Em 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou a maior enchente de sua história. Foram 478 municípios atingidos, mais de 2 milhões de pessoas afetadas, R$ 13 bilhões de prejuízos financeiros ao estado. Mais recentemente, em maio deste ano, a cheia dos rios no estado do Acre, no outro extremo do Brasil, resultou em 120 mil pessoas atingidas e 19 das 22 cidades acreanas em estado de emergência. Antes, Petrópolis, no Rio de Janeiro, sofreu 775 deslizamentos de terra após uma tempestade em fevereiro de 2022, causando 241 mortes. A seca também é um problema. Segundo estudos do Centro Brasil no Clima e do Instituto Clima e Sociedade, cerca de 44% dos desastres ambientais do país ocorrem por conta de secas e estiagens. Em 2024, o Rio Negro, no Amazonas, atingiu seu menor nível em 122 anos, afetando a população amazonense que depende dos rios para alimentação, remédios, meios de subsistência e transporte. Foram 750mil pessoas afetadas pela estiagem.
Casos como esses exemplificam como os desastres ambientais tornam-se mais comuns a cada ano e afetam a vida de milhões de brasileiros. O que muitos atingidos não sabem é onde buscar informações sobre seus direitos. Essa falta de informação agrava a vulnerabilidade, pois muitas vezes os cidadãos deixam de acessar benefícios emergenciais, auxílios financeiros e programas de reassentamento por não conhecer o caminho.
Diante desse cenário, fica a dúvida: quais os direitos de quem perde sua casa, sua fonte de renda e sofre com os desastres ambientais? O defensor público João Carmona Paz, dirigente do Núcleo de Defesa Ambiental da Defensoria Pública, comenta que não há uma legislação fixa que atenda vítimas de desastres, exceto pelos direitos constitucionais amplos de acesso à moradia digna, saúde, assistência social. “Não há uma legislação permanente para pessoas atingidas. O que existe, no caso de eventos climáticos extremos, são legislações temporárias que vão atender aquela circunstância específica”, explica.
Perdi minha casa na enchente e não consigo pagar minhas contas: que auxílios e direitos eu tenho?
No auge da catástrofe gaúcha, a Corsan divulgou que 854 mil pessoas estavam sem abastecimento de água. Juntando os dados da RGE Sul e CEEE Equatorial, foram 424 mil endereços sem fornecimento de energia elétrica. Paz explica que não há uma relação automática entre um evento climático extremo e a suspensão de pagamentos de contas como luz e água, mas pode ser solicitado através do contato com as empresas e órgãos de defesa do consumidor. “No caso de Porto Alegre, durante as enchentes de maio de 2024, a Defensoria Pública conseguiu formar acordos com os fornecedores de água e luz, e com o Banrisul, para a suspensão desses pagamentos em respeito à situação”, exemplifica o defensor público.
A moradia digna é um direito de subsistência fundamental expresso na Constituição de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na qual restou também consagrada a “função social da propriedade”. Casas soterradas pela lama, bairros interditados e estradas rompidas feriram esse direito do cidadão durante as enchentes, mobilizando auxílios emergenciais.
No plano federal, o Auxílio Reconstrução, de R$ 5,1 mil em parcela única, foi pago a mais de 370 mil famílias até setembro, segundo o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. O Saque FGTS Calamidade liberou até R$ 6,2 mil para cada trabalhador, mas apenas para quem tinha saldo no fundo e residia em municípios com decreto de emergência reconhecido. Outras medidas incluíram a isenção do FIES por seis meses e a prorrogação do Bolsa Família para atingidos.
O governo federal disponibilizou o BNDES Automático Emergencial, programa de crédito voltado a municípios em situação de calamidade pública ou emergência reconhecida oficialmente. Oferece financiamento a empresas, microempresas e produtores rurais localizados em áreas de emergência ou calamidade pública, com o objetivo de fortalecer o capital de giro e preservar empregos e renda. Segundo balanço da instituição, mais de R$ 1,8 bilhão foram contratados por produtores gaúchos, ajudando a manter propriedades e evitar o êxodo rural.
