O valor invisível da reciclagem

Entenda por que os trabalhadores da reciclagem de Porto Alegre estão lutando contra a concessão da gestão proposta pela prefeitura
Dener Pedro
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Nicolas Cordova

Que a reciclagem é importante para a sociedade ninguém discute. Responsável pela redução de impactos ambientais através da reutilização de materiais, é por meio dela que os aterros sanitários ficam menos sobrecarregados, evitando a poluição do ar, além de promover, nas indústrias, a produção de materiais que podem voltar ao ciclo produtivo, sem a extração de novas matérias primas da natureza.

As políticas públicas, no entanto, deixam a desejar em várias cidades do Brasil. Epicentro dos efeitos causados pelas mudanças climáticas, especialmente por conta da enchente que chocou o mundo em 2024, Porto Alegre vive um cenário preocupante. De acordo com a prefeitura municipal, cerca de 94% de seus resíduos sólidos são enviados diretamente ao aterro sanitário, enquanto apenas 6% são reciclados.

As causas para esse problema fazem parte do principal debate sobre o assunto na capital gaúcha. A prefeitura da cidade propôs, em 2024, uma Parceria Público Privada (PPP) para gerir os resíduos sólidos, alegando que a grande quantidade de contratos com empresas e cooperativas atrapalha a eficiência da gestão. A ideia é conceder, por 35 anos, a administração a uma única empresa, centralizando prazos e objetivos.

Por outro lado, catadores e cooperativas de reciclagem defendem a manutenção, a valorização e o fortalecimento do trabalho feito nas Unidades de Triagem (UT). Documentos da própria prefeitura estimam que a coleta informal, feita por catadores independentes, recolhe quatro vezes mais que a coleta seletiva do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). Já as UTs, que recebem os resíduos do DMLU e fazem a triagem, são pagas pela prefeitura apenas pelos custos de manutenção, mas não pela prestação do serviço.

Um dos princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída em 2010 pelo governo federal, é o “reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania”. A proposta da PPP, segundo especialistas, viola esse princípio, especialmente pelo enfraquecimento de organizações populares via concessão da gestão à iniciativa privada.

A percepção do caráter infringente da PPP motivou setores acadêmicos, movimentos sociais e entidades de pesquisa a criarem a Frente pela Gestão dos Resíduos Sólidos Participativa. A organização surgiu com o objetivo de desenvolver documentos de análise da proposta, confrontar o modelo e apresentar alternativas.

“Não é à toa que a contratação de associações cooperativas de reciclagem nem precisa de licitação. É um incentivo para que as prefeituras desenvolvam essas instituições, para que sejam geradoras de cidadania. Com a concessão tu inverte essa lógica e incentiva só a geração de lucro”, explica o jornalista Alnilam Orga, responsável pela comunicação da Frente.

O grupo de trabalho organizado pela Frente apresentou diversos pontos de discordância com a proposta da prefeitura. A primeira delas é em relação à condução do processo, sem participação popular. Somente em dezembro, mais de seis meses após o início da proposta, foi disponibilizada uma consulta pública. Mesmo sendo remota e no período de férias (dezembro de 2024 e janeiro de 2025), a mobilização da Frente resultou numa grande pressão. A prefeitura recuou e ainda não deu andamento à proposta com a realização da audiência pública, anteriormente prevista para o mês de abril.

Depois da prensa, os resíduos são compactados em blocos para a comercialização – THIELE REIS/BETA REDAÇÃO

A análise crítica da Frente traz como principal foco a complexidade do problema envolvendo a gestão dos resíduos sólidos. De acordo com a organização, a concessão é uma tentativa de solução parcial e temporária, que não ataca a raiz do problema e, ao contrário, enfraquece a alternativa de solução mais contundente: a educação ambiental. Isso porque a PPP propõe uma separação mecanizada dos resíduos, através de maquinários tecnológicos. “A melhoria nas taxas de reciclagem depende de educação ambiental, não de mecanização”, defende Alnilam, ressaltando que a automatização inibe a prática da separação correta do lixo nas residências. “O trabalho dos catadores começa na educação ambiental, pela penetração que eles têm na sociedade. Eles são as pessoas mais capacitadas para falar disso nas escolas, nas empresas, e precisam ser reconhecidos e remunerados por isso”, complementa.

É através das cooperativas de reciclagem que parte desses trabalhadores conseguem se sustentar dignamente. Através de uma gestão conjunta, os ganhos e decisões dentro das Unidades de Triagem são definidos coletivamente. “Tu começa a te enxergar como cidadão quando participa de uma assembleia. É uma autonomia que é proporcionada por esse modelo de gestão e que não existe numa empresa privada”, reflete Alnilam.

