Nascido na cidade de Palmitinho, no noroeste do Rio Grande do Sul, o mochileiro Sirlei Gomes vive uma vida de aventuras desde os 14 anos. Suas primeiras viagens iniciaram somente com uma mochila, latas de salsicha e caronas de desconhecidos. Nesta entrevista, aos 56 anos, o viajante que já conheceu mais de 40 países, conta como iniciou essa prática, e relembra a experiência cruel que viveu em uma prisão colombiana durante uma de suas viagens.
Quando e como você começou a fazer mochilão?
Eu tinha 14 anos e muita vontade de conhecer lugares e coisas. Fiz uma campanha de enlatado com meus amigos. Vários amigos me deram latas de salsicha. Enjoei de salsicha por um tempão. Acho que até hoje eu não como salsicha. Fui e voltei até o sertão do Ceará de carona. Foram seis meses de viagem.
Você trabalhava com algo temporário nos lugares que ia?
Lembro que o primeiro lugar em que eu consegui um trabalho tinha até um cantinho pra dormir. Foi numa fruteira gigantesca. Daí, todo lugar que eu ia, eu procurava fruteiras para trabalhar. Arrumava os legumes, limpava o chão… tudo.
Como você se organiza para essas viagens atualmente?
Durante muitos anos da minha vida, tudo o que eu precisava na minha mochilinha era uma muda de roupas, um saco de dormir e uma barraquinha. Hoje estou bem mais equipado. Levo uma barraca que aguenta nevascas e ventos de 150 km/h. Um saco de dormir para temperaturas negativas. Térmicas para aguentar o frio em temperaturas negativas. Calças duplas para neve. Jaquetas duplas. Luvas com duas camadas. Hoje em dia eu vou preparado para todas as estações e para todos os ambientes.
Como é pegar carona com desconhecidos? Existe um receio?
Para mim, as melhores experiências estão sempre na estrada. Quando tu tá na estrada, as pessoas ficam curiosas contigo! A primeira vez que viajei de carona, eu não senti medo. Eu acho que nunca vou sentir medo! Tenho consciência de que posso entrar numa roubada. Mas eu também sei que a pessoa que está me dando carona, está se arriscando! Eu sei que tudo que eu quero é uma carona, e conhecer a história daquela pessoa. Mas ela não sabe disso.
E como você faz para os carros pararem?
Em alguns momentos eu uso plaquinha, botando o lugar para onde quero ir. Mas na grande maioria do tempo, eu escolho um ponto na estrada onde os carros tenham que diminuir a velocidade por algum motivo. Fica mais fácil para eles olharem pra mim. Quando eu peço carona, nunca tenho chapéu ou boné. Mostro bem o meu rosto. Às vezes, parece que a pessoa se sente na obrigação de parar. Eu digo “tudo bom?” e converso com a pessoa. Mesmo que ela não queira me dar carona, acaba cedendo!

Nessas viagens, qual foi o momento mais difícil que você vivenciou?
Fazia quase um ano que eu não viajava. Com apenas R$ 360 no bolso, comprei uma passagem até o Mato Grosso para visitar minha tia. Não sobrou dinheiro para a volta, então pensei, “vou continuar indo e conhecendo os países da América Latina”.
Consegui trabalho num barco da Amazônia e fiquei em tripulação por três meses. Lá, eu conheci uma galera que ia para o México, eles me convidaram para ir junto e bancaram tudo para mim. Chegamos no Sul do México bem na época que mudou uma lei imposta pelos Estados Unidos. Agora o país teria que exigir visto dos brasileiros, então eu saí e voltei no sentido sul.
No caminho, encontrei um pessoal que faz publicações dos países do Hemisfério Sul. Me convidaram para fazer umas fotos para apresentar um povo indígena da Colômbia, os “Kogi”. Eles ficaram três dias na tribo e foram embora, eu quis ficar. Fiquei dez meses com os “Kogi”. Mas àquela região é cercada por narcotraficantes. Os indígenas não trabalham para ninguém e são respeitados por todos. Mas nas populações dos arredores, todos são obrigados a trabalhar para o narcotráfico.
Quando militares fizeram uma incursão, prenderam alguns chefões do narcotráfico, e os estrangeiros que estavam na região também foram presos. Eu vi que o exército não parava de passar para lá e pra cá, então fui com meu passaporte na mão, disse que era brasileiro, e fui preso na hora. Fiquei em uma prisão para guerrilheiros e narcotraficantes de Santa Marta. Era totalmente fechada com ferros. Lá, tu não tem abertura nenhuma, não sabe se é dia ou noite. Tu fica pelo menos 5 dias sem comer nada, somente com um copo de água por dia. Acho que é uma maneira de te deixarem fraco para quando começarem a te interrogar. Essa foi a situação mais tensa que eu vivi na minha vida até hoje.
E como você conseguiu sair de lá?
Nos vilarejos próximos à aldeia, eu tinha uma namoradinha. Ela perdeu muitos amigos naquela incursão. Quando ela não me encontrou, ela entendeu que eu tinha sido pego, então, ela entrou em contato com a embaixada brasileira. A embaixada provou que eu tinha autorização para estar lá e mostraram que eu não tinha vínculo nenhum com o narcotráfico. Me liberaram na hora.
Como você retornou ao Brasil?
Eles me largaram em Letícia (fronteira com o Brasil pelo estado do Amazonas) e alguém do consulado me levou de carro até Tabatinga (AM). Comecei a olhar no mapa, procurei informações e não tem extratos, não tinha como sair de lá. Ou é de barco ou é de avião.
Fui num barco tentar carona e não me deram. O cara era muito chato, então comecei a conversar com pessoas de lá. Muita gente fugindo do garimpo e deportados da Colômbia estavam ali. Conheci um cara que disse: “Faz três anos que eu tô aqui. Fui deportado da Colômbia e tô tentando voltar pra São Paulo. Isso aqui é deprimente, horrível. Estou quase me matando, porque eu tô trabalhando e não consegui juntar dinheiro pra comprar uma passagem de barco pra sair daqui”.
Eu pensei, “não vou ficar três anos aqui”. Descobri que lá tinha a Marinha do Brasil, expliquei minha história para o intendente. Ele disse, “tem certeza que você não veio deportado?”. Eu disse que ele podia entrar em contato com a embaixada e dar o meu nome. “Eles vão te dizer o que aconteceu, que eu não tenho crime nenhum, estou sendo repatriado, eu fui preso, mas eu não fui deportado, fui repatriado pelo nosso governo”.
Ele acreditou, digitou um ofício e me deu, “vai lá no porto e entrega para o barco que eles vão te dar uma carona”. Fui até Manaus. Como eu trabalhei no Rio Amazonas, encontrei o barco do Marinho, expliquei tudo o que aconteceu e consegui um barco até Belém do Pará e de lá, vim para Porto Alegre de carona.
E mesmo com tudo isso, você não parou de fazer o que ama. Quais são os próximos planos?
Eu e minha gata, Elisangela, partiremos para fazer um projeto audacioso. Vamos fazer todos os países da América do Sul, de carona. Vamos gravar pro Insta (@casal_de_botas_) e YouTube (Casal de Botas). Vai estar tudo gravadinho!