo verificado contra a desinformação climática
