Há vozes que atravessam gerações e moldam a imaginação de quem cresceu diante de uma tela. A de Márcio Seixas é uma delas. Seja no tom sombrio e enigmático do Batman, ao humor marcante de Leslie Nielsen, passando pela famosa frase “Versão Brasileira Herbert Richers”, sua voz se tornou parte da memória cultural de milhões de brasileiros.
Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Seixas deu vida a personagens icônicos e a alguns dos maiores astros de Hollywood, consolidando-se como um expoente da dublagem nacional. Durante a ComicCon RS, realizada na Unisinos Porto Alegre no mês de agosto, o dublador falou sobre carreira, paixões, dificuldades e transformações do ramo ao longo de cinco décadas. Confira os principais trechos da entrevista:
Como foi a sua entrada no ramo da dublagem?
Eu era radialista, mas queria ser um dublador. Porém, havia muito pouca informação, e eu não sabia como me tornar um. A oportunidade apareceu por acaso, em um anúncio de jornal de domingo, pedindo pessoas que tivessem boa leitura em voz alta para um estágio com vistas à contratação na Herbert Richers. E assim eu me apresentei, fui selecionado e passei a trabalhar.
Este início foi marcado por dificuldades?
Os primeiros no mercado costumam ser complicados, mas, já na época, a Herbert Richers era a principal empresa de dublagem do Brasil. Eu comecei com pequenos papéis e pontas em projetos menores, mas o meu trabalho logo se valorizou dentro do estúdio. Daí em diante, as portas de vários estúdios se abriram, para fazer filmes e séries. Então, nenhuma dificuldade. Disso não posso reclamar.
Você já comentou que a dublagem sozinha é insustentável. Como conseguiu se manter ao longo da carreira?
Eu sempre tive outras atividades relacionadas à voz. Ao mesmo tempo que eu era empregado da Herbert, também trabalhava no Jornal Brasil: uma empresa sólida e que me pagava muito bem. Além disso, eu gravava comerciais no Rio e São Paulo, que tinham cachês atraentes. Por isso, eu nunca precisei exclusivamente da dublagem, embora sempre tivesse uma remuneração razoável pelo meu aproveitamento em diferentes papéis.
E como enxerga a remuneração dos dubladores hoje?
A dublagem sempre vai pagar mal. É um trabalho bastante injusto. Mas é assim que é, e não tem como mudar. É viver na instabilidade. Uma pessoa pode ser chamada às 9h da manhã para fazer uma gravação de 30 segundos. Pode ser que esse seja o único trabalho durante o mês, se ela não for contratada da empresa. É essa instabilidade que faz muitos desistirem, porque não há uma remuneração à altura da dedicação exigida.
Na era das redes sociais, o público passou a conhecer melhor os dubladores. Isso trouxe mais visibilidade e valorização para o trabalho?
Sim, completamente. Nosso trabalho era oculto até o advento da internet. Foi ela que mostrou a nossa cara para o público. A partir daí, o público amante da dublagem, consagra o nosso trabalho e nos valoriza muito. O que mudou, inclusive, a postura da imprensa conosco, que passou a nos procurar para poder falar do nosso trabalho. Esse carinho ajuda muito a profissão.
Muitos brasileiros cresceram e criaram memórias afetivas com vozes da dublagem. Qual é o impacto cultural desse trabalho no Brasil?
A dublagem é uma forma de obter a atenção das pessoas e abrir portas para um universo cultural muito maior. Quando alguém larga essa utopia das telas de computadores e celulares, e se interessa por um filme dublado, tem acesso a um texto que foi escrito em inglês, traduzido e adaptado para o português, e muitas vezes esse contato desperta curiosidade por outras referências, até por livros. Eu tenho certeza de que a dublagem impacta, que ela é capaz de informar, divertir e emocionar. E é justamente essa capacidade de emocionar que cria a memória afetiva do público. As pessoas reconhecem vozes, se lembram de personagens e carregam isso para a vida, porque através da nossa voz elas encontram drama, comédia, informação, documentários — um mundo de experiências. É por isso que digo que o impacto cultural da dublagem é imenso e que mantém viva a importância do nosso trabalho.
Você atravessou gerações da dublagem, do analógico ao digital. Como foi vivenciar a transformação tecnológica?
Foi uma evolução natural. Nós viemos da gravação até rudimentar, com gravadores e fitas magnéticas enormes, com projeção de celulóide numa tela de cinema. Os estúdios foram ficando pequenos, as telas de projeção de 16 milímetros passaram a ser telas de TV de 25 polegadas, depois 40 e até 50 polegadas. E agora as gravações são feitas por computadores. Tecnicamente, a evolução foi tremenda. Mas a dinâmica também mudou: mais estúdios, mais produções, mais fragmentação do trabalho. Alguns colegas comentam que a evolução técnica nem sempre vem acompanhada de um cuidado artístico equivalente. Eu digo que a tecnologia não apenas revolucionou os equipamentos de gravação dos estúdios, mas também transformou a essência da rotina do dublador.
O mercado cresceu com o streaming, mas também ficou mais competitivo. Hoje há mais oportunidades reais?
A produção de conteúdo audiovisual cresceu consideravelmente. Sem dúvida, hoje existem mais oportunidades do que no passado. O streaming trouxe uma quantidade enorme de produções e abriu espaço para muitos profissionais, inclusive os que estão começando. Antigamente, a dublagem era concentrada em poucas empresas, e quem não entrava nelas tinha mais dificuldade. Hoje, há muito mais estúdios e projetos.
Existe algo que você sente falta na dublagem atualmente?
Antes trabalhávamos em grandes estúdios, em grupo, trocando emoção com os colegas, o que enriquecia o resultado artístico. Hoje, os estúdios são apertados e gravamos individualmente. Para nós ficou uma coisa muito fria, porque hoje eu não tenho a chance de me emocionar com o trabalho do meu colega aqui do meu lado, como era feito. Eu tive esse privilégio de ter um colega do lado que me fez chorar. Algumas vezes tive de esperar a gravação para dizer assim, “parabéns, como você é bom”. Hoje, eu não posso fazer isso com ninguém, porque eu estou sozinho. Eu gravo ouvindo o meu texto em inglês, ouço o inglês do colega que virá gravar depois e que eu nunca sei quem é.
Hoje se discute o impacto da inteligência artificial na dublagem. Como você enxerga essa tecnologia: uma ameaça ou uma ferramenta de apoio? E como proteger a profissão de dublador diante dessa nova realidade?
Não há a menor chance da inteligência artificial significar apoio, para nós. Ela é uma ameaça real ao nosso trabalho. Porque dublagem não é só colocar uma voz em cima de um personagem — é interpretação, emoção, ritmo. A máquina não tem isso. Infelizmente, tem muita desunião na classe. Então, nós ainda não temos uma definição sobre o que faremos quando o nosso trabalho for efetivamente roubado pela inteligência artificial. Estamos na expectativa e discutindo meios de enfrentar essa ameaça, porque é uma ameaça. Mas não há algo concreto para isso.