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“A dívida é um compromisso obrigatório, tanto quanto a folha de pagamento”, diz chefe da Divisão da Dívida Pública do RS

O déficit do Estado com a União é tema recorrente em debates sobre a economia do Rio Grande do Sul

Gaúchos que nasceram após os anos 1990 estão acostumados a ouvir sobre a dívida do Rio Grande do Sul com a União. Tema de discussões políticas e de notícias cotidianas sobre economia, o assunto é uma das prioridades do governo estadual. Prova disso é que dentro da estrutura da Secretaria da Fazenda, há um setor específico para tratar disso: a Divisão da Dívida Pública do RS. Chefe da pasta, Eduardo Galvão Egea concedeu esta entrevista exclusiva à Beta Redação para explicar o surgimento e o desenvolvimento da dívida com a União, que saltou de R$ 9,5 bilhões em 1998, para R$ 105 bilhões em 2024.

Confira a entrevista na íntegra.

Qual era o contexto político e econômico da época e por que a dívida precisou ser contraída com a União?

O endividamento do Estado começa bem antes da negociação com a União, na verdade. A necessidade de financiar políticas públicas através de títulos mobiliários sempre existiu, e não havia nenhum arcabouço legal que regulasse essa questão dos títulos mobiliários. No período de 1990 isso teve um crescimento, o endividamento aumentou muito, mas era um problema nacional.

Quando houve a Lei 9496, de 1997, o endividamento de entes subnacionais chegou a 13%, 14% do PIB nacional. E do endividamento do setor público, cerca de 35% era referente a entes subnacionais. Era muito grave inclusive para a União. Havia uma necessidade de sentar na mesa e tomar uma ação, porque estava prejudicando a todos, era um consenso que o modelo precisava ser revisado. O resultado foi a Lei, com a criação de um arcabouço para renegociar.

Era conveniente para o Estado, que estava rolando dívidas mobiliárias, muitas delas vinculadas ao overnight, que tinha taxas bem maiores que o IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna), que era o proposto na Lei. Talvez o Estado entrasse em solvência se não houvesse a Lei.

A União assumiu os títulos e o Estado passou a ter uma dívida contratual com a União. Na prática, possibilitou ao Estado alongar a despesa, porque os títulos tinham vencimentos de curtíssimo prazo. Passava a ser uma dívida de 30 anos, que era praticamente imediata e com encargos menores, bem abaixo do overnight.

Eduardo Egea é o chefe da divisão da Dívida Pública do RS l Foto: Thiele Reis / Beta Redação
Por que a dívida cresceu tanto?

Por conta dos mecanismos dela. Os encargos eram baseados no IGP-DI, que oscilava muito. Além disso, tinha uma parcela ligada à receita corrente líquida do Estado. Então o que superava um limite de 11,5%, não era pago e ia para uma conta-resíduo para ser capitalizada e paga após o fim do período da renegociação. Isso fez com que um volume grande da dívida fosse para este outro caixa. O Estado acabava pagando somente o juro da dívida, sem amortizar quase nada. A ideia da Lei era que esta conta-resíduo impedisse que os recursos fossem utilizados para amortização e acabassem onerando demais as políticas públicas – saúde, segurança etc.

Qual é o perfil da dívida pública do RS hoje?

Nos anos 1990, boa parte era de títulos mobiliários. Depois da Lei 9496/97, a dívida com a União sempre representou em torno de 90% do total. Então esta é a dívida que de fato é relevante para o Estado. Temos outras mais baixas com bancos privados, cerca de 8% a 9% com instituições internacionais, como Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento. O grosso é do contrato com a União mesmo.

O que os Estados e a União fizeram para tentar negociar a dívida?

A dívida não é algo negociado entre Estado e União, é um contexto muito mais amplo, porque ela é toda regrada através de leis nacionais. Sempre é uma negociação entre todos os Estados e a União. Então, qualquer movimento que seja feito, qualquer benefício ou alteração nesse modelo, precisa ser acordado por todos esses Estados e passar pelo crivo do Congresso.

Num primeiro momento, a única ação de resistência aos mecanismos da Lei foi a alteração de encargos. Em 2016 começou a aplicação de uma mudança na legislação, que modificou o indexador da dívida dos Estados. A Lei 9496 de 1997 determinava que os encargos eram calculados pelo IGP-DI + 6%. Na nova Lei (148/2014), ficou definido que as dívidas dos Estados com a União seriam corrigidas pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) + 4% ou pela taxa Selic (taxa básica de juros), o que for menor. Naquele momento, houve um recálculo da dívida porque a alteração previa a amortização da diferença entre os índices, de 2013 a 2016. 