No caso do Rio Grande do Sul, o governo gaúcho criou o Volta Por Cima. O programa foi instaurado a partir da Lei Estadual 15.977/2023, com objetivo de redução dos impactos dos eventos sobre a vida das pessoas, a garantia das condições mínimas de subsistência e contribuir para a reparação de perdas. O Volta Por Cima garante R$ 2 mil para famílias em pobreza ou extrema pobreza inscritas no CadÚnico, desabrigadas ou desalojadas em consequência dos eventos climáticos e residentes de municípios com decreto de calamidade. Ainda, foi lançado o Auxílio Aluguel Social, que custeia moradia temporária até que a família consiga se restabelecer.
Num estado em que a agropecuária familiar corresponde a 80% dos estabelecimentos do campo, conforme o último Censo Agropecuário, a Lei 15.038/2024 veio para garantir condições especiais para produtores rurais do Rio Grande do Sul, o que inclui operações do Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agropecuário Familiar, que tiveram comprovadas perdas materiais pelas enchentes. Essa lei autoriza o Poder Executivo Federal a renegociar dívidas rurais, com direito a descontos e prazos ampliados.
No nível municipal, algumas prefeituras se destacaram com soluções ágeis. Em Encantado, por exemplo, a gestão criou um programa de vale-compra emergencial em parceria com o comércio local, permitindo que famílias desalojadas comprassem alimentos e roupas diretamente em mercados da cidade. A iniciativa evitou filas e burocracias, além de movimentar a economia local. Já em Canoas, o auxílio imediato de R$ 2 mil por família, depositado via PIX em menos de uma semana, foi apontado por entidades comunitárias como decisivo para garantir alimentação e medicamentos logo após a enchente.
Sou trabalhador com carteira assinada: o que a lei trabalhista prevê nesses casos?
Segundo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e legislações complementares, desastres naturais são enquadrados como “acontecimentos inevitáveis”, permitindo a aplicação de medidas diferenciadas no mundo do trabalho. Na prática, isso significa que trabalhadores atingidos por enchentes, deslizamentos ou outros desastres têm acesso a garantias específicas.
Alguns dos principais direitos são:
- Garantia de emprego mesmo em caso de afastamento temporário;
- Pagamento de salários, ainda que o trabalhador não possa desempenhar suas funções;
- Acesso ao seguro-desemprego em casos de demissão motivada por impossibilidade da empresa;
- Proteção contra demissões arbitrárias;
- Possibilidade de indenização em caso de extinção da empresa por força maior.
Após o Congresso Nacional reconhecer formalmente o estado de calamidade pública, a Lei 14.437/2022 foi usada com o objetivo de autorizar o Poder Executivo a flexibilizar regras da CLT, dispondo sobre a adoção de medidas trabalhistas alternativas para o enfrentamento das consequências sociais e econômicas causadas pelo estado de calamidade. A partir disso, a lei trata de forma minuciosa todos os procedimentos para a correta implementação dessas medidas, com o intuito de garantir a manutenção das empresas, bem como a renda e salário dos trabalhadores em situação de vulnerabilidade. Criada em decorrência das consequências da pandemia da Covid-19, a lei prevê algumas medidas:
- Implementação do teletrabalho;
- Antecipação de férias individuais;
- Concessão de férias coletivas;
- Aproveitamento e a antecipação de feriados;
- Uso do banco de horas;
- Suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O Poder Executivo Federal ainda pode instaurar o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, instituído de modo a garantir a existência de contrapartidas para os trabalhadores, estabelecendo a forma e o prazo que o programa será adotado, conforme as características de cada evento específico. O intuito é fazer o pagamento do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda(BEm) para quando houver acordos entre empregador e trabalhadores nas situações de:
- Redução proporcional da jornada de trabalho e do salário;
- Suspensão temporária do contrato de trabalho.
