Ex-prefeito de São Leopoldo (RS), Ary Vanazzi deixou a prefeitura em 2024, após cumprir quatro mandatos. Ao longo de sua trajetória, foi uma das figuras centrais na transformação da cidade. Desde 1983, quando chegou a São Leopoldo, esteve ligado a movimentos de luta por moradia e à construção dos diques, em um período marcado por enchentes.
Nesta conversa, o ex-prefeito relembra sua trajetória e destaca como contribuiu para que São Leopoldo se tornasse uma das referências nacionais em políticas habitacionais hoje em dia. Ele também fala sobre a São Leopoldo Fest, evento marcante que reuniu diferentes identidades e culturas em uma única celebração. Vanazzi ressalta a importância da evolução da festa em uma cidade historicamente marcada pelo peso da cultura alemã e pelos distanciamentos em relação a outras tradições.
Com planos de se candidatar a deputado federal no próximo ano, diz que quer fortalecer a região e buscar novos recursos. Entre suas prioridades, estão a melhoria da rodovia 448, obras da avenida Thomaz Edison, e a criação de parques industriais que possam transformar São Leopoldo em um polo de desenvolvimento futuramente.
Confira os principais trechos da entrevista.
Como o senhor descreve o começo de sua relação com a política em São Leopoldo e os primeiros projetos que assumiu em prol da cidade?
Na década de 1978, me envolvi bastante em movimentos dos sem-terra, na defesa dos povos indígenas e na Igreja. Fui encaminhado para São Leopoldo pelo Conselho Indigenista Missionário para estudar e, posteriormente, voltar como advogado e sociólogo, atuando na defesa dos povos indígenas. Quando cheguei a São Leopoldo, em 4 de abril de 1983, havia uma enchente, toda a região do bairro Campina estava submersa, justamente onde eu iria morar, na casa do Padre Oreste. Naqueles dias, já presenciei cenas dramáticas na cidade, com as chuvas e a miséria existente, foi um choque para mim, vindo do interior, sem dimensão da proporção desses problemas aqui.
Por já participar de movimentos comunitários criados pelo PT, o padre me concedeu moradia por dois anos, e logo já me envolvi na construção dos diques de São Leopoldo. Assim, de 1983 a 1999, coordenei esses movimentos, entrando indiretamente para a melhoria política da cidade e fui um dos responsáveis por todas as obras de diques. Cheguei nessa realidade econômica e política, e estou aqui até hoje. Naquela época, São Leopoldo era uma cidade grande, mas com apenas 10% de calçadas e apenas um ou dois postos de saúde.
Considerando a longa história de enchentes em São Leopoldo e seus conhecimentos dos diques desde antigamente, você acredita que a cidade poderia ter se preparado melhor para evitar a tragédia de 2024?
Para mim, foi uma covardia os comentários de que os diques não estavam preparados. Muito pelo contrário, os diques salvaram milhares de pessoas em São Leopoldo, essa é a verdadeira história. Foi uma das maiores tragédias do estado e 330 municípios foram atingidos, dentre eles, Porto Alegre e Canoas que tinham diques, nós também, e mesmo assim todas as cidades foram afetadas, um estado inteiro sofreu com a chuva. Essa foi a maior precipitação da história, a água passou 80 cm por cima do dique, e só não invadiu o centro da cidade porque ele é 80 cm mais alto. Em 50 anos de história de São Leopoldo, nunca passamos por algo assim. Ou seja, o dique só se rompeu por uma tragédia ambiental, não por falta de preparo político.
Quando começou o alto volume de chuvas e as casas de bombas tiveram dificuldade para bombear a água, a água se acumulou dos dois lados, e, obviamente, o dique rompeu. Eu acompanhei cada situação, como prefeito, estava dentro dessa água. O dique só não rompeu no Ginásio Municipal da cidade porque, em uma sexta à noite, colocamos 20 caminhões puxando terra até de madrugada e conseguimos trancar o vazamento que descobrimos.
Hoje, o tema da enchente é muitas vezes vangloriado. Por exemplo, quando chove 80 mm, não há alagamento, mas no meu governo, quando choveu 100 mm, também não houve alagamento. A partir do momento em que as chuvas passam de 200 mm, a situação muda de proporção e exige atuação diferente do governo. Atualmente, quando não há alagamento em algumas regiões, é resultado de obras implementadas durante meu governo, frutos de quatro mandatos e os 6 meses após as enchentes que levantaram a cidade novamente. Construímos diversas galerias subterrâneas pela cidade, muitos canos estão por baixo da terra e quase ninguém sabe, mas essas medidas impediram problemas futuros. A João Corrêa, por exemplo, era um valão a céu aberto, com odor insuportável. Implementamos melhorias significativas nesse local, conseguimos recursos para construir casas de bombas e, junto ao Governo Federal, recuperamos quase 8 km de diques antes de deixar a prefeitura, além de restaurar todos os diques da Vila Brás. O dique da Campina, iniciado por mim, está sendo finalizado pelo governo seguinte.
