Pouco mais de um ano após a enchente que assolou o Rio Grande do Sul em maio de 2024, novamente a preocupação com as chuvas passou a ser tema de debate. Em junho de 2025, o Estado sofreu com uma semana de chuvas intensas em diversas localidades, fazendo com que os rios subissem de nível e, mais uma vez, alagassem cidades e bairros já castigados.
Nesta reportagem, a Beta Redação resgata um trabalho fundamental para amenizar estes momentos de tragédia e tristeza que se repetem, ano a ano, na vida de quem é atingido pelas cheias. Conversamos com quem estava na linha de frente na enchente de 2024 e seguiu atuando nas inundações que vieram depois. São pessoas que trabalharam na organização e captação de dados de abrigados até trabalhadores e voluntários que prestaram acolhimento e assistência.
Muçum e Roca Sales: o primeiro grande desafio
A enfermeira Gerusa Bittencourt, de 36 anos, faz parte da direção do Grupo Hospitalar Conceição, onde é gerente de Atenção Primária à Saúde. Ela relembrou os desafios do período em que atuou junto à Força Nacional em Muçum e Roca Sales, em setembro de 2023, que serviram como referência para os trabalhos realizados em maio de 2024.
A gerente dos postos de saúde do GHC, relembra o contato da SMS (Secretaria Municipal da Saúde) de Porto Alegre solicitando apoio na organização de um primeiro abrigo: “O Fernando Ritter, secretário municipal da Saúde, ligou pedindo ajuda. Isso era as seis da manhã. Às nove, nós estávamos lá com 60 trabalhadores do GHC”, lembra.

Médicos, enfermeiros, farmacêuticos e residentes que não tinham sido afetados pela enchente foram para esse primeiro abrigo. Porto Alegre começava a receber as vítimas trazidas pelo Exército e pela Defesa Civil. Assim como nas enchentes de setembro de 2023, os postos de saúde do GHC novamente compuseram atuação junto à Força Nacional trabalhando em cinco abrigos por 60 dias.
A gerente de Atuação Primária detalha o papel dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), que também foram para dentro dos abrigos. Gerusa explica que os pacientes chegam a estes serviços através do GERCON (Gerenciamento de Consultas), mas, naquele momento de exceção, era necessária uma força-tarefa para acolher a quem estivesse precisando de apoio, principalmente psicológico. Ela menciona que o CAPS-Infantil buscava informações dos seus pacientes para que pudessem tomar seus medicamentos e continuassem com seus tratamentos. Ela lembra que o CAPS 2 também abriu para atender os colaboradores que se deslocaram para trabalhar e, com as chuvas, ficaram ilhados, sem terem como retornar para as suas casas.

Gerusa conclui que a escuta foi o fator principal no momento do acolhimento: “Eu passei alguns dias dentro dos abrigos, logo no início. O pessoal ‘sentava’ para conversar, para escutar. Foi um momento de muita escuta. As pessoas contando como foi. E isso, para elas, também era libertador para ressignificar”, afirma.
Acolhida no abrigo
Voluntária no acolhimento externo do Pontal do Estaleiro, a psicóloga Vanessa Branco, de 41 anos, nos relata os principais desafios de acolher os afetados pela enchente que vinham, principalmente, das Ilhas e de Eldorado do Sul. Era o primeiro socorro psicológico na busca de informações, na tentativa de minimizar as necessidades.
Durante a enchente, a psicóloga também realizou trabalho voluntário em um abrigo, na Cervejaria da Tuka, no bairro Partenon. Junto a um líder comunitário, passou a subcoordenar a área psicológica do local por possuir experiência com rede de saúde e assistência. Vanessa lembra que todo trabalho realizado nesse abrigo foi pelo empenho da comunidade.
Ela ressalta que o trabalho desse abrigo durou quatro meses e que ela ficou dois meses indo diariamente ao local que, em seu auge, teve um total de 60 pessoas abrigadas, sendo muitas famílias do Sarandi, Humaitá e Navegantes, bairros da Zona Norte de Porto Alegre.
Vanessa acolhia as famílias que lá chegavam coletando dados necessários para um melhor atendimento:
“Se a pessoa está em choque, ela não lembra nem do nome da medicação que ela está tomando. Então, se a gente entra no SUS, a gente já descobre. A gente já vê quais medicamentos que ela está precisando”, explica.