Apesar do nome, as Unidades de Triagem fazem mais do que a separação dos resíduos. “Tem lugares do Brasil que nem vão saber o que é Unidade de Triagem, porque esse nome só tem aqui. É uma forma de reduzir o trabalho social que é feito, a referência que esses locais são para as suas comunidades. Quando tu reduz o trabalho de um catador à triagem, tu começa a medir a importância que ele tem pelo que ele produz na triagem, que é um trabalho que pode ser substituído por máquinas”, analisa o jornalista.

Comunidades de triagem

Em 2018 faleceu Marli Medeiros, uma das principais lideranças comunitárias da história de Porto Alegre, que dá nome a um centro cultural na Vila Pinto, comunidade do bairro Bom Jesus a qual ajudou a transformar. Vítima de um câncer no pâncreas, deixou um legado plantado na Vila. “A mãe era uma pessoa fora da curva. Ela era muito articulada. A gente morava no Bom Fim, éramos uma família de classe média, vivíamos bem. Mas aí veio o Plano Collor e aquela vida que a gente tinha acabou. A mãe perdeu tudo, teve que vender as coisas do apartamento para pagar uma parte das contas. Botou as roupas dentro do carro e viemos para a Vila”, conta Paula Medeiros, filha de Marli, lembrando do confisco das poupanças promovido por Fernando Collor, presidente da república em 1990.

Vinda de Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, a família chegou em Porto Alegre em 1976. Mesmo morando no Bom Fim, a ligação com a Bom Jesus sempre existiu. “Conforme conseguia, a mãe ia trazendo os parentes do Alegrete e o pessoal vinha para cá. Então nossos fins de semana eram aqui. Era quase uma comunidade da família”, relembra Paula.

Paula Medeiros segue o legado de sua mãe, Marli Medeiros, líder comunitária da Vila Pinto – THIELE REIS/BETA REDAÇÃO

Na época em que se mudaram, a Vila Pinto não tinha estrutura alguma. Sem água, luz, saneamento básico, asfalto. “Era horrível. Em 1996 a Bom Jesus era considerada o terceiro maior bolsão de miséria da América Latina”, destaca Paula. “A gente tinha uma bica e distribuía água para o pessoal, e a mãe viu nisso uma oportunidade de organizar a comunidade. Ela botava na cabeça das pessoas que não podiam aceitar aquela miséria que se vivia. A primeira ação que ela conseguiu foi trazer o quartel para fazer a documentação das pessoas, porque nem isso tinha”, complementa.

Característica marcante nas Unidades de Triagem, a liderança e emancipação feminina era estimulada por Marli. “O tráfico sempre teve muita interferência aqui, então ocorria muita violência doméstica e quem era solteira era mal vista. A mãe começou a mirar a proteção das mulheres como um propósito”, explica Paula, contando o método perspicaz utilizado por Marli. “Ela fazia reuniões com assuntos de mulher, como menstruação, por exemplo, que incomodava os homens. E aí quando eles saíam, ela começava a mobilização política e comunitária. Fazíamos pães, edredons, tudo para doar e manter as mulheres próximas”, detalha.

Em 1996 foi inaugurada a Unidade de Triagem da Vila Pinto. Administrado por Marli Medeiros, convidada pela gestão municipal da época, o local se tornou um Centro de Educação Ambiental (CEA). “Foi nessa época que teve o boom do Orçamento Participativo. A gente lotava 10, 15 ônibus para as assembleias. As pessoas começaram a gostar daquilo, a sentir pertencimento. Aí veio luz, asfalto. Quando veio água na torneira as pessoas saíam comemorando. Nunca vou esquecer de ver as pessoas tão felizes por direitos básicos”, recorda Paula.

O desenvolvimento das comunidades se deu em paralelo ao crescimento das Unidades de Triagem, que se tornaram centros de referência para os residentes. A catação sempre foi uma atividade comum na periferia, então a identificação com o trabalho realizado nas UTs foi imediata. “Não é à toa que as unidades ficam nas regiões periféricas. É justamente para ter a possibilidade do cooperativismo, da associação”, afirma Paula, que administra o CEA Bom Jesus, dando seguimento ao legado da mãe.

Hoje o CEA conta com o terreno de um outro prédio, conquistado por Marli junto à prefeitura, onde fica o pavilhão da triagem. O espaço que ficou ocioso se transformou num local de referência para a Vila Pinto. Com atividades de lazer e cultura e programas de direcionamento ao mercado de trabalho, o CEA executa uma série de editais da prefeitura. “A gente traz oficinas, capacitações, formações. Então somos um espaço de desenvolvimento humano real. Mas eu reforço muito que tudo, exatamente tudo que as pessoas enxergarem aqui, é fruto da catação, da reciclagem, das catadoras e dos catadores”, reconhece Paula.

