Dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados em julho de 2025, revelam um crescimento no número de adeptos das religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda. Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de praticantes passou de 0,3% em 2010 para 1% em 2022. A presença de seguidores do Candomblé e da Umbanda mostrou uma concentração maior na região Sul, onde atinge 1,6% da população, seguida pela região Sudeste, com 1,4% de praticantes com mais de 10 anos de idade.
Nesta entrevista, Tarciso Costa Reis, 48 anos, pai de santo desde 2008, compartilha aspectos de sua trajetória espiritual e reflete sobre o crescimento da religiosidade afro-brasileira, analisando seu significado social para o povo de santo.
Como você iniciou a sua trajetória na religião de matriz africana?
Meu primeiro contato com a religião afro-brasileira ocorreu em 1999, na cidade de Pelotas, onde eu residia na época. Eu enfrentava um problema de saúde nos ligamentos do joelho, e minha mãe me levou a um centro religioso. Foi nesse espaço que uma pombagira me auxiliou e, a partir dessa experiência, passei a frequentar a casa e a integrar a religião.
Você vem de outro município, de Pelotas. Ao chegar a Canoas, percebeu diferentes formas de preconceito ou considerou o ambiente mais acolhedor?
Em Pelotas, por ser uma cidade do interior, havia mais preconceito. Já Canoas é uma cidade maior e, consequentemente, contava com um número maior de praticantes, o que tornou o ambiente mais receptivo. Além disso, quando cheguei à cidade, em 2003, o tabu em torno da religião já havia diminuído.
Em sua visão, o que significa hoje afirmar-se como praticante do batuque ou da umbanda no Brasil?
Afirmar-se da religião de matriz africana, como em qualquer religião, é um gesto de identidade. Vejo como um modo de vida, algo que me proporciona bem-estar e equilíbrio mental. Quanto às outras pessoas, há muitas controvérsias, pois frequentemente entram na religião com expectativas diferentes. Nem sempre ela corresponde exatamente ao que buscam, muitas vezes, o que procuram são aspectos materiais, e não o desenvolvimento espiritual.
O Censo do IBGE de 2022 registrou um crescimento na auto-declaração de fiéis das religiões de matriz africana. Em sua opinião, quais são os motivos deste crescimento?
Percebo que esse crescimento dentro da religião afro-brasileira tem se tornado cada vez mais evidente. Acredito que isso se deve, em grande parte, à visibilidade de artistas, cantores e outros indivíduos influentes que publicamente assumem suas ancestralidades. Contudo, infelizmente, às vezes algumas pessoas tornam-se praticantes apenas por considerarem bonito ou por modismo, e esse interesse, na maioria das vezes, é passageiro.
Você acredita que as pessoas estão se sentindo mais à vontade para assumir publicamente a sua religiosidade, e por quê?
Sim. Acredito que isso ocorre porque vivemos em um mundo mais liberal, no qual diferentes aspectos da vida estão vindo mais à tona, principalmente questões que antigamente eram cercadas de tabu e pouco aceitas. Hoje, observa-se uma perspectiva diferente: as pessoas têm mais acesso à informação e, quando figuras influentes se identificam com religiões de matriz africana, torna-se mais fácil para outros se assumirem e declararem: “Eu sou de religião afro-brasileira”.
Apesar dos avanços em termos de visibilidade, ainda são recorrentes os relatos de intolerância contra terreiros e praticantes. Como você analisa essa contradição?
Essa situação sempre existirá porque, infelizmente, embora todas as religiões tenham sido criadas com o propósito de promover o bem, algumas pessoas se tornam fanáticas. É nesse contexto que surgem o extremismo e outras atitudes negativas que observamos pelo mundo, fruto do preconceito e da recusa em conhecer tradições diferentes. Muitos tentam impor como verdade absoluta aquilo em que acreditam, sem respeitar os outros. No entanto, entendo que essa é, sobretudo, uma questão educacional e cultural, que precisa ser transformada gradualmente, a fim de evitar que se chegue ao extremo do fanatismo religioso.
Na sua concepção, qual seria a principal raiz da intolerância religiosa?
Na minha opinião, o problema está na falta de conhecimento. Quando as pessoas são desinformadas, tornam-se vulneráveis à manipulação. Isso é evidente ao longo da história: sabemos pelos livros que muitas pessoas mataram em nome da religião. Infelizmente, ainda presenciamos conflitos semelhantes, como o que ocorre atualmente entre Israel e a Palestina, que envolve, entre outros fatores, questões religiosas entre judeus e muçulmanos. Esse tipo de situação é resultado da falta de cultura e compreensão. É essencial que as pessoas entendam que o respeito ao próximo e à vida deve estar acima de qualquer crença ou ideologia.
Na sua experiência, as políticas públicas de combate à intolerância têm surtido efeito real no cotidiano?
Aqui em Canoas, cidade onde moro e sobre a qual posso falar com mais propriedade, percebo que essa situação tem melhorado. Com a criação das delegacias de combate à intolerância, passamos a contar com um órgão ao qual podemos recorrer quando necessário. Atualmente, é possível obter alvará e tornar nosso centro religioso um espaço reconhecido publicamente, tanto por instituições municipais quanto pelo governo. Isso proporciona mais segurança para nossos cultos e para o dia a dia da comunidade, algo que anteriormente não existia.
Como você vê o futuro das religiões de matriz africana?
Para mim, o futuro da religião é incerto. Há o risco de sua essência se perder, pois ela deve ser cultuada com tradição. Hoje, observa-se um certo modismo: muitas pessoas se aproximam das práticas religiosas apenas por achá-las bonitas ou por influência de terceiros. Em alguns casos, há quem queira tornar-se pai de santo sem antes buscar o mais fundamental da tradição: o conhecimento dos seus ancestrais, essencial para transmitir corretamente os fundamentos da religião às futuras gerações. Infelizmente, isso leva à distorção das práticas antigas, muitas vezes motivada por fama ou pelo aumento de seguidores, prejudicando a imagem da religião ao criar preceitos que não pertencem a ela. Por outro lado, aqueles que realmente desejam aprender têm hoje mais acesso a informações e a terreiros. É preciso buscar conhecimento com dedicação e entender que tornar-se pai de santo não ocorre da noite para o dia. O estudo é contínuo, muitas vezes por toda a vida, e mesmo assim ainda há sempre algo a aprender. Ser pai de santo significa ser um eterno aprendiz dos fundamentos ancestrais.