Diante do novo momento que São Leopoldo vive, com as marcas dessa enchente, é preciso construir um sistema de diques novo. O presidente Lula depositou 6,5 bilhões na conta do estado do Rio Grande do Sul, mas, atualmente, estão apenas adaptando os diques antigos, inclusive em São Leopoldo. Já tínhamos projetos para construir diques novos e íamos iniciar o dique da Feitoria, porém, tiveram que ser trancados com a troca do partido em 2025.
De que forma sua gestão atuou para proteger a economia da cidade dos impactos das enchentes?
Esse ano, por exemplo, quando entreguei a Prefeitura, não tinha salário atrasado. Não cobrei IPTU no ano anterior, e eu sempre tive o costume de cobrar com um ano de antecedência. Se eu quisesse, poderia ter cobrado 30% do IPTU de 2025 em 2024, porém, não cobrei. Em maio de 2025, a Prefeitura de São Leopoldo tinha em caixa quase 90 milhões de reais, recebidos de impostos e da receita do município. Eu não deixei a cidade em desordem. Mesmo passando por essa enchente, temos números que comprovam que a economia de São Leopoldo estava muito bem e estável. Eu, por exemplo, nunca paguei o 13º salário com financiamento. Nos anos de 2022, 2023 e 2024, paguei com o próprio dinheiro da Prefeitura, em dia. Tem muitas questões a serem ressaltadas na economia da cidade.
Como surgiu a São Leopoldo Fest e por que o senhor considerou importante mantê-la viva durante seus mandatos?
A São Leopoldo Fest, apesar de não ter sido construída e implementada na cidade por nós, foi criada pelo Dr. Dagoberto, que foi um cidadão histórico na nossa cidade. Nós fizemos questão de moldá-la e fazer uma modelagem certa, com o propósito de ser uma grande festa, com essa variação de cultura, não apenas pela cultura alemã.
Isso é um grande debate da São Leopoldo Fest: a restrição da festa apenas para os migrantes alemães. Querem implementar um modelo como é feito em Gramado, Canela, Ivoti e outras cidades próximas. Porém, lá existe uma tradição alemã muito forte. Já em São Leopoldo, em média, 80% da população são migrantes do estado inteiro, que vinham para cá com o objetivo de estudar, sendo a Unisinos uma das únicas universidades da região, ou para trabalhar nas grandes indústrias. A cidade foi uma mãe de braços abertos, a vida toda, e nós continuamos recebendo todos. Eu me coloco como exemplo, pois fui muito bem recebido aqui, e hoje temos inúmeras culturas e tradições na nossa população.
Preservei e preservo a São Leopoldo Fest da forma tradicional, sem eliminar a cultura e a história da cidade, mas sempre incluindo os nossos diferentes. Sempre valorizei os desfiles e a tradição da São Leopoldo Fest por uma questão cultural, sem relacionar com questões ideológicas e políticas. A gente se preocupava com a economia voltada a esses momentos culturais na cidade, principalmente por preservar essas tradições antigas.
Durante seus mandatos como prefeito, qual legado o senhor desejava deixar para a cidade de São Leopoldo?
Algumas coisas fiz para a cidade, que a humanidade vai se lembrar. Espero ficar de exemplo para a eternidade, o principal é o Parque Imperatriz Leopoldina, que tem a ver com o clima ambiental e as tragédias. Em 2004, eu era deputado federal e fiz uma emenda, na época, de 1 milhão e 200 mil reais para fazer o Parque. Mas eu tirei 400 famílias daquele lugar, famílias muito pobres. Ali, os ratos comiam as orelhas das crianças. Eu vi essa cena com meus próprios olhos, vi as crianças no hospital. Tiramos essas famílias dali, levamos para uma casa, com calçadas, com escolas, lá na Santa Marta. Então, na questão ambiental, apesar da tragédia das enchentes que meu governo enfrentou, deixamos marcas extraordinárias na cidade de São Leopoldo. Deixamos o Parque Imperatriz, que começou com 11 hectares de terra e hoje tem 700 hectares. É a última área natural desse tamanho em um centro urbano.
Além disso, deixamos mais parques ambientais espalhados pela cidade, áreas de preservação ambiental. Vinte e dois por cento da área de São Leopoldo é preservação ambiental. Daqui a 50 anos, espero que essa cidade seja impressionada, do ponto de vista urbano, justamente pelo verde e pela qualidade de vida, além dos investimentos pela preservação do Rio dos Sinos. Hoje, quase choro quando vejo o barco parado há um ano. Aquele barco tem uma dimensão de debate estratégico ambiental, de excursão de crianças para conhecer o rio, de jovens e adultos saberem o que significa o rio para 3 milhões de gaúchos que vivem na Bacia do Rio dos Sinos. Esse é o papel daquele rio. A sociedade não percebeu isso ainda, e isso me dói na alma profundamente.