No auge da tragédia gaúcha, o Ministério Público do Trabalho (MPT) publicou a Recomendação nº 02/2024, direcionada a empregadores do estado. O documento não cria novas leis, mas estabelece orientações para proteger vínculos empregatícios em meio ao caos, conforme requisitos na Lei 14.437/2022. Portanto, no caso de outros desastres naturais, desde que haja decretação de estado de calamidade e reconhecimento pelo governo federal, medidas semelhantes podem ser aplicadas. O MPT, nesses casos, pode ainda expedir novas recomendações específicas para cada região atingida.
Os trabalhadores que se sentirem lesados pelo empregador em razão da inflexibilidade da empresa na adoção de medidas de flexibilização das atividades, ou que tenham sofrido punições decorrentes das faltas ocasionadas pela impossibilidade de deslocamento, podem buscar orientações junto ao sindicato de sua categoria. É importante que o trabalhador afetado armazene, na medida do possível, documentos e registros que comprovem os prejuízos sofridos (como fotografias da localidade e da própria habitação, por exemplo), bem como as tentativas de negociação com o empregador.
Embora não haja previsão legal que obrigue empresas a fornecerem auxílio financeiro adicional em situações de calamidade, especialistas defendem que o bom senso e a solidariedade devem guiar empregadores. Ruas alagadas, transportes interrompidos e serviços suspensos dificultaram a vida de milhões de trabalhadores. O MPT destaca que, diante desse cenário, é fundamental que empresas e empregados busquem soluções conjuntas, conciliando a continuidade dos negócios com a dignidade humana.
Sou trabalhador informal, tenho acesso a esses direitos?
Os trabalhadores informais enfrentam desafios extras. Como não possuem vínculo formal de emprego, não é possível acesso automático a direitos e benefícios trabalhistas previstos em lei. Entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) enviaram ofício à Presidência da República para viabilizar uma política nacional para o setor informal. Além disso, tramita na Câmara dos Deputados o PL 3501/2024, buscando a instituição de uma lei de proteção aos direitos trabalhistas informais e autônomos. O projeto visa garantir acesso a benefícios sociais, cobertura previdenciária, seguro-desemprego e proteção contra exploração e condições de trabalho inadequadas. Atualmente, a iniciativa aguarda a designação de um relator na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF). Fique de olho na tramitação do PL.
Trabalhadores informais devem buscar auxílio em outros programas que beneficiam todo e qualquer cidadão afetado por desastres, como a inclusão no CadÚnico e em programas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O CadÚnico é feito presencialmente, num posto de atendimento na cidade em que reside. Já para o SUAS e seus programas, deve-se procurar uma unidade de atendimento como o CRAS e o CREAS.
No Rio Grande do Sul, é disponibilizado o MEI Calamidade RS para apoio a microempreendedores individuais. Apesar do foco ser as vítimas das enchentes de 2024, foi aberta uma nova edição em 2025 para auxiliar empreendedores não contemplados anteriormente. O período de inscrição vão até 31 de outubro de 2025. No site MEI RS Calamidades, há informações sobre requisitos, procedimentos e canais para inscrição no programa.
E minha saúde? O SUS garante atendimento e medicamentos em situação de calamidade?
Conforme a Constituição, nos artigos 196 ao 200, a saúde é direito e dever do estado, ou seja, medidas em prol da saúde pública devem ser tomadas mediante ou não a uma catástrofe climática. Os cidadãos portadores de enfermidades ou transtornos mentais, possuem direitos de recorrer a tratamentos direcionados, seja pelo atendimento do SUS, CAPS – quando relacionado à saúde mental – ou demais programas a serem criados, sob responsabilidade do estado, para atender as demandas de saúde pública.
Durante as emergências do Rio Grande do Sul provocadas pelas fortes chuvas em maio de 2025, o estado e os municípios afetados adaptaram formas de atender a população afetada fornecendo abrigo, atendimento psicológico e clínico. O defensor público João Carmona Paz ressalta que isso permanece no caso de eventos climáticos extremos que venham a acontecer no futuro. “É importante que as pessoas saibam que nenhum dos direitos ficam suspensos durante um período desses, então podem exigir o fornecimento dos medicamentos, por exemplo, que recebiam diretamente das farmácias populares e nos poços de saúde”, esclarece.