A partir daí entra-se num novo modelo de encargos. Entretanto, logo se verificou que não era um mecanismo que atendia à necessidade dos Estados. A ideia de ter a Selic como um limitador do IPCA era muito boa, porque protegia os Estados em caso de uma grande inflação. Mas aí veio a pandemia, um momento totalmente atípico, e a Selic foi para valores baixíssimos, como forma de manter a economia aquecida, mas com uma inflação também alta. Isso fez com que o IPCA subisse e a Selic passasse a ser o indexador*, o que continuou sendo insustentável para os Estados mais endividados. Uma ideia que certamente foi pensada com a melhor das intenções, mas que se mostrou um mecanismo lento para reverter essa situação.

*A Lei 148/2014 definiu que o critério para utilização de IPCA + 4% ou Selic como indexador da dívida deveria ser o índice que apresentasse menor percentual acumulado a partir de 2013. Com a baixa histórica da Selic durante a pandemia (2% em agosto de 2020, por exemplo), a tendência é que seu acumulado fique abaixo do IPCA + 4% por alguns anos, se fixando como indexadora da dívida. O problema é que a taxa Selic cresceu drasticamente nos últimos anos, alcançando os atuais 15%, incidindo sobre a dívida.

Na mesa de reuniões do gabinete da Secretária da Fazenda, Egea falou sobre a dívida e seus desdobramentos no orçamento do governo estadual. l Foto: Thiele Reis / Beta Redação
O que a atual administração do Estado tem feito para gerir a dívida?

A primeira ação foi a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), em 2022, passando a ter um novo mecanismo que regulava a dívida. Basicamente, escalona a dívida durante 10 anos, fazendo com que o que não é pago seja refinanciado através de uma outra conta, trazendo uma redução bem grande durante os primeiros anos, principalmente. Foi importante para que o Estado pudesse ter um respiro e continuasse executando as suas políticas públicas.

O escalonamento consiste no pagamento progressivo de uma fatia da parcela. Estávamos pagando 33% da parcela em 2024, até que veio a enchente e alterou tudo. Não existia nenhum arcabouço legal que tratasse de Estados em situação de calamidade. A situação foi tão grave que houve um consenso entre a União e os Estados de que era preciso adicionar um aditivo na Lei sobre isso. E aí surgiu a Lei 206/2024 a partir desta negociação. Tudo foi resolvido muito rápido por conta da solidariedade de todos.

O que ficou definido após a enchente?

Ficou determinado que o Estado atingido por calamidade tenha três anos de suspensão da dívida, o que é ótimo para Estados endividados, mas que não foi posto à prova ainda com Estados sem dívidas. Como qualquer legislação, você tem que viver para saber se é eficiente.

Para nós a Lei trouxe um benefício importante. Lógico que eu gostaria que fosse mais, mas ajudou muito.

Foi determinado que o índice indexador fosse o IPCA, e não a Selic, como vinha sendo anteriormente. Isso causou uma grande redução no saldo da dívida. A Lei permitiu que nós destinássemos R$ 16 bilhões ao Funrigs (Fundo do Plano Rio Grande), para a reconstrução do Estado.

A gente retorna a pagar a dívida em maio de 2027 a 66% da parcela da dívida [o escalonamento pelo RRF acrescenta 11% progressivamente, ano a ano]. Este período pagando menos serve para que o Estado possa se recuperar.

A Divisão da Dívida esta lotada na Secretaria Estadual da Fazenda, localizada no Centro Histórico da capital gaúcha.
Foto: Thiele Reis / Beta Redação.
Como essas renegociações ajudam o Estado a investir em outras áreas?

A dívida é um compromisso obrigatório, tanto quanto a folha de pagamento, o percentual da saúde ou da educação. Acaba sobrando pouco para investimentos discricionários. Então o escalonamento da dívida permite um comprometimento menor da receita.

Quando o RS vai se livrar dessa dívida?

Mesmo com os encargos menores, nosso estoque de saldo é muito grande, então não vai ser resolvido tão cedo. A única forma seria um aditivo no contrato da dívida que agisse sobre o saldo. Todos os programas que temos em perspectiva só reescalonam os pagamentos, mas ao final do período, certamente seguiremos com um valor alto a ser pago.

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