Conforme Vanessa, os atendimentos em saúde mental davam-se após triagem dos abrigados. Quando se sentiam seguros, apareciam seus medos. Então, os psicólogos eram chamados.
“Eles diziam: agora eu tô começando a sentir, tô me sentindo mal, tô com um aperto no peito, porque eu tô lembrando dos dias que a gente ficou lá em cima do telhado, que a gente ficou comendo bolacha”, enfatiza a psicóloga.
Os atendimentos psicológicos se davam de modo privado, dentro de um contexto de comunidade em que vivam os abrigados da enchente, pois o papel do profissional que atendia não era retraumatizar seus pacientes. Segundo Vanessa, o público que mais buscava atendimento era homens preocupados com suas casas e, também, apreensivos por estarem em um local afastado de seus bairros.
A psicóloga, em determinado momento, reconhece que, por ser uma pessoa muito ativa no trabalho voluntário, era constantemente lembrada por sua filha de manter dos cuidados básicos consigo, pois deixava de lado a alimentação e descanso para seguir na linha de frente.
Lições Aprendidas
Na opinião de Vanessa, havendo uma situação parecida com a que tivemos em maio de 2024, não estaríamos preparados. No entanto, ela alerta: “Não seriam os voluntários que teriam que assumir essa responsabilidade de cara, e sim o poder público, que podia ter feito um monte de coisa para evitar. A gente não precisava ter esse trabalho se houvesse o poder público ali, realizando o que precisa, que vários especialistas já disseram, que o fenômeno deveria se repetir, e não foi feito nada”.

Vanessa complementa: “Isso vai ser cada vez mais comum entre nós, infelizmente. Estudantes de humanas, estudantes de exatas, todos precisam estar pensando sobre isso, porque, sei lá, a gente tem que mudar a forma como a gente habita as cidades. E como é que a gente vai mudar isso? A gente precisa da engenharia, da arquitetura, a gente precisa do direito, a gente precisa de todo mundo. Essa coisa das ciências muito ‘separadinhas’ eu acho que também é para nos desmobilizar para a luta”.
Aprendendo a respirar
Natural de Porto Alegre, Bruna Costa Fernandes, 32 anos, é analista de comunicação. Moradora de Santa Cruz do Sul há quase quatro anos, ela conta que a enchente de maio de 2024 foi a primeira vez em que enfrentou condições tão adversas. Junto do marido e de seu filho pequeno, Bruna precisou sair de casa por 10 dias.
No primeiro momento, foram para a casa de sua mãe em Cachoeirinha – que, logo depois, também foi tomada pela água. Até conseguir retornar a Santa Cruz do Sul, a família passou alguns dias na casa da cunhada, em Gravataí.

ARQUIVO PESSOAL/BRUNA FERNANDES
Para lidar com a situação, Bruna precisou de ajuda especializada. A primeira veio através da Faculdade Cruzeiro do Sul, onde ela estuda à distância, que ofereceu atendimento psicológico gratuito para os alunos afetados pela enchente. “Lembro de conversar duas vezes com o psicólogo disponibilizado, e foi uma maravilha. Ele não morava no Rio Grande do Sul. Conseguiu me acalmar e me falar coisas boas que me ajudaram naqueles dias, que foi logo quando voltei para Santa Cruz”, conta.
Já em sua casa, mas ainda necessitando de apoio, Bruna procurou terapia online, e até hoje mantém o atendimento com a mesma psicóloga. Segundo ela, a conversa em torno da enchente é menos frequente comparado ao início do acompanhamento. “O atendimento terapêutico me ajudou e me ajuda me trazendo para o momento de agora, e não para os dias que sofri no ano passado. Aprendi a controlar a ansiedade, o que nem sempre consigo”, reflete.
Com o apoio da terapia, Bruna Fernandes encontrou um caminho para lidar com o trauma, e ajudar o filho pequeno a fazer o mesmo: “Também me ajuda muito a conversar com o meu filho, porque ele tem apenas 6 anos. A enchente marcou muito a vida dele. Ele tem muito medo de chuva. Então, eu aprendi a me acalmar e a respirar profundamente, por mim e por ele”, encerra.

A realidade é dura, depoimentos que angústiam, visão de que fatos deste nível serão rotinas, só não pode ser rotinas os tratamentos sem efeitos, sem soluções.