Sobre os abrigos, não existem leis que garantam o direito ao atendimento nesses espaços emergenciais. Entretanto, a Lei 12.608/2022 que institui a Política Nacional da Defesa Civil, orienta que suas ações devem ser coordenadas conforme os direitos sociais do cidadão, como o direito à saúde, moradia digna, e outros. Mesmo com essa ausência, é importante que os responsáveis pelos abrigos tenham atenção para que se mantenha o atendimento das necessidades das pessoas que têm problemas de saúde, conforme Paz: “No caso de um medicamento não sendo fornecido ou um atendimento que não está sendo dado, as pessoas podem procurar a Defensoria Pública, que vai demandar diretamente ao município ou até judicialmente para que se mantenham os direitos”.
Contudo, deve-se ter bom senso devido a gravidade de cada evento. Além da destruição de hospitais e postos de saúde, existe o risco de aumento em doenças infecciosas, dificuldade do atendimento médico por falta de acesso aos recursos necessários e abalo psicológico nas comunidades atingidas. A sobrecarga no sistema de saúde se intensifica: cresce a demanda por primeiros socorros, internações e cuidados contínuos, ao mesmo tempo que profissionais da saúde também podem estar entre as vítimas. Por isso, garantir estrutura e preparo do setor é fundamental para reduzir mortes e sequelas pós catástrofe.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com o programa Força Nacional SUS, que atua rapidamente em resposta a situações emergenciais que afetam a saúde da população. Também no âmbito do SUS, existe um programa com objetivo de providenciar medidas necessárias para prevenir, reduzir e agir em casos de desastres naturais ou tecnológicos e industriais. Chamado de Vigilância em Saúde dos Riscos Associados aos Desastres (Vigidesastres) monitora as formas de alerta dos desastres e verifica os resultados de tais acontecimentos para atingir seus objetivos.
O futuro: teremos uma lei permanente para proteger vítimas de desastres ambientais?
Seja no pagamento de contas, na preservação do emprego, no acesso à saúde ou no direito a uma moradia digna, o que se vê é um mosaico de medidas temporárias que tentam dar respostas emergenciais a milhões de brasileiros em meio ao caos. A ausência de uma legislação permanente deixa os cidadãos em situação de incerteza, obrigando cada família a depender de programas pontuais, da boa vontade de empresas ou de negociações institucionais a cada nova tragédia.
“É provável que, com o aumento da intensidade e da frequência desse tipo de evento, surjam novas legislações”, comenta o defensor público João Carmona Paz. “É importante se observar como se avançam as forças políticas. Se elas estão mais atentas a esses direitos e necessidades da população mais vulnerável ou se continuam a ser forças desatentas a estes grupos. Não existe um direito desconectado da política, vai depender de como vão estar as forças neste espaço de poder, que é o legislativo”, conclui.
A pesquisadora Franciele de Angeli Francisco, do INPE, lembra que ferramentas como a Plataforma Adapta Brasil já indicavam a vulnerabilidade climática do estado, mas o planejamento preventivo não acompanhou os alertas. Para o engenheiro Luiz Henrique Nascimento, da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, medidas financeiras não resolvem sozinhas. “A destinação de resíduos no Vale do Taquari exigiu operações massivas para evitar riscos sanitários e viabilizar a reconstrução”, exemplifica. Já o auditor do TCE-RS Roberto Tadeu destaca a função dos tribunais de contas não apenas em fiscalizar números, mas garantir que recursos de programas, como Auxílio Reconstrução e Volta por Cima, cheguem de fato às famílias.
*Esta reportagem explicativa faz parte de uma série para o projeto VerificaRS, iniciativa de divulgação de conteúdo verificado contra a desinformação climática