Paula Medeiros exibe com orgulho a estampa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – THIELE REIS/BETA REDAÇÃO

O Centro de Educação Ambiental Bom Jesus

Tido como uma referência para todas as Unidades de Triagem, o CEA conta com um terreno amplo. A triagem é feita num galpão, que é em grande parte ocupado por uma gaiola, que acompanha toda a extensão lateral do espaço e vai até o teto. É nessa estrutura que os resíduos são deixados pelos caminhões do DMLU. A etapa seguinte é a mais demorada: a separação manual dos resíduos de acordo com seus materiais e cores. Dali, são encaminhados para toneis azuis e, após, para as big bags. Quando cinco desses sacos enchem, é hora de levar os resíduos para a prensa, uma máquina que os compacta, deixando prontos para a comercialização.

A venda dos resíduos é o principal sustento da cooperativa, já que o valor repassado pela prefeitura muitas vezes sequer cobre a conta de energia. O dinheiro obtido com as vendas é dividido igualmente entre todos os 35 trabalhadores da unidade. “A única indústria para quem conseguimos vender diretamente é a Gerdau. O resto vendemos para atravessadores, empresas com tecnologia e recurso para acumular grandes quantidades e vender para a indústria pelo dobro, às vezes o triplo do valor que pagam para nós”, explica Paula.

A qualidade dos resíduos também é um problema enfrentado pelas cooperativas. Atualmente, muitas empresas produzem embalagens de materiais difíceis de reciclar e com pouco valor de venda. Além disso, indústrias maiores vendem seus próprios resíduos e lucram muito com isso. “Nós recebemos aqui muitos rejeitos, o que não é para acontecer, já que o que chega para a gente é coleta seletiva. O problema é que isso é descontado no nosso contrato, como se tivéssemos responsabilidade sobre isso”, denuncia Paula.

Após a separação, os resíduos são colocados em toneis, antes de irem para os sacos e para a prensa – THIELE REIS/BETA REDAÇÃO

“O pressuposto da prefeitura é que o catador tem que acabar porque ele está ligado à delinquência”

Doutora em Ciências Sociais e professora da Escola de Administração da UFRGS, Ana Mercedes compõe a Frente pela Gestão dos Resíduos Sólidos Participativa. Analisando a situação vivida por Porto Alegre, defende que a PPP representa uma solução insuficiente. “As cooperativas aqui estão muito fragilizadas, porque elas vêm de mais de uma década um processo de sucateamento muito forte. Isso é estratégico para depois dizerem que precisa de mudança. Nós defendemos que esse modelo precisa ser revisado e que a prefeitura faça o que está ao seu alcance para fortalecer as cooperativas, que representam um ganho humano, cidadão, social e ambiental”, destaca.

Hoje, em Porto Alegre, os resíduos recebidos pelas Unidades de Triagem vêm da coleta seletiva do DMLU. “Se houvesse um estímulo à articulação entre os catadores individuais e as cooperativas, elas receberiam resíduos de muito mais qualidade e em muito mais quantidade, podendo vender direto para a indústria, sem o intermédio de atravessadores. É isso que a gente defende”, detalha a professora. “O pressuposto da prefeitura é que o catador tem que acabar porque ele está ligado à delinquência”, completa contestando.

Ana Mercedes também avalia o risco gerado por uma concessão tão longa, de 35 anos. “Nós estamos dizendo que isso pode virar um elefante branco. É um problema complexo, que envolve muitas pessoas, categorias de trabalho. É aquela situação que quando está no meio do caminho o problema se torna tão grande que você já não consegue resolver, mas já se passou muito tempo e se investiu recursos demais para voltar atrás”, exemplifica.

O que diz a prefeitura?

Em nota, a prefeitura municipal de Porto Alegre se manifestou à reportagem feita pela equipe da Beta Redação:

“A Prefeitura Municipal informa que está avaliando todas as contribuições da sociedade com a devida atenção e responsabilidade. A administração municipal reconhece o valor das sugestões apresentadas pelas entidades que representam os catadores e a importância de considerar alternativas inovadoras e eficazes para a gestão de resíduos sólidos. No entanto, destaca que, embora existam diversas soluções técnicas que possam, aparentemente, oferecer melhores respostas para os problemas atuais, é dever do município garantir uma solução que seja tecnicamente viável, operacionalmente factível e, sobretudo, financeiramente sustentável.

A administração municipal continuará ouvindo todos os segmentos da sociedade e conduzindo um processo transparente e colaborativo, buscando sempre a melhor solução para o município e para o futuro sustentável da cidade.

A PPP de Resíduos Sólidos não irá inibir os trabalhadores envolvidos no processo. Pelo contrário, a única condição para o projeto seguir é a presença e protagonismo dos catadores no projeto de Parceria Público-Privada